Legislação ambiental pratica ‘seletividade jurídica’ ao punir e tratar camponeses e comunidades tradicionais de forma violenta e ser pouco rigorosa com grandes empreendimentos, afirma defensor público
O desabafo é de Benedita de Lourdes dos Santos, conhecida
como dona Lourdes, uma senhora de 76 anos, ao se referir à multa de 588 mil
reais que recebeu por colher gravetos, galhos e folhas secas ao redor da sua
propriedade. Uma multa de mais de meio milhão de reais por tentar manter seu
fogão aceso. A agricultora vive numa casa de três cômodos onde mora com os dois
filhos num sítio do bairro conhecido como Sertão do Puruba, distante 40
quilômetros do centro de São Luiz do Paraitinga, cidade de 10 mil habitantes no
interior de São Paulo.
Dona Lourdes, seus filhos, ambos com deficiência mental,
mais dois irmãos e suas famílias dividem uma pequena propriedade que fica nos
arredores do Parque Estadual da Serra do Mar, núcleo Santa Virgínia, unidade de
conservação de 17.500 hectares que engloba além de Paratinga, as cidades de
Ubatuba, Caraguatatuba, Cunha e Natividade da Serra.
“Aqui não tem médico pra ver a gente, aqui não tem nada, mas
polícia tem. E vem com esse negócio de multa. Se não fosse ele, nós íamos ser
culpados de tudo”, diz, referindo-se à Marcelo Toledo, vereador na cidade e um
velho defensor das comunidades tradicionais caipiras de São Luiz e região.
Foi ele quem contou à reportagem sobre a multa de mais de
meio milhão de reais que dona Lourdes e dois dos seus irmãos receberam em
setembro de 2020, quando policiais ambientais que faziam patrulha no Parque
entraram na propriedade e aplicaram a penalidade.
Ao entrar no sítio, os policiais encontraram Luzia, filha
mais nova de dona Lourdes, que tem deficiência mental. A moça, bastante nervosa
com a visita inesperada, cortou os próprios pulsos com uma lâmina de barbear.
Mas o desespero de Luzia não impediu a ação policial.
O caso foi levado à Defensoria Pública Estadual e quem tomou
a frente do processo foi o defensor público Wagner Giron de La Torre que há
décadas trabalha na defesa das comunidades tradicionais da região, entre
caipiras, caiçaras e quilombolas do Vale do Paraíba e Litoral Norte de São
Paulo.
Giron critica a abordagem, a pena aplicada pela polícia
ambiental e afirma que há falta de preparo dos agentes públicos, principalmente
da esfera judicial, na percepção da vulnerabilidade dos povos originários e
comunidades tradicionais.
“A injustiça ambiental, o racismo ambiental inerente a esses
eventos é muito escancarado. Essas comunidades viviam dentro daquela área, e
com a criação do parque eles foram expulsos de sua localidade de origem e foram
assentar suas casas nas bordas. Eles já estão calejados em viver à margem da
prometida democracia social, eles sempre viveram num estado de exceção, esse
tipo de criminalização na vida deles não é novidade”, critica Giron.
No artigo “Racismo
Ambiental: o que eu tenho a ver com isso?”, a pesquisadora Tania
Pacheco afirma que racismo ambiental significa “injustiças sociais e ambientais
que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre
outras comunidades, discriminadas por sua ‘raça’, origem ou cor”.
Removidos sem diálogo
O Parque Estadual da Serra do Mar foi criado por um decreto
em 1977 e o Núcleo Santa Virgínia inaugurado em 1989. Antes da regulamentação
do parque, existiam duas grandes fazendas e outras propriedades menores ao
redor. Segundo Giron, a implantação do parque foi feita sem qualquer diálogo
com as comunidades tradicionais que ali viviam, que foram removidas daquele
território e estabeleceram moradia em localidades fora do parque, em sua zona
de amortecimento, que são faixas de proteção que ficam ao redor das unidades de
conservação para contribuir com o ecossistema protegido. É lá onde hoje vive a
família Santos.
O policiamento dessas regiões é feito, em grande parte, por
policiais ambientais que fazem parte da unidade especializada da Polícia Militar
do Estado de São Paulo. Sua principal atribuição é prevenir e reprimir
infrações cometidas contra o meio ambiente, conforme consta na página da
Polícia Ambiental de São Paulo.
De acordo com a Lei nº 9605, de fevereiro de 1988, conhecida
como Lei de Crimes Ambientais, para imposição e gradação da penalidade, a
autoridade deve levar em consideração três situações: a gravidade do fato,
tendo em vista os motivos da infração e suas consequências para a saúde pública
e para o meio ambiente; os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da
legislação de interesse ambiental; e a situação econômica do infrator, no caso
de multa.
Vitória da roça
No caso da família Santos, em janeiro deste ano a Defensoria
Pública conseguiu suspender as cobranças administrativas, alegando a condição
de baixo poder aquisitivo, uso de pequeno roçado exclusivamente para
subsistência e pela condição de comunidade tradicional à qual a família
pertence.
Além da suspensão da multa, a família garantiu legalmente a
realização da coleta de gravetos para o fogão, fazer roça periódica, entre
outras atividades.
“Eles, como comunidade tradicional caipira, herdaram um modo
de vida material e cultural de seus ancestrais. E como quase todas as
comunidades tradicionais que vivem ainda nas frações remanescentes dos biomas
brasileiros, se utilizam do extrativismo, da coleta, porque vivem a 40, 50
quilômetros do centro urbano das cidades”, explica Giron. ”Eles não têm botijão
de gás, então usam galhos secos que caem naturalmente no solo, gravetos e
folhas secas, para alimentar o seu fogão de lenha, para fazer a sua comida. Aí
vem a polícia ambiental e diz que aquilo é um desmatamento? É um absurdo”,
afirma o defensor.
Na ação, ele pontua que a família em questão, assim como seu
modo de vida, se caracteriza como comunidade tradicional já que “há tempos
imemoriais seus ancestrais estabeleceram posse lícita, mansa e produtiva nessa
terra, legando a seus descendentes os modos de reprodução cultural e material
da vida campestre que até hoje norteiam os atos de subsistência, de baixo
impacto socioambiental, dos demandantes.”
Quem reforça a tese do defensor público é o educador e
antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, estudioso das comunidades rurais e que,
na década de 1980, viveu na zona rural da cidade, num distrito coincidentemente
muito perto de onde mora, hoje, a família de dona Lourdes. “É uma prática
de uma vida caipira muito mergulhada na natureza. Era uma cultura mais próxima
do mundo indígena do que do mundo branco.”
Dois pesos e duas medidas
Brandão entende que a legislação ambiental, apesar de
avançada, tem dois pesos e duas medidas, pois pune agricultores, camponeses e
comunidades tradicionais por pequenas ou quase mínimas infrações e “fecha
os olhos” para atividades verdadeiramente predatórias, como “os grandes
predadores, madeireiros, garimpeiros, o agronegócio como um todo, que se
apresenta agora como sendo a dádiva do Brasil, esse negócio de “o agro é pop.”
Um dos exemplos da diferença de tratamento da polícia
ambiental aos pequenos e aos grandes foi dado pelo defensor público Wagner
Giron, que também atuou na cidade de Ubatuba, vizinha à São Luiz do Paraitinga.
Lá, foi construído um condomínio de alto padrão numa área próxima ao quilombo
da Caçandoca, na praia do Pulso, região sul da cidade. Segundo o defensor, a
administração do condomínio interditou o acesso do público à praia, inclusive
dos moradores do quilombo. Além disso, as casas do bairro captavam água de
forma irregular da área quilombola. “Fizemos inúmeras representações aos órgão
ambientais e não aconteceu absolutamente nada”, queixa-se.
O vereador Marcelo Toledo denuncia há muitos anos algumas
das maiores empresas de celulose do Brasil que se instalaram em São Luiz do
Paraitinga nas décadas de 1990 e 2000 para plantação de eucalipto. Contaminação
e uso irregular do solo, cerceamento do direito de ir e vir em algumas estra
das rurais, estão entre as denúncias mais comuns, e alguns processos até
chegaram a ser julgados. Entretanto, questionado sobre o resultado, ele
lamenta: “Nenhuma multa ambiental. Nunca. Nem um centavo”.
A história se repete
Distante 420 quilômetros da região onde vive dona Lourdes,
André Luiz Pereira de Moraes enfrenta problemas semelhantes. Quilombola,
morador da comunidade André Lopes, que fica no município de Eldorado, no Vale
do Ribeira, ele já perdeu as contas de quantas vezes se deparou com
fiscalizações tanto no quilombo onde vive quanto nas comunidades vizinhas;
visitas inesperadas por conta das atividades agrícolas que os quilombolas
desenvolvem na região.
“Há uma opressão por parte do Estado e nós, comunidades
quilombolas temos dificuldade de exercer nossa cultura, de gerar nosso próprio
alimento como fazemos há centenas de anos. O Estado, na sua estrutura
administrativa, não permite que a gente produza banana, batata, cará,
pupunha. Ele não só não facilita, como dificulta a sobrevivência do povo
quilombola”, explica.
O Vale do Ribeira abriga a maior extensão contínua e
conservada da Mata Atlântica no Brasil. Desta área, 78% ainda estão cobertos
por remanescentes originais, com alto grau de preservação. Na porção paulista
do Vale do Ribeira existem aproximadamente 50 comunidades quilombolas, porém
apenas seis comunidades são tituladas e uma tem registro em cartório.
Desde 2019, o Sistema Agrícola Tradicional das
comunidades quilombolas do Vale do Ribeira é considerado patrimônio cultural
imaterial do Brasil, ou seja, a atividade agrícola quilombola, assim como sua
organização social, técnicas e artefatos, além de não configurarem práticas
ilegais do ponto de vista ambiental, são reconhecidas como patrimônio cultural imaterial
exatamente pela evidente contribuição para a conservação da biodiversidade.
No entanto, o reconhecimento desse sistema tradicional não
significa que legalmente essas comunidades possam desenvolver ou tenham
facilidade na execução das suas atividades agrícolas.
No Estado de São Paulo, por exemplo, existe uma resolução de
2018 que trata a roça dos quilombolas como Manejo Agroflorestal Sustentável.
Tal resolução possibilita o aumento do tempo de licença individual de
abertura de roças de dois para cinco anos. O que foi um avanço para famílias
quilombolas e resultado de muita pressão popular.
Acontece que, ainda assim, a obtenção desta licença esbarra
na burocracia estatal, que muitas vezes chega após o período de plantio,
inviabilizando o manejo.
“Já chegou a levar mais de um ano entre o pedido para fazer
a roça e a chegada da autorização. E às vezes nem autorizam, não é nem
analisado. Existe um calendário pra fazer a roça, não é todo mês que isso é
feito”, explica Rafaela Miranda, quilombola da comunidade de Porto Velho,
também é advogada da Equipe de Articulação e Assessoria às comunidades negras
do Vale do Ribeira (EEACONE). “Fazer a roça”, como cita Rafaela, é cortar a
vegetação de um determinado ambiente e trabalhar a terra para
receber plantios e/ou outras atividades rurais.
Lopes conta que qualquer roça aberta já é motivo para
chantagem e multa. E, na maioria das vezes, são valores altos, que dificilmente
poderão ser pagos.
“Você degradou o meio ambiente, você desmatou, você é um
criminoso, vai ser enquadrado na lei tal, no artigo tal, isso assusta muito. Aí
vem a multa e obviamente o cara não consegue pagar”, diz o quilombola. “Você
vai ver o que é a roça, são seis palmo de terra, cinco ou seis pés de feijão e
um paiolzinho pro cara entrar debaixo quando chover. É isso. Como se fosse uma
degradação astronômica”, lamenta.
No campo e na cidade
De acordo com Fernando Prioste, advogado da organização não
governamental Instituto Socioambiental, a atuação da polícia no campo tem a
mesma lógica que na cidade. “É mais ou menos como a gente vê nas grandes
cidades, a diferença na abordagem num bairro rico e num bairro pobre. É uma
questão de classe e raça em geral. O modus operandi da polícia é o mesmo. A
abordagem nas empresas é mais respeitosa, como a polícia deveria ser com
todo mundo.”
Ele diz que na região do Vale do Ribeira, onde atua, em
muitas comunidades quilombolas a abordagem é invasiva, a polícia entra nas
casas sem qualquer tipo de mandado judicial: “Uma coisa que dificilmente eles
fariam numa fazenda, não entram na casa sede e chegam revirando as coisas. A
truculência em si, de qualquer forma, sob qualquer aspecto, já é ilegal”,
conclui.
A reportagem analisou os registros de infrações ambientais
do estado de São Paulo no período de 2013 a 2020.
Neste período, infrações registradas por autoridades da
Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), responsável pelas
autuações dadas a pessoa jurídica- ou seja, empresas, houve uma diminuição
considerável dos números (11.386 em 2013 e 4.646 em 2020). Procurada
pela reportagem, a Cetesb confirmou que as penalidades aplicadas pelo órgão
são, na sua grande maioria, para pessoas jurídicas, ou seja, empresas.
Já no SIGAM, sistema que registra os Autos de Infração
Ambiental emitidos pela Polícia Ambiental, que são os maiores responsáveis pela
autuação de pessoa física, ou seja, produtores rurais, no mesmo período houve
um aumento
de 53% em sete anos (15.210 em 2013 e 23.269 em 2020).
Na avaliação do defensor público Wagner Giron de La Torre
“pipocam a torto e a direito processos de crimes ambientais que reprimem
os direitos fundamentais de comunidades. E esses processos correm com uma
celeridade estupenda no sistema de justiça, mostrando a seletividade na
repressão jurídica desses direitos. São opressões contra os pobres pelos
poderes fiscais, tutelares, criminais e ambientais do Estado.”
Para ele, uma das provas concretas da “seletividade nas
opressões” é que o Estado, ao contestar a ação de nulidade das multas
ambientais do caso da família de dona Lourdes, por exemplo, “não foi capaz de
juntar sequer uma mísera cópia de multas ambientais contra empreendimentos
grandes, altamente impactantes como esses monocultivos de eucalipto ou
conjuntos habitacionais construídos em áreas de unidade de conservação. E eu
questiono esse tipo de contradição, que é, sim, racismo ambiental. Eles
poderiam falar: ‘nós multamos a Fibria, e Suzano diariamente, as provas estão
aqui´. Mas não juntaram nada. Ficou como fato inconteste nos autos. É uma prova
cabal”, conclui o defensor.
A reportagem procurou a Polícia Ambiental e a direção do
Parque Estadual da Serra do Mar, núcleo Santa Virgínia, onde ocorreu a
autuação descrita no início da reportagem e questionou sobre o cálculo das
multas à comunidades tradicionais e as denúncias de excessos nas abordagens,
mas não houve retorno.
RACISMO AMBIENTAL I “Me falaram que eu tinha que pagar não sei quantos mil. E como eu vou pagar isso? Como eu vou pagar isso? Não posso, não.” Dona Lourdes recebeu uma multa de 588 mil reais por colher gravetos de sua propriedadehttps://t.co/qfBVKijlMh via @ojoioeotrigo
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Fonte: O Joio e O Trigo