Grupo comandado por pastor foi ao Ministério junto a Dominguetti e ofereceu doses de Astrazeneca e Johnson em parceria com Davati
Em março, uma organização evangélica que articulou a
aquisição de vacinas com o Ministério da Saúde (MS) ofereceu imunizantes da
AstraZeneca e da Johnson para prefeituras e governos estaduais junto à Davati
Medical Supply, revela apuração exclusiva da Agência Pública. A reportagem teve
acesso à carta encaminhada aos prefeitos e governadores pela Secretaria
Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) — presidida pelo reverendo Amilton
Gomes de Paula — na qual a entidade oferece as doses no valor de US$ 11 a
unidade, com prazo de entrega de até 25 dias. O valor seria 3 vezes maior que ofechado pelo Governo Federal para a mesma vacina da AstraZeneca com a Fiocruz,
que foi de US$ 3,16, e o dobro do valor do Instituto Sérum, de US$ 5,25.
Conforme a apuração, a carta da Senah teria sido enviada a diversas prefeituras da região Sul do país. Uma delas foi parar em Ijuí, município de pouco mais de 80 mil habitantes no noroeste do Rio Grande do Sul. A Agência Pública conversou com Luciana Bohrer (PT), vereadora do gabinete coletivo das Gurias, na cidade. Ela conta que tomou conhecimento da oferta por meio de uma pessoa ligada à Senah e que não teve contato com representantes da Davati.
Na época, de acordo com a vereadora, a organização evangélica junto à Davati já haviam tentado “por mais de trinta dias” negociar diretamente em reuniões com o Ministério da Saúde em Brasília, mas não teria obtido sucesso. “Eram 400 milhões de doses, que eu me lembre, ainda seria fechado em quatro pacotes de 100 milhões”, diz Bohrer. A carta da entidade chegou à vereadora de Ijaí no dia 23 de março de 2021 e foi encaminhada ao prefeito Andrei Cossetin, do Progressistas (PP). Segundo Bohrer, a negociação não foi para frente. Procurada pela reportagem, a assessoria do prefeito afirmou que ele estava em viagem e não respondeu até a publicação da reportagem.
O reverendo Amilton Gomes, fundador e presidente da Senah,
esteve no Ministério da Saúde, conforme fotos publicadas em suas redes sociais
no dia 4 de março de 2021. Na postagem ele afirma que se reuniu com
representantes da pasta “para articulação mundial em busca de vacinas”. Na visita,
estava ao seu lado o policial militar de Minas Gerais Luiz Paulo Dominguetti,
que afirmou à Folha de S. Paulo que o diretor do Departamento de Logística
(DLOG) do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, teria cobrado propina
para compra de vacinas . Também esteve na visita o major da Força Aérea
Brasileira (FAB) Hardaleson Araújo de Oliveira, antigo conhecido do pastor.
A carta da Senah encaminhada aos gestores é assinada por Amilton Gomes e indica um e-mail da organização religiosa, da Davati e do empresário Renato Gabbi como contatos para “maiores esclarecimentos”. Gabbi é dono de um bar em Chapecó, em Santa Catarina. A reportagem procurou o empresário, que não respondeu até a publicação.
Roberto Dias, que foi indicado ao cargo pelo líder de governo na Câmara, Ricardo Barros (PP/PR), foi exonerado nesta quarta-feira (30/06), após denúncia do jornal.
Também teriam participado desse encontro, segundo Dominguetti, o tenente-coronel Marcelo Blanco, que era assessor do DLOG na gestão de Roberto Dias, e um empresário de Brasília.
A reportagem procurou o Ministério da Saúde e questionou a
pasta sobre a visita da Senah, tratativas de negociação de vacina e relações
com Luiz Paulo Dominguetti. A assessoria não respondeu até a publicação.
Líder da Senah criou frente parlamentar religiosa
Davati procurou Pazuello para vender vacinas
Também em março, um representante oficial da Davati Medical Supply procurou o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello enquanto ele chefiava o ministério para negociar a venda de vacinas, revelam documentos que Pública acessou via consulta de Acesso à Informação do governo federal.
De acordo com a troca de emails, o advogado Julio Adriano de Oliveira Caron e Silva procurou Pazuello no seu email oficial da pasta no dia 9 de março deste ano. Na mensagem ele oferecia 300 milhões de doses da vacina AZD1222, da Astrazeneca, para compra imediata pelo Ministério da Saúde. O advogado informou que representava a empresa Davati Medical Supply LLC.
Em entrevista à reportagem, Adriano Caron confirmou representar a Davati. Documento da empresa também o confirma como representante no Brasil. Não há menção a outros representantes, como Luiz Paulo Dominguetti Pereira.
O advogado disse não conhecer Dominguetti. “Como a empresa me deu uma autorização de apenas representá-la aqui e oferecer as vacinas, eu não sei se ela fez isso com outras pessoas. Talvez tenha feito, mas eu não conheço essa pessoa, não sei das relações dele com o governo”, disse.
Caron também disse desconhecer qualquer operação da empresa e de que a Davatti estaria ofertando a vacina da Johson.
O email enviado por Caron ao Ministério da Saúde foi respondido no dia seguinte, 10 de março, pelo chefe de Gabinete do Ministro de Estado da Saúde, o capitão Paulo César Ferreira Junior. O militar está à frente do gabinete desde maio de 2020, quando Pazuello se tornou ministro. Homem de confiança de Pazuello, ambos estiveram na intervenção federal em Roraima, em 2018, e receberam a Ordem do Mérito Forte São Joaquim.
Em resposta ao advogado, o capitão pediu uma carta de autorização da Astrazeneca que concordasse com a intermediação da Davati. Caron disse à Pública que as negociações não avançaram porque a empresa não o retornou com os documentos solicitados pelo Ministério da Saúde.
“Dando seguimento com a Davati, pedindo maiores informações sobre as vacinas, eles não conseguiram me confirmar a disponibilidade do estoque e nem de que eles estavam autorizados pela empresa de vender vacinas aqui no Brasil, então o negócio não seguiu em frente”, justificou Caron. “Não marquei reunião nenhuma e a conversa não seguiu em frente”, acrescentou.
Ainda segundo o advogado, “a Davati deixou bem claro que iria buscar junto à fabricante das vacinas toda a documentação necessária para vender”. “Se ela estava tentando negociar com a Astrazeneca a possibilidade de oferecer essas vacinas para o Brasil, ou qualquer outro país, e ela não conseguiu por algum motivo, talvez seja esse o motivo de que ela não me mandou a informação porque o negócio seria fechado com a Astrazeneca, a Astrazeneca que iria fornecer a vacina. Se ela não conseguiu autorização da Astrazeneca para vender, parou de me mandar informação e eu não poderia vender um produto que ela não tinha”.
Linha do tempo
- 25 de fevereiro — segundo Dominguetti, diretor de logística do MS pediu propina para oferta de vacinas feita em nome da Davati
- 4 de março — pastor Amilton Gomes da Senah posta foto no MS e anuncia articulação para vacinas
- 23 de março — carta da Senah assinada por Amilton Gomes chega a Ijaí oferecendo vacinas da Davati
Dominguetti, que afirmou à @constancarezend ter recebido pedido de propina para negociar vacinas, afirmou hoje na CPI que o 1º contato com o Ministério da Saúde ocorreu junto a grupo religioso.
— Bruno Fonseca (@obrunofonseca) July 1, 2021
É essa a organização que mostramos hoje na @agenciapublica https://t.co/gsC9w6RMnB