Todo dia de manhã, diante da pia do hospital, a pediatra intensivista Cinara Carneiro respira fundo, para por um minuto, tenta meditar enquanto lava as mãos e começa a colocar máscara, touca, luvas e as camadas da roupa de proteção que não pesam só no corpo.
Ela vai começar um plantão de 12 horas na UTI de covid-19 do Hospital Infantil Albert Sabin, em Fortaleza, no Ceará. Lá estão internados bebês, crianças e adolescentes que lutam pela vida sem poder segurar nas mãos das mães, dos pais.
"A interação com a criança estando de máscara e
paramentada é algo que gera sofrimento na gente. Na nossa unidade, a gente não
tem permitido a presença dos familiares, como se permitia antes, pelo risco de
contaminação, porque a gente não tem EPI (equipamento de proteção individual)
suficiente para disponibilizar para os pais", contou Cinara Carneiro à BBCNews Brasil.
Ela relata que, às vezes, o paciente chega consciente à UTI,
mas piora, é intubado e acaba morrendo sem que os pais possam acompanhar de
perto esse processo.
Casos graves de covid-19 em crianças são raros e, segundo a
pediatra, a maioria das que acabam precisando de internação na UTI se recupera.
Mas pacientes com problemas crônicos de saúde e comorbidades correm mais risco.
E, ainda que seja minoria, há casos de morte por covid-19 de crianças que não
se enquadram nesse perfil.
"Dói ver uma criança morrendo sem ver os pais. Fica
muita coisa não trabalhada no luto desses familiares, de não ter visto, de não
ter acompanhado de perto fisicamente a piora. Por mais que a gente tente
explicar por telefone, muita coisa não está sendo vista e vivida", diz.
"Quanta fantasia não fica? Quanta coisa imaginada e não
vivida fica? Só o tempo é que vai, depois, trazer essas feridas".
'Não quero que minha mãe sofra'
Na ausência dos familiares, fica para os profissionais de
saúde a responsabilidade de acalmar e acolher os pequenos pacientes diante do
medo e das dores físicas.
"Os meninos que estão conscientes enxergam o que está
acontecendo com os pacientes mais graves, porque é uma unidade aberta. Então,
deve ser muito chocante e dar uma confusão na cabeça deles ver isso. A gente
tenta acolher, suprir na medida do possível a falta dos pais", diz a
pediatra Jessica Lira, que também trabalha na UTI do Hospital Infantil Albert
Sabin.
Um dos momentos mais sensíveis da internação de um paciente
de covid é a intubação. Uma conversa com um adolescente de 14 anos, momentos
antes de ele ser sedado, ficou gravada na memória de Cinara Carneiro.
Enquanto o nível de saturação caia, ele não parava de
repetir: "Não quero que minha mãe sofra, não quero que minha mãe
sofra".
"Eu falei: 'você está precisando de ajuda para
respirar. Eu vou tentar te ajudar nesse momento, mas você vai receber medicação
para dormir, para não sentir dor. E a gente vai estar aqui conversando quando
você acordar'", relata a pediatra.
Mas o menino, que não tinha nenhuma comorbidade quando se
infectou pelo coronavírus, nunca mais acordou.
"Eu tenho muito medo de fazer promessas que eu não
possa cumprir. Nesse dia, eu senti muito medo de ele não ficar bem. E ele não
ficou bem. E perder uma criança que tinha tudo para ficar bem em outros
contextos é muito difícil."
Depois de ver o paciente morrer, Cinara Carneiro tinha outra
missão difícil pela frente: dar a notícia para aquela mãe que o menino tanto
temia fazer sofrer.
"Eu consegui conversar com essa mãe pessoalmente, numa
sala apropriada aqui no hospital. É muito sofrimento porque a covid traz muita
culpa. Os pais se perguntam: 'Será que foi eu quem trouxe o vírus para a casa?'
Nessa família existia muito esse questionamento: 'Como ele pegou?'",
conta.
Fresca na memória da pediatra intensivista Jessica Lira está
a conversa com os pais de outra criança que, assim como o adolescente de 14
anos, não tinha doença prévia alguma e morreu após contrair covid-19.
A menina tinha 2 anos e desenvolveu encefalite, uma
inflamação no cérebro que parece ter sido impulsionada pela contaminação pelo
coronavírus.
"Ela teve morte encefálica. A conversa foi difícil, os
pais estavam com muito sentimento de revolta, tinham muita dificuldade em
entender como que evoluiu para isso. Não sabiam que a covid podia levar a um
quadro como esse", relata Jessica.
Uma das consequências raras, porém possíveis da covid-19 em
crianças, é o desenvolvimento da chamada síndrome inflamatória multissistêmica,
que pode comprometer o cérebro, causando encefalite, ou órgãos importantes como
coração e rins.
No Reino Unido, 1 a cada 5 mil crianças que se infectaram
com coronavírus desenvolveram essa reação do sistema imunológico, segundo dados
do governo britânico.
Os sintomas, que incluem febre alta, pressão sanguínea baixa
e dores abdominais, costumam aparecer cerca de um mês depois do contato com o
coronavírus.
A grande maioria das crianças que se infectam pelo
coronavírus não desenvolve esse processo inflamatório ou se recupera com
tratamento. Mas em alguns casos, a síndrome pode evoluir para um quadro grave.
"O que me emociona mais no dia a dia de trabalho é
falar com os pais dos pacientes, você sente o sofrimento na voz deles. Eles não
estão vendo os filhos, e a gente tendo que explicar, à distância, que a criança
corre risco de morrer. Isso é muito sofrido", completa a médica.
Sem poder tocar no corpo
Somado ao sofrimento de não poder acompanhar o filho no
hospital, os pais não podem tocar no corpo da criança que morreu por covid-19.
Isso porque, como medida importante de controle da infecção,
os corpos de pessoas que morrem após contrair o vírus precisam passar por todo
um tratamento e são entregues embalados, para impedir a propagação do vírus.
"O corpo tem que ser entregue num saquinho, por causa
do risco de contaminação. Então, essa mãe não pega mais nessa pele",
descreve Cinara Carneiro.
A pediatra diz que, desde o início da pandemia, passou a
sofrer ainda mais com a morte dos pacientes, porque, além do luto pela perda,
ela presencia diariamente as limitações que impedem que pais e crianças se
despeçam em vida e até depois da morte.
"Não bastasse você perder um ente querido, você não
pode tocar nele da forma como tocaria antes. A quantidade de sofrimento que
existe ao redor disso tudo é difícil. A gente é treinado para cuidar, além de
curar. E a gente não está podendo cuidar como antes", diz.
"Se eu não posso entregar o corpo da criança a uma
família, para ela tocar e se despedir, eu não estou conseguindo cuidar 100%.
Então, a gente tem sofrido muito com isso."
Vaquinha para tablets para chamada em vídeo
Num esforço para minimizar o sofrimento de pais e crianças,
médicos e enfermeiros do Hospital Albert Sabin fizeram uma vaquinha entre eles
para comprar tablets.
Conseguiram equipar todas as unidades de internação com um
aparelho, e os pequenos pacientes ganharam de presente poder ver os pais por
meio de chamadas em vídeo.
Segundo Cinara Carneiro, isso trouxe alegria a pais e
crianças, em meio a todas as dificuldades. "A gente fez mais de cem
video-chamadas entre familiares e pacientes. Esse contato da criança com os
pais por vídeo diminuiu bastante o estresse."
O equipamento também ajuda a trazer acolhimento para as
crianças num dos momentos mais sensíveis, mas também felizes do processo de
recuperação da doença: a hora da retirada da intubação e dos sedativos.
"Muitas vezes a criança pergunta pelos pais quando
acorda. A gente tenta levar o tablet e fazer vídeo-chamada com o familiar e
explicar para a criança porque ela está sozinha naquele momento na UTI",
diz Cinara Carneiro.
A pediatra diz que, nesse momento, a presença de psicólogos
que atuam na UTI também tem sido fundamental.
"Eles nos ajudam muito nesse trabalho de levar outras
ferramentas de cuidado além do olhar de médico. Quando a criança acorda, além
de usar o tablet, a gente tenta levar um lápis de cor, um papel, algo para
colorir."
Alta virou momento de festa
Se a perda de uma paciente gera enorme sofrimento, a alegria
de ver a recuperação de uma criança que já esteve em estado grave é o principal
combustível para continuar trabalhando, diz Cinara.
"O momento da alta já era festejado antes, mas agora a
gente tem festejado dez vezes mais. A gente coloca balão na beira do berço
quando está dando alta, porque a gente está entregando finalmente a criança ao
familiar. É um momento muito feliz para o profissional de saúde."
Jessica Lira conta do bate-papo que teve com um adolescente
que se recuperou da covid-19 depois de ficar dias intubados.
"Eu perguntei: 'Você andou saindo de casa, né?' Ele
respondeu: 'Doutora, você acredita que eu fui o único que não saí da família e
eu que fiquei doente? Eles trouxeram a doença para casa'", conta.
Realmente, em muitos casos quem acaba transmitindo o vírus
para as crianças são os familiares, já que as escolas permaneceram fechadas
durante quase todo esse período de pandemia.
Cinara Carneiro diz que observou aumentos de internações nos
períodos que se seguiram ao Ano Novo e ao Carnaval. E faz um apelo:
"A gente não sabe o impacto que a covid poderá ter
sobre uma criança. Sabemos que existe a síndrome inflamatória sistêmica,
condição grave associada à covid. Quem vai ter? A gente não sabe. Como prevenir
isso? Diminuir a chance de contágio, evitar aglomerações, esperar a vacina.
Temos que cuidar dos nossos pequenos."
Fonte: BBC News Brasil
Estadão
Bolsonaro e o coronavírus
No Twitter
Síndrome rara ainda acelerou os batimentos da criança, que precisou ficar internada na UTI https://t.co/Lw5WZyP5Na
— Catraca Livre (@catracalivre) March 5, 2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário