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sábado, 10 de agosto de 2024

A democracia nas Américas


Enquanto discussão sobre democracia se foca na Venezuela, nos EUA candidatos de esquerda são ignorados: apenas em alguns estados é possível votar neles


Os candidatos à presidência dos EUA Cornell West, Claudia de la Cruz e Jill Stein. (Foto: Reprodução)

Enquanto todos os olhos seguem voltados para a qualidade da democracia na Venezuela, onde a extrema-direita recusa-se novamente a reconhecer resultados eleitorais, o debate sobre as eleições norte-americanas, mesmo entre a esquerda, nem sequer discute a qualidade da democracia, ou falta dela, no Grande Irmão do Norte. Reféns do estreito campo discursivo que oscila entre o conservadorismo e o liberalismo, parece que ficamos presos a discussões estéreis que não ultrapassam o bipartidarismo do mundo político capitalista oficial, i.e., Democrata vs. Republicano. 

No meio disso, movimentos realmente populares, antirracistas e antipatriarcais permanecem silenciados, como é o caso das candidatas a presidenta e vice-presidenta pelo Partido Socialismo e Liberação (PSL), Claudia de la Cruz e Karina Garcia, respectivamente uma mulher negra e outra hispânica, de origem trabalhadora. Ambas estão dispostas a mudar o sistema político do seu país e não apenas a chegar ao poder para manter tudo como está. Mas ninguém por aqui fala delas. O grande problema é que, ao embarcarmos neste apagamento das vozes negras, feministas, anticapitalistas e periféricas, nós nos tornamos cúmplices do mesmo sistema que dizemos combater.

Apesar de seu partido possuir praticamente o mesmo nome do PSOL no Brasil, é curioso que nem os psolistas nem militantes de outras agremiações de esquerda brasileiras tenham dada alguma atenção às candidatas socialistas e libertárias dos EUA, mesmo quando comenta-se sobre o processo eleitoral yankee. É uma pena que seja assim, além de um grave erro político. Pois o slogan das candidatas da esquerda estadunidense trata justamente daquilo que as esquerdas daqui se esquecem de falar: 



“Termine com o capitalismo antes que ele termine conosco”. 

Em inglês, o fim da frase tem duplo sentido, podendo significar também que o capitalismo está acabando com os Estados Unidos (Before It Ends US).

Sua propaganda não é destinada a capturar o ‘eleitor-médio’ ou a ser mais palatável para a ‘classe média’. Trata-se de uma verdadeira campanha da classe trabalhadora, cujo objetivo principal não é um cargo no sistema político burguês mas, principalmente, atuar de forma pedagógica, educando as massas – e a si próprios – durante o processo. No plano doméstico, são bem diretas ao denunciar os “patrocinadores corporativos” da campanha de Kamala Harris[1]. No plano internacional, apresentam sem titubear sua posição sobre as crises atuais, ao defender a solidariedade com “Venezuela e Palestina, unidas contra o imperialismo estadunidense”. Não se trata, portanto, de duas mulheres não-brancas que querem gerenciar o genocídio em Gaza ou o golpe em Caracas, mas de duas revolucionárias que usam a eleição como tática de mobilização, formação e organização dos setores populares em luta. 

Em vez de ignorá-las, portanto, deveríamos questionar que democracia é essa onde os candidatos legalmente constituídos não constam das cédulas nas urnas de todo o país. Pouco se fala sobre essa aberração escandalosamente antidemocrática, mas muito se falou sobre Maria Corina Machado não estar habilitada a ser candidata na Venezuela. Atualmente, as candidatas do PSL nos EUA estão nas urnas de apenas 9 dos 50 estados que compõem a federação norte-americana, pois cada estado decide qual candidato presidencial pode concorrer ali… Mesmo se um trabalhador quiser votar nelas, não poderá fazê-lo na enorme maioria dos casos. Sequer verá seus nomes na lista de opções no dia de votação, sem falar da ausência de campanha eleitoral para quem não está habilitado. Onde está a gritaria política? Onde estão os debates na TV sobre democracia? Onde estão os articulistas de esquerda? Influencers? Nada.

Elas são apenas um exemplo. Existem outras opções de esquerda na corrida presidencial dos EUA, como a grande ambientalista Jill Stein, do Partido Verde, representante da luta ecossocialista e que, ao contrário de outros partidos verdes mundo afora, mantém uma inflexível postura anti-imperialista e anticapitalista. Seu slogan é: People, Planet, Peace (pessoas, planeta e paz). Sua campanha contém cartazes em espanhol e até em árabe, com o fim de dialogar com as comunidades imigrantes subalternizadas na América. Novamente, não estará em todas as urnas como uma opção no dia da votação, que ocorre num dia normal da semana e não conta como dispensa justificável para faltar ao trabalho, por sinal. Mas tudo bem, são os EUA; não é o ‘regime de Maduro’. 

Outra excelente opção é o grande intelectual negro e militante histórico Cornell West, candidato independente lançado por uma plataforma de movimentos sociais. Sua candidata a vice é uma mulher de origem muçulmana, Melina Abdullah. Juntos, carregam o slogan: “Verdade, Justiça e Amor”, que se desdobra num programa político composto por 17 injustiças que precisam ser combatidas com novas formas de justiça: justiça maternal negra; justiça para as crianças; justiça para pessoas com deficiência; justiça econômica; justiça educacional; justiça para os idosos; justiça ambiental; justiça de gênero; justiça global; justiça para mortos por armas de fogo; justiça na saúde; justiça para os imigrantes; justiça para a comunidade LGBTQIA+; justiça racial; justiça transformativa; justiça para o eleitor; justiça para o trabalhador. Infelizmente, esta plataforma política progressista só está habilitada a estar nas cédulas eleitorais de 7 estados até o momento. Mas quem se importa? Vida que segue.

Muito mais poderia e deveria ser visibilizado, questionado, denunciado, combatido. Já houve, nos EUA, candidatos indígenas condenados à prisão, como Leonard Peltier, concorrendo às eleições presidenciais enquanto cumpriam pena e que tratavam justamente de combater, simultaneamente, o colonialismo genocida e o encarceramento em massa. Alguém se lembrou de fazer uma postagem em solidariedade a ele numa rede social?

Debater as eleições no centro do império é crucial. Ignorar nosso lado, paradoxal.


Notas:

[1]  Em um dos cartazes do PSL a candidata democrata é chamada de Cop-Mala Harris, em alusão a seu papel “racista” como procuradora-geral da Califórnia, onde liderou o encarceramento em massa de negros e latinos acusados de tráfico de drogas por possuírem pequenas quantidades de entorpecentes. Ver: https://www.instagram.com/claudia_karina2024/p/C9vLdACShR8/

Miguel Borba de Sá

Especial para Opera Mundi



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