Prática traz lucro para multinacionais e transfere riscos de
saúde para trabalhadores e meio ambiente brasileiros
Syngenta é a empresa que mais “desova” agrotóxicos proibidos
no Brasil
De 770 amostras de alimentos vendidos pelo Brasil à Europa,
97 tinham agrotóxicos proibidos pelo bloco
Dados inéditos revelam que o Brasil é o segundo maior
comprador de agrotóxicos fabricados em solo europeu, mas proibidos para uso na
União Europeia e Inglaterra. A prática já era conhecida, mas pela primeira vez
se revela a importância do Brasil neste mercado. Foram 10 mil toneladas em
2018, e 12 mil em 2019. Mais da metade (77%) saiu da fábrica da Syngenta na
Inglaterra, onde a empresa produz o agrotóxico paraquate.
O bloco autoriza a exportação de agrotóxicos que considera
perigosos demais para aplicação na sua agricultura, mas tolera a importação de
alimentos cultivados com estes produtos em outros continentes. “É o ciclo do
veneno. Sabemos que esses agrotóxicos são perigosos, mas os vendemos e
externalizamos os impactos de nosso próprio consumo. Enquanto isso, camponeses,
indígenas e pessoas que vivem próximas ao campo sofrem no Brasil”, diz Laurent
Gaberell, um dos autores do levantamento. Ele é pesquisador da Public Eye,
organização suíça que monitora o comportamento de empresas do país. Os dados
sobre venda de agrotóxicos foram obtidos pela organização em parceria com a Unearthed,
braço de jornalismo investigativo do Greenpeace (veja dados completos eminglês).
A prática foi classificada como “discriminatória” e “uma
contradição legislativa” por Baskut Tuncak, que foi relator especial da ONU
para substâncias tóxicas de 2014 a julho de 2020. “A União Europeia não tolera
esses agrotóxicos em seu território, mas, fora da União Europeia, diz que não é
problema seu”, afirma Tuncak em entrevista à Repórter Brasil e à Agência
Pública. Segundo o relator, essa situação só é permitida graças a “brechas
legais” criadas para atender à indústria de agrotóxicos, que “segue violando
direitos humanos fora da Europa”.
Apenas em 2018, foram mais de 81 mil toneladas autorizadas
para fabricação na União Europeia e Inglaterra e venda a 85 países que não
fazem parte do bloco. Os dados são de autorizações para exportação, por isso é
possível que o volume efetivamente vendido seja menor.
São 41 tipos diferentes de agrotóxicos proibidos dentro do
bloco europeu, mas autorizados para fabricação e exportação. Dentre os motivos
que levaram a União Europeia a proibi-los estão evidências sobre sua relação
com infertilidade, malformações de bebês, câncer, contaminação da água e toxicidade
para animais, como as abelhas.
A Public Eye e o Unearthed usaram leis de acesso à
informação para obter dados da Agência Europeia de Produtos Químicos e de
órgãos do Reino Unido, Alemanha, Bélgica e França, onde ficam algumas das
maiores fábricas de grandes produtoras, como Bayer, Syngenta e Basf.
“As empresas ficavam escondidas atrás do escudo da
confidencialidade comercial. Pela primeira vez conseguimos acessar todas essa
informações sobre 41 agrotóxicos”, afirma Gaberell, da Public Eye.
O apetite do mercado brasileiro para esses produtos fica
atrás apenas dos Estados Unidos, que foi o campeão de compras. Mesmo com a
relevância do mercado americano, o grosso das exportações é para “países mais
pobres, onde acredita-se que esses agroquímicos danosos trazem maiores riscos”,
afirma o relatório. Entre os maiores compradores estão Ucrânia, México e África
do Sul.
“O que causa má formação genética na Europa também causa na
Malásia. O que mata abelhas na Europa mata abelhas no Brasil ou na África do
Sul. Mas as condições para aplicar a lei e controlar o uso são mais fracas nos
países mais pobres”, diz Gaberell.
Ele lembra que o Brasil, a África do Sul e a Índia autorizam
a pulverização aérea, algo que é proibido na União Europeia, ocorrendo apenas
em situações específicas. Quando são aviões que despejam o químico, uma grande
parte fica à deriva e pode alcançar rios e comunidades rurais no entorno da
plantação.
Exportando os riscos
Os novos dados mostram que dentre os principais compradores
de agrotóxicos proibidos na União Europeia estão os principais vendedores de
alimentos para o bloco econômico: Estados Unidos, Brasil e Ucrânia. Ou seja,
empresas europeias lucram vendendo agrotóxicos perigosos para que o seu
alimento seja cultivado em outros continentes.
Isso ocorre porque o uso dos químicos em questão foram
banidos por oferecerem risco aos trabalhadores rurais e ao meio ambiente. Mas,
quando se trata de resíduos nos alimentos, o bloco fixa limites que são
tolerados na comida importada.
Não são poucos os casos de alimentos brasileiros com
agrotóxicos proibidos na Europa que chegam a mercados europeus. A ONG Pesticide
Action Network analisou testes feitos em 770 frutas, legumes e grãos vendidos
pelo Brasil à Europa em 2018. Desses, 97 tinham agrotóxicos proibidos ou de uso
restrito na União Europeia.
De um total de 31 amostras de maçãs que vieram do Brasil e
foram testadas, 24 tinham resíduos de agrotóxicos proibidos ou de uso restrito
na Europa. Quantidades significativas também foram encontradas em outras
frutas, como o mamão, a manga e o limão (veja a arte).
A análise da PAN ressalta que foram poucos os alimentos
testados do Brasil, por isso, os resultados não representam todos os alimentos
importados do país. “Mas os dados não deixam dúvidas de que a União Europeia
está comprando produtos proibidos para uso em seu território. Isso é
hipocrisia”, afirma a toxicologista Angeliki Lyssimachou, uma das pesquisadoras
que está trabalhando com os dados na PAN.
Este levantamento faz parte de um grande compilado realizado
pela PAN, cuja equipe se debruçou sobre os testes toxicológicos realizados
pelos países da União Europeia com amostras de alimentos coletados em
mercados.
Carbendazim: a nova polêmica no Brasil
O agrotóxico proibido na União Europeia que mais apareceu
nos alimentos brasileiros disponíveis nos mercados europeus foi o carbendazim.
Ele estava em 64 dos 770 alimentos testados. Principalmente nas frutas: estava
presente em 24 de 30 amostras de maçã, 19 de 112 amostras de mamão e 13 de 103
das de manga.
O carbendazim foi banido na Europa porque pode causar
defeitos genéticos, prejudicar a fertilidade e o feto, além de ser muito tóxico
para a vida aquática.
- Quer receber reportagens sobre os impactos dos agrotóxicos no seu e-mail? Inscreva-se na nossa newsletter!
No Brasil, ele foi o produto mais encontrado na comida
segundo testes realizados pela Anvisa entre 2013 e 2015 dentro Programade Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos. E o terceiro mais detectadoentre 2017 e 2018. Nesta última, apareceu em 51% amostras de pimentão, 24% das
de abacaxi e 18% das de manga.
Ele é utilizado no cultivo de laranja, limão, maçã, feijão,
soja e trigo. Segundo o Ibama, 4,8 mil toneladas do produto foram compradas em
2018. Não há dados sobre a exportação deste produto da Europa para o Brasil em
2018 ou 2019, apenas da Europa para outros países.
O carbendazim é utilizado no cultivo de laranja, limão e
maçã. De acordo com o Ibama, 4,8 toneladas do pesticida foi comprado em 2018
O carbendazim promete ser a nova polêmica da vez no Brasil
porque entrou em reavaliação, o que significa que pode ser proibido ou ter sua
autorização renovada. A reportagem falou com advogados que trabalham na
constituição do que será a “Força-Tarefa Carbendazin”, grupo formado
pelas empresas fabricantes para defender a permanência do agrotóxico no mercado
brasileiro.
No Brasil, 25 empresas detêm o registro de 102 produtos
contendo este agrotóxico, dentre elas a Adama (empresa do mesmo grupo da
Syngenta), a Bayer e a Nortox, maior fabricante brasileira de
agrotóxicos.
Procurada pela reportagem, a Bayer afirmou que vai parar de
vender carbendazim em todo o mundo até o final do ano (nota completa da Bayer).
A Nortox não respondeu até o fechamento desta matéria.
Campeão de exportação na Europa e de mortes no Brasil
O produto proibido na Europa que mais teve autorizações para
exportação para todo o mundo é um dos agrotóxicos com maior impacto no Brasil:
o paraquate. Foram 32 mil toneladas, ou 40% do total das exportações da União
Europeia de agrotóxicos proibidos em 2018. Também foi, de longe, o mais
exportado para o Brasil: 9 mil toneladas autorizadas em 2018.
Este mesmo produto foi o agrotóxico autorizado no Brasil quemais tirou a vida de brasileiros na última década, segundo dados do Ministério
da Saúde revelados pela Repórter Brasil e Agência Pública.
De acordo com o Ibama, foram vendidos no Brasil 13 mil
toneladas em 2018. Ou seja, a produção da Syngenta que saiu da Inglaterra e
veio para o Brasil correspondeu a 68% das compras deste químico no país.
LEIA TAMBÉM
Exclusivo: Agrotóxicos paraquate e glifosato mataram 214
brasileiros na última década
Como o agronegócio faz lobby para garantir a pulverização de
agrotóxicos pelo ar
Procurada pela reportagem, a assessoria de comunicação da
empresa afirmou que não responderia às perguntas enviadas.
O paraquate foi proibido em 2007 na União Europeia, depois
que pesquisas indicaram que a exposição ao agrotóxico está associada à doençade Parkinson. Embora proíba seu uso, a União Europeia permite a importação de
arroz com até 0,5 miligramas de paraquate por quilo. Nos outros alimentos, o
limite fixado é o mínimo que a tecnologia consegue detectar.
Devido aos riscos à saúde humana, o paraquate tem a mais
alta classificação toxicológica no Brasil e está prestes a ser banido, com data
final para proibição marcada para o próximo dia 22. Mas, depois de intenso
lobby das fabricantes e dos produtores de soja, o órgão regulador passou a
rediscutir a proibição, abrindo a possibilidade de que novos estudos sejam
apresentados.
Em julho, a Repórter Brasil e a Agência Pública revelaram o
lobby da chamada “Força-Tarefa Paraquate” para impedir o banimento. O principal
argumento são duas pesquisas que, em tese, poderiam provar que a substância é
segura, mas que não ficarão prontas antes da data para a proibição.
Após a reportagem revelar os conflitos de interesses
envolvendo um dos estudos que estava sendo feito em laboratório da Unicamp, o
Comitê de Ética da universidade suspendeu a autorização da pesquisa. Este
estudo foi financiado pela Associação Brasileira de Produtores de Soja
(Aprosoja) e, embora suspenso pela Unicamp, continua sendo citado pela
associação em defesa do produto em reuniões da Anvisa.
A revisão do paraquate chegou a ser proibida pela Justiça,
mas a Anvisa ganhou recurso e voltou a incluí-la na pauta da diretoria
colegiada. A próxima reunião que pode decidir o assunto será nesta quarta-feira
(15).
A discussão mobiliza organizações de diversas esferas. A
Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida reuniu mais de 200assinaturas de organizações, deputados e até de universidades pedindo que aAnvisa mantenha a proibição do paraquate.
77% dos agrotóxicos comprados pelo Brasil são da Syngenta
Mais riscos
Além do paraquate, há outros cinco agrotóxicos que são
proibidos na Europa e que tiveram a fabricação na Europa para venda no Brasil
autorizada em 2018. O propargite, produzido pela Arysta (empresa de propriedade
de um conglomerado indiano que tem fábricas na Europa) foi proibido na União
Europeia em 2011 por ser considerado extremamente tóxico quando inalado, tóxico
para a vida aquática, ter potencial de causar sérios danos aos olhos, além de
haver indícios de que causa câncer. Em 2018, foram autorizadas vendas de 600
toneladas do produto para o Brasil. Em 2019, 608 toneladas.
A cianamida, produzido pela alemã Alzchem, é um regulador de
crescimento vegetal que foi proibido em 2008. Em contato com a pele, causa
queimaduras severas, danos aos olhos, e há indícios de que causa câncer. Além
de prejudicar a fertilidade e o feto, provoca danos aos órgãos internos com a
exposição prolongada, e também é danoso à vida aquática. Em 2018, foram
autorizadas vendas de 460 toneladas do produto.
“Ele foi proibido na União Europeia porque as autoridades
concluíram que é impossível proteger-se durante sua aplicação, mesmo usando
luvas, máscaras e outros equipamentos”, afirma o toxicologista Peter Clausing,
membro da seção alemã da PAN (Rede de Ação Contra Pesticidas).
MAIS LIDAS
"Qualquer um que se importa com a democracia deveria
estar se reunindo para apoiar Julian Assange"
Empresa contratada para fiscalizar barragens é cliente das
mineradoras que precisa fiscalizar
Há ainda três químicos produzidos pela Bayer e vendidos ao Brasil: o etoxissulfurom, a ciflutrina, e o tiodicarbe.
Questionada sobre a prática das empresas continuarem vendendo produtos proibidos na Europa devido aos riscos à saúde, a CropLife (associação que representa a maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo como Bayer e Syngenta), respondeu que respeita as particularidades de cada país. “Cada país tem suas particularidades de solo, clima e pragas, além de seus mecanismos de aprovação, regulamentação e fiscalização de uso de defensivos químicos. Os membros da CropLife Brasil obedecem contextos locais, que são diferentes de uma região para outra, e nem por isso menos rigorosos” (resposta na íntegra).
“É importante ressaltar que os produtos autorizados em outros países não são automaticamente autorizados no Brasil”, afirmou em nota o Sindiveg (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal), que representa também as fabricantes brasileiras como a Nortox e Ourofino Agrociência. O grupo argumenta ainda sobre as diferenças de clima entre os continentes. “O ataque de pragas no Brasil é mais severo por conta das condições climáticas de um país tropical, com temperaturas mais altas e ambiente mais úmido”, diz a nota (leia na íntegra).
As diferenças entre os ambientes também foi ressaltada pelo pesquisador Christopher Portier, ex-diretor do Centro Nacional para Saúde Ambiental e da Agência para Registro de Substâncias Tóxicas e Doenças dos Estados Unidos “Existem diferentes pragas em diferentes partes do mundo. Se um país tem uma praga de gafanhotos que ameaça sua segurança alimentar, pode considerar necessário comprar agrotóxicos que outros países proibiram porque não têm esse tipo de problema”, afirma.
Ele diz, porém, que esse tipo de situação só se aplica em casos excepcionais e que esse argumento “é excessivamente evocado pelas empresas produtoras de agrotóxicos. Um produto como o paraquate provavelmente deveria ser controlado”.
Estudos mostram que o agrotóxico paraquate estaria associado
à doença de Parkinson
Pressão sobre a Comissão Europeia
Com o lançamento do relatório com os novos dados, a Public
Eye pretende mobilizar a opinião pública contra a prática. Em resposta à
organização, a Comissão Europeia afirma que a Convenção de Roterdã (da qual
Brasil é signatário) traz regras contra a exportação de agrotóxicos proibidos.
“A Convenção é construída sob o princípio de que cabe aos países importadores
decidirem se querem ou não importar agrotóxicos listados”.
Outro exemplo é a Convenção Bamako, ratificada por 25 países
africanos. Com o objetivo de impedir a transferência de lixo tóxico, a
convenção barra substâncias proibidas nos países de origem, como os
agrotóxicos.
“É a regra de não importar nada que o país exportador não
venderia a si mesmo”, afirma Portier. “Os países estão controlando o que querem
e protegendo sua própria população”.
No horizonte do Brasil, porém, não há iniciativas neste
sentido. Sob o governo Bolsonaro, a Anvisa liberou mais produtos agrotóxicos do
que qualquer outro governo. Neste momento, o órgão debate até rever a proibição
do paraquate, o produto mais importado da Europa dentro da prática denunciada
pelas organizações.
239 novos agrotóxicos nos primeiros 6 meses de governo
Bolsonaro
No estúdio, a conversa é sobre os novos agrotóxicos
liberados pelo governo. Assunto em debate por Yamila Goldfarb, professora da
UFABC, Marcio Automare, economista, e Carlos Eduardo Fagiolo, meteorologista.