Enquanto discussão sobre democracia se foca na Venezuela, nos EUA candidatos de esquerda são ignorados: apenas em alguns estados é possível votar neles
Enquanto todos os olhos seguem voltados para a qualidade da
democracia na Venezuela, onde a extrema-direita recusa-se novamente a
reconhecer resultados eleitorais, o debate sobre as eleições norte-americanas,
mesmo entre a esquerda, nem sequer discute a qualidade da democracia, ou falta
dela, no Grande Irmão do Norte. Reféns do estreito campo discursivo que oscila
entre o conservadorismo e o liberalismo, parece que ficamos presos a discussões
estéreis que não ultrapassam o bipartidarismo do mundo político capitalista
oficial, i.e., Democrata vs. Republicano.
No meio disso, movimentos realmente populares, antirracistas
e antipatriarcais permanecem silenciados, como é o caso das candidatas a
presidenta e vice-presidenta pelo Partido Socialismo e Liberação (PSL), Claudia
de la Cruz e Karina Garcia, respectivamente uma mulher negra e outra hispânica,
de origem trabalhadora. Ambas estão dispostas a mudar o sistema político do seu
país e não apenas a chegar ao poder para manter tudo como está. Mas ninguém por
aqui fala delas. O grande problema é que, ao embarcarmos neste apagamento das
vozes negras, feministas, anticapitalistas e periféricas, nós nos tornamos
cúmplices do mesmo sistema que dizemos combater.
Apesar de seu partido possuir praticamente o mesmo nome do
PSOL no Brasil, é curioso que nem os psolistas nem militantes
de outras agremiações de esquerda brasileiras tenham dada alguma atenção às
candidatas socialistas e libertárias dos EUA, mesmo quando comenta-se sobre o
processo eleitoral yankee. É uma pena que seja assim, além de um
grave erro político. Pois o slogan das candidatas da esquerda
estadunidense trata justamente daquilo que as esquerdas daqui se esquecem de
falar:
“Termine com o capitalismo antes que ele termine conosco”.
Em inglês, o fim da frase tem duplo sentido, podendo
significar também que o capitalismo está acabando com os Estados Unidos (Before
It Ends US).
Sua propaganda não é destinada a capturar o ‘eleitor-médio’
ou a ser mais palatável para a ‘classe média’. Trata-se de uma verdadeira
campanha da classe trabalhadora, cujo objetivo principal não é um cargo no
sistema político burguês mas, principalmente, atuar de forma pedagógica,
educando as massas – e a si próprios – durante o processo. No plano doméstico,
são bem diretas ao denunciar os “patrocinadores corporativos” da campanha de
Kamala Harris[1]. No plano internacional, apresentam sem titubear sua posição
sobre as crises atuais, ao defender a solidariedade com “Venezuela e Palestina,
unidas contra o imperialismo estadunidense”. Não se trata, portanto, de duas
mulheres não-brancas que querem gerenciar o genocídio em Gaza ou o golpe em
Caracas, mas de duas revolucionárias que usam a eleição como tática de
mobilização, formação e organização dos setores populares em luta.
Em vez de ignorá-las, portanto, deveríamos questionar que
democracia é essa onde os candidatos legalmente constituídos não constam das cédulas
nas urnas de todo o país. Pouco se fala sobre essa aberração escandalosamente
antidemocrática, mas muito se falou sobre Maria Corina Machado não estar
habilitada a ser candidata na Venezuela. Atualmente, as candidatas do PSL nos
EUA estão nas urnas de apenas 9 dos 50 estados que compõem a federação
norte-americana, pois cada estado decide qual candidato presidencial pode
concorrer ali… Mesmo se um trabalhador quiser votar nelas, não poderá fazê-lo
na enorme maioria dos casos. Sequer verá seus nomes na lista de opções no dia
de votação, sem falar da ausência de campanha eleitoral para quem não está
habilitado. Onde está a gritaria política? Onde estão os debates na TV sobre
democracia? Onde estão os articulistas de esquerda? Influencers?
Nada.
Elas são apenas um exemplo. Existem outras opções de
esquerda na corrida presidencial dos EUA, como a grande ambientalista Jill
Stein, do Partido Verde, representante da luta ecossocialista e que, ao
contrário de outros partidos verdes mundo afora, mantém uma inflexível postura
anti-imperialista e anticapitalista. Seu slogan é: People, Planet,
Peace (pessoas, planeta e paz). Sua campanha contém cartazes em
espanhol e até em árabe, com o fim de dialogar com as
comunidades imigrantes subalternizadas na América. Novamente, não estará em
todas as urnas como uma opção no dia da votação, que ocorre num dia normal da
semana e não conta como dispensa justificável para faltar ao trabalho, por
sinal. Mas tudo bem, são os EUA; não é o ‘regime de Maduro’.
Outra excelente opção é o grande intelectual negro e
militante histórico Cornell West, candidato independente lançado por uma
plataforma de movimentos sociais. Sua candidata a vice é uma mulher de origem
muçulmana, Melina Abdullah. Juntos, carregam o slogan: “Verdade, Justiça e
Amor”, que se desdobra num programa político composto por 17 injustiças
que precisam ser combatidas com novas formas de justiça: justiça maternal
negra; justiça para as crianças; justiça para pessoas com deficiência; justiça
econômica; justiça educacional; justiça para os idosos; justiça ambiental;
justiça de gênero; justiça global; justiça para mortos por armas de fogo;
justiça na saúde; justiça para os imigrantes; justiça para a comunidade
LGBTQIA+; justiça racial; justiça transformativa; justiça para o eleitor;
justiça para o trabalhador. Infelizmente, esta plataforma política progressista
só está habilitada a estar nas cédulas eleitorais de 7 estados até o momento.
Mas quem se importa? Vida que segue.
Muito mais poderia e deveria ser visibilizado, questionado,
denunciado, combatido. Já houve, nos EUA, candidatos indígenas condenados à
prisão, como Leonard Peltier, concorrendo às eleições presidenciais enquanto
cumpriam pena e que tratavam justamente de combater, simultaneamente, o
colonialismo genocida e o encarceramento em massa. Alguém se lembrou de fazer
uma postagem em solidariedade a ele numa rede social?
Debater as eleições no centro do império é crucial. Ignorar
nosso lado, paradoxal.
Notas:
[1] Em um dos cartazes do PSL a candidata democrata é chamada de Cop-Mala Harris, em alusão a seu papel “racista” como procuradora-geral da Califórnia, onde liderou o encarceramento em massa de negros e latinos acusados de tráfico de drogas por possuírem pequenas quantidades de entorpecentes. Ver: https://www.instagram.com/claudia_karina2024/p/C9vLdACShR8/
Nicolás Maduro empareda os Estados Unidos, ameaçando vender petróleo e gás só para países do BRICS e Washington recua da proclamação do candidato Edmundo Gonzalez como vencedor nas eleições do dia 28 de julho. pic.twitter.com/PTHwnqA9J7
— Breno Altman (@brealt) August 7, 2024