Oito anos depois, ninguém foi responsabilizado criminalmente
pela perda dessas vidas e pelos milhares de atingidos em Mariana. Esta é a
estratégia que se repete no caso de Brumadinho.
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Depois do quinto aniversário da tragédia-crime de
Brumadinho, uma sessão solene no Congresso na quarta-feira passada
(06/03), homenageou as 270 vítimas fatais da Vale. Passou em brancas nuvens na
imprensa. Isso apesar do “gancho” evidente proporcionado por outro fato
relacionado - esse sim noticiado - que ocorreu no mesmo dia: a votação do HC
do presidente da Vale à época do rompimento da barragem, Fabio Schvartsman, que
pediu o trancamento da ação criminal em que é réu por homicídio doloso
qualificado.
Ou seja, o executivo sequer admite ir a julgamento apesar de estar provado no
processo que a instabilidade da barragem era de conhecimento da companhia por
ele presidida, que inclusive pressionou a consultoria Tuv Süd a conceder o
certificado de conformidade da barragem, apesar do risco constatado. Os
engenheiros da Tuv Süd e outros executivos da Vale, além de Schvartsman, estão
entre os 15 réus da ação que os responsabiliza pelas decisões que
resultaram nas 270 mortes.
Dois dos três integrantes da Segunda Turma do TRF-6 se manifestaram a favor do
pedido do ex-presidente da Vale - um deles ainda não se pronunciou e os votos
ainda podem ser alterados até 12 de março.
Nas notícias sobre a vitória parcial de Schvartsman não se ouviu a Avabrum - a
associação dos familiares das vítimas de Brumadinho - que no mesmo dia pedia
Justiça logo ali, no Congresso Nacional, pelas mortes de suas “jóias”, como se
referem aos filhos, pais, mães, irmãos, noivos, esposos, amigos, afogados no
mar de lama que se estendeu por 300 quilômetros e afetou a população de 17
cidades.
A Vale, que faz propaganda sobre o apoio que teria dado a familiares de vítimas
e comunidades atingidas pela lama, lutou - e ainda luta - na Justiça para
reduzir o valor das indenizações e da reparação de danos.
Exatamente como fez e continua fazendo com os atingidos pelo rompimento de
outra barragem, em novembro de 2015, controlada pela Vale e BHP Billiton, que
destruiu um distrito de Mariana e provocou a morte de 19 pessoas. Até mesmo uma
hidrelétrica que tem a companhia como sócia-proprietária e teve seu
reservatório invadido pela lama trava uma batalha jurídica para ser ressarcida,
como revelou reportagem da Pública desta semana.
Oito anos depois, ninguém foi responsabilizado criminalmente pela perda dessas
vidas e pelos milhares de atingidos em Mariana. Esta é a estratégia que se
repete no caso de Brumadinho.
Primeiro a companhia manobrou para que o processo, que corria em Brumadinho
desde 2019, fosse transferido para a Justiça Federal em Belo Horizonte, o que
fez com que voltasse à estaca zero. Por isso o julgamento, do qual o
ex-presidente da Vale tenta escapulir, ainda não foi realizado. O HC de seu
ex-presidente é mais um capítulo dessa história pela impunidade.
Como diz a Avabrum, um crime dessa magnitude não pode ficar sem culpados. Não
há dinheiro que pague as vidas perdidas ou impeça novos crimes de
mineradoras.
Boa parte das vítimas fatais trabalhava para a própria Vale; muitos morreram
dentro do refeitório da companhia que, como também era de conhecimento dos
executivos, estava na rota dos rejeitos em caso do acidente previsível diante
das condições da barragem. Mas a Vale deixou a lama rolar.
Schwartsman, que assumiu o cargo prometendo que nunca mais haveria outra
Mariana, recebia uma remuneração tão alta quanto deveria ser sua
responsabilidade. De acordo com matéria de 2018 da revista Exame (um ano antes de
Brumadinho), o cargo de presidente da Vale era o segundo mais bem pago por
empresas brasileiras, com salário superior a 60 milhões de reais por ano.
Segura de seu poder e da cautela da imprensa ao tocar no nome da companhia -
que é anunciante de peso e conhecida por sua extensa banca de advogados - a
Vale nem se preocupou com a repercussão negativa ao tomar outra atitude de
arrepiar: pediu e obteve na mesmíssima quarta-feira 6 de março uma liminar na
Justiça para proibir a comunidade Kamakã, uma das seis etnias do
povo Pataxó HãHãHãe, de sepultar o cacique Merong Kamakã nas terras em que
viviam, reivindicadas pela companhia.
Merong, combativa liderança indígena de 36 anos, foi encontrado morto na
segunda-feira passada, em circunstâncias ainda obscuras.
A empresa limitou-se a divulgar uma nota, em que disse lamentar o falecimento
do cacique e afirmou que busca uma "solução com a comunidade que preserve
suas tradições, dentro da legalidade" (grifo meu).
Mas os “ganchos” desta quarta-feira não foram suficientes para alçar os
atingidos pela maior tragédia humanitária do Brasil ao noticiário. A Vale até
mereceu um comentário indignado - mas a favor da companhia.
Na última edição da “Veja”, uma matéria na editoria de Política dá ares de escândalo a
uma suposta ingerência do governo na cúpula da companhia e critica: “Lula, como
se sabe, vem intimidando a Vale abertamente com suas falas, o que tem provocado
prejuízos para a empresa privada” (grifo meu).
Imagino que o jornalista se refira à fala do presidente da República, de 28 de
fevereiro passado, em que ele disse: “A Vale não pode pensar que ela é dona do
Brasil. Ela não pode pensar que ela pode mais do que o Brasil. Então, o que nós
queremos é o seguinte: as empresas brasileiras precisam estar de acordo com
aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro. É só isso
que nós queremos”.
Faltou a imprensa mostrar nesta semana que a Vale também não é dona do
noticiário.
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Segundo levantamento, em 4 meses, Syngenta e Bayer registram
autorização para exportar ao Brasil 2,2 mil toneladas de pesticidas com
substâncias com uso banido na União Europeia
O Brasil é o destino de mais da metade dos registros de
exportações da União Europeia de agrotóxicos proibidos na Europa e associados à
morte de abelhas. São inseticidas à base de três neonicotinóides: tiametoxam,
imidacloprido e clotianidina. Entre setembro e dezembro de 2020, mais de 3,8
mil toneladas dessas substâncias foram registradas para serem exportadas
na Agência Europeia das Substâncias Químicas (ECHA) — o Brasil era o
destino de 2,2 mil toneladas, 58% do total.
Os dados inéditos, obtidos com exclusividade pela Agência
Pública e a Repórter Brasil, são resultado de um levantamento da Public Eye, organização suíça,
em parceria com a Unearthed, braço de jornalismo investigativo do
Greenpeace. É a primeira vez que são revelados números sobre a
quantidade dos pesticidas neonicotinoides enviados ao exterior por países
europeus. As substâncias imidacloprido, clotianidina e tiametoxam foram banidas
na União Europeia em 2018. Desde setembro de 2020, empresas de lá são obrigadas
a notificar exportações de produtos com esses princípios ativos. As
notificações são estimativas emitidas antes de o produto ser despachado.
Os produtos registrados para serem enviados ao Brasil foram
produzidos por duas empresas: Syngenta e Bayer. Ao todo, eles continham 318
toneladas das substâncias ativas proibidas.
O principal deles foi o Engeo Pleno S, produzido pela
Syngenta na Bélgica — a empresa registrou mais de 2,2 milhões de litros do
produto para ser enviado para o Brasil. Ele é o mais vendido pela Syngenta no
país e costuma ser utilizado principalmente por produtores de soja. O Engeo
contém uma mistura do neonicotinóide tiametoxam e do inseticida
lambda-cialotrina, também altamente tóxico para as abelhas.
Às organizações, a Syngenta respondeu que “seus produtos são seguros e
efetivos quando usados dentro das recomendações” e que “a empresa atua sempre
de acordo com a legislação e regulamentação local”. A Syngenta ainda afirmou
que “atesta a segurança e a eficácia do tiametoxam” e que, “sem pesticidas, as
perdas [na produção agrícola] seriam catastróficas”.
Já a Bayer respondeu que “apesar de aceitar a decisão da
União Europeia de cessar a aprovação aos neonicotinoides, a empresa destaca que
agências reguladoras por todo o mundo confirmaram o uso seguro desses produtos
após revisões cuidadosas.”. A empresa, contudo, confirmou que “a pulverização
deve ser estritamente evitada em plantações que atraiam abelhas durante a
floração para evitar exposição desses insetos”.
Além do Brasil, outros 59 países estão na lista de destinos
dos produtos proibidos na União Europeia. Os principais são a Rússia, Ucrânia,
Argentina, Irã, África do Sul, Indonésia, Gana, Mali e Cingapura. Já a lista
dos maiores exportadores é encabeçada pela Bélgica, França e Alemanha, seguidos
por Espanha, Grécia, Reino Unido, Dinamarca, Áustria e Hungria.
Morte de meio bilhão de abelhas no Brasil esteve relacionada
à pesticida do grupo dos neonicotinóides
Os neonicotinóides são quimicamente semelhantes à nicotina e
matam insetos atacando seu sistema nervoso central. Eles foram introduzidos na
década de 1990 e são os inseticidas mais usados no mundo. Altamente solúveis
em água, eles podem ser facilmente transportados para lagos, rios e lençóis
freáticos, além de se acumularem no solo.
No Brasil, MPF tenta barrar pulverização com
neonicotinóides
Os dados obtidos pela Unearthed e Public
Eye foram publicados no momento em que a Comissão Europeia avalia pôr
fim à fabricação dos produtos para exportação, um passo adiante após a
proibição do uso das substâncias na Europa.
Em resposta às organizações que realizaram a investigação, a
Hungria e o Reino Unido afirmaram que o sistema atual é baseado no
consentimento prévio dos países importadores. Bélgica, Dinamarca e França
afirmaram apoiar uma proibição local de exportação. Na França, a proibição de
exportação de pesticidas proibidos na União Europeia já foi imposta e entrará
em vigor em 2022. Esta medida “deve ser adotada e implementada” na região, diz
o governo francês, porque “não é aceitável expor o meio ambiente e a saúde em
outros países” a estas substâncias. A Espanha também sinalizou proposta nesta
direção. Já a Alemanha diz estar “ansiosa” por propostas concretas da Comissão
Europeia sobre o tema.
No Brasil, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, em
agosto deste ano, uma ação civil pública contra o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para que o órgão
ambiental proíba a pulverização aérea de agrotóxicos com as três substâncias
neonicotinóides exportadas pela Europa (imidacloprido, clotianidina e
tiametoxam), além do pirazol.
O Ibama já havia proibido a pulverização aérea dessas
substâncias em 2012. O órgão, no entanto, liberou provisoriamente a aplicação dos
pesticidas em lavouras de algodão, arroz, cana-de-açúcar, soja e trigo até que
fossem encerrados os processos de reavaliação dos efeitos sobre o meio ambiente
— o que até hoje não ocorreu.
O procurador da República Matheus Baraldi Magnani, autor da
ação civil pública, considera o número de mortes de abelhas um caso
“extremamente grave, subdimensionado e silencioso” e analisa que a omissão do
Ibama consolidou, na prática, a autorização para o uso dos pesticidas. “Tal
problema é diariamente agravado pela inconstitucional escolha do Poder Público
em priorizar fortes setores econômicos em detrimento do meio ambiente”,
argumentou Magnani no documento. “A pulverização aérea de neonicotinóides e
pirazol é, numa analogia, uma assassina silenciosa para as abelhas, assim como
o monóxido de carbono é para os humanos”, disse.
Os pedidos do MPF restringem-se à aplicação dos produtos com
uso de aviões. Caso a Justiça Federal acolha os requerimentos, ainda será
permitida a pulverização terrestre.
Meio bilhão de abelhas mortas em três meses
Em 2019, um levantamento da Pública e Repórter
Brasil mostrou que mais de 500 milhões de abelhas foram encontradas
mortas em quatro estados brasileiros em apenas três meses, entre
dezembro de 2018 e fevereiro de 2019. Foram 400 milhões no Rio Grande do Sul, 7
milhões em São Paulo, 50 milhões em Santa Catarina e 45 milhões em Mato Grosso
do Sul, segundo estimativas de Associações de apicultura, secretarias de
Agricultura e pesquisas realizadas por universidades.
Em Cruz Alta, município de 60 mil habitantes no Rio Grande
do Sul, mais de 20% de todas as colmeias foram perdidas apenas
entre o Natal de 2018 e o começo de fevereiro de 2019. Cerca de 100 milhões de
abelhas apareceram mortas, segundo a Apicultores de Cruz Alta (Apicruz).
O principal causador das mortes das abelhas é o contato com
agrotóxicos à base de neonicotinóides e de pirazol, proibido na Europa há mais
de uma década. Um estudo de 2018 da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp) demonstrou que 67% das
mortes em coletas de abelhas analisadas em São Paulo — estado que representa
10% da produção nacional de mel — ocorreram devido ao uso incorreto dos
inseticidas.
As abelhas são as principais polinizadores da maioria dos
ecossistemas do planeta e promovem a reprodução de diversas espécies de
plantas. No Brasil, das 141 espécies de plantas cultivadas para alimentação
humana e produção animal, cerca de 60% dependem em certo grau da polinização
deste inseto. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO), 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no mundo
dependem das abelhas.
Sem abelhas, sem alimentos; insetos são responsáveis pela
polinização e reprodução de diversas espécies de plantas
Cada espécie é mais propícia para polinização de
determinadas culturas, explica Carmem Pires, pesquisadora da Embrapa e doutora
em Ecologia de Insetos. O resultado é que, se as abelhas fossem extintas,
deixaríamos de consumir frutas como a mangaba. Ou elas ficariam mais caras, já
que o trabalho de polinização para produzi-la teria que ser feito manualmente
pelo ser humano.
A estudiosa conta que até em lavouras que não são
dependentes da ação direta dos polinizadores, a presença de abelhas aumenta a
safra. “Na de soja, por exemplo, é identificado um aumento em 18% da produção.
É importante destacar também o efeito em cadeia. As plantas precisam das
abelhas para formar suas sementes e frutos, que são alimento de diversas aves,
que por sua vez são a dieta alimentar de outros animais. A morte de abelhas
afeta toda a cadeia alimentar.”
No Brasil, há mais de 300 espécies de abelhas nativas —
entre elas Melipona scutellaris, Melipona quadrifasciata, Melipona fasciculata,
Melipona rufiventris, Nannotrigona testaceicornis, Tetragonisca angustula. Em
todo país, contando com as estrangeiras, há cerca de 1,6 mil espécies do
inseto, segundo relatório do Ibama.
O UOL News repercute a reportagem publicada pelo UOL sobre
fazendeiros que jogam agrotóxicos sobre a Amazônia e outros biomas para
acelerar o desmatamento, segundo um levantamento inédito feito pela Repórter
Brasil e Agência Pública.
A Pública levantou os 16 casos de
absolvições em segunda instância da Lava Jato e acompanhou o impacto da
condenação na vida de três desses réus
Executivo da OAS não conseguiu mais
emprego e não recebeu direitos trabalhistas Dentista aposentada foi usada como
“laranja” pela filha doleira Gerente de posto passou por duas
condenações
“A única coisa que ouvi foi o
cachorro latindo, mas de um jeito diferente. Abri a varanda e vi que ele estava
assustado. Quando eu saí do quarto, ouvi a campainha da cozinha, da porta da sala
e pessoas forçando a maçaneta. Num primeiro momento, achei que fosse assalto,
porque faziam muita força. Fui até a porta e perguntei que estava acontecendo,
e uma voz respondeu: ‘Aqui é a Polícia Federal [PF], abra imediatamente’.
Estava de cueca [era 6h30 da manhã], é constrangedor. Fui me vestir e fizeram
uma busca e apreensão na minha casa, levaram computador, celular, pastas, tudo
que tinha da OAS. Minha esposa estava grávida de cinco meses. Reviraram tudo e
pediram para que eu os acompanhasse”, relembra hoje Fernando Augusto Stremel
Andrade, ex-gerente de gasoduto da OAS.
Acusado de envolvimento no esquema
de corrupção da empresa, como o então presidente da empreiteira Léo Pinheiro e
os diretores Agenor Franklin Medeiros e Matheus Coutinho, o ex-gerente foi
conduzido coercitivamente para a PF na sétima fase da Operação Lava Jato,
denominada Juízo Final, no dia 14 de novembro de 2014. Foi liberado em seguida,
mas em 5 de agosto de 2015 condenado a quatro anos de prisão em regime aberto
por lavagem de dinheiro.
“O [Sergio] Moro achou que eu, com
a função que tinha, deveria saber o que estava acontecendo. A noção para quem
está de fora pode ser essa, mas não é isso que ocorre na obra”, afirma sobre a
condenação. Absolvido em segunda instância por falta de provas em 27 de
novembro de 2016, ele não conseguiu mais se recolocar no mercado de trabalho.
“Estou marcado pela Lava Jato. A maioria das empresas tem o setor compliance.
Não passa, cara, mesmo com a minha absolvição por 3 a 0. Fui condenado, acusado
de corrupção, e as pessoas questionam. Não tem o que fazer”, lamenta.
Stremel Andrade foi um dos 15 réus
condenados pelo ex-juiz Sergio Moro absolvidos pelo Tribunal Regional da 4ª
Região (TRF4), em Porto Alegre (RS), segundo dados obtidos com exclusividade
pela Agência Pública. Como ele, muitos tiveram suas vidas impactadas por
sentenças proferidas na 13ª Vara Federal, de Curitiba, mesmo depois de terem
sido anuladas em segunda instância pelos desembargadores João Pedro Gebran
Neto, Carlos Eduardo Thompson Flores e Leandro Paulsen.
Foi assim com Maria Dirce Penasso,
cirurgiã dentista aposentada, à época com 66 anos, residente em Vinhedo,
interior de São Paulo. A pacata vida da senhora foi revirada do avesso ao ter
seu nome atrelado à Lava Jato, no dia 17 de março de 2014, na primeira fase da
operação, quando sua casa foi alvo de busca e apreensão. Acusada de lavagem de
dinheiro e evasão de divisas, Maria Dirce foi condenada por Moro a dois anos,
um mês e dez dias de prisão (depois comutada para prestação de serviço à
comunidade). O motivo: sua filha, a doleira Nelma Kodama, abriu uma conta em
seu nome em Hong Kong, que teria sido usada para movimentar dinheiro de
corrupção. Maria Dirce, que sempre alegou desconhecimento das transações de
Nelma, foi absolvida pelo TRF4 em dezembro de 2015, pouco mais de um ano depois
da condenação. Além da decepção com a filha, sobraram sequelas da operação,
segundo o seu advogado, Eduardo Pugliesi Lima. “Ela tinha uma conta no mesmo
banco há 30, 40 anos. Quando foi acusada, começaram a dificultar tudo, para
fazer qualquer tipo de movimentação. Já tinha mais de 70 anos, não precisava
passar por isso”, conta Pugliesi Lima.
Saga mais complexa é a do gerente
do Posto da Torre, André Catão de Miranda, preso no dia 17 de março de 2014, na
primeira fase da Lava Jato. Foi essa prisão que inaugurou e batizou a operação
– em referência ao lava-jato do posto. Catão foi preso temporariamente como
suspeito de integrar uma organização criminosa liderada por seu patrão, o
doleiro Carlos Habib Chater. Há 11 anos ele era gerente financeiro do posto e
movimentava as contas de Chater, o que lhe valeu uma condenação por lavagem de
dinheiro da qual foi absolvido pelo TRF4 em setembro de 2015. No ano passado, o
administrador foi novamente condenado por Moro – dessa vez por supostamente
pertencer a uma organização criminosa – em um dos últimos atos do juiz na 13ª
vara antes de assumir o Ministério da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. Ele
aguarda o recurso ser julgado no TRF4.
Dados inéditos obtidos pela
Agência Pública revelam que 15 réus condenados pelo ex-juiz Sergio Moro foram
absolvidos pelo TRF4
Abandonado pela OAS
Engenheiro formado pela PUC do
Paraná em 1985, com pós-graduação em engenharia de dutos desde 2007, o
ex-gerente de gasoduto da OAS tem currículo de executivo de primeira linha.
Antes de trabalhar na OAS, foi funcionário na Petrobras, onde permaneceu entre
1998 e 2007, com a responsabilidade de avaliar a viabilidade técnica e
econômica de empreendimentos da empresa no setor de gasoduto. Foi a Petrobras
que o indicou para trabalhar na OAS, na construção de um gasoduto no Amazonas,
o Urucu-Coari-Manaus, inaugurado em novembro de 2009 e recentemente vendido
junto com 90% da Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) para um grupo
empresarial que reúne a francesa Engie e o fundo canadense Caisse de Dépôt et
Placement du Québec (CDPQ), por US$ 8,6 bilhões (cerca de R$ 33 bilhões), em
abril do ano passado.
Em 2010, Stremel Andrade foi
deslocado para Alagoas, dessa vez para trabalhar na concepção do gasoduto Pilar-Ipojuca.
Um ano depois, assinou um contrato representando a OAS com a empreiteira
Rigidez, pertencente a Alberto Youssef, no valor de R$ 1,8 milhão. Os problemas
começaram aí.
“Não vou dizer que fui obrigado,
mas a OAS me orientou a assinar o contrato para uma divisão de dividendos e
participações. É uma divisão interna dos lucros de uma obra, mas eu não
imaginava que isso ia para um agente público ou para a Petrobras. Eu era um
funcionário operacional”, justifica Stremel Andrade. “Você pode me perguntar:
‘Pô, o Léo Pinheiro, Agenor, não participava de reunião com você?’. Sim, todo
mês a gente se reunia, mas nós falávamos do avanço físico de obra, de
rentabilidade”, afirma Fernando, que nem sonhava em ver sua casa invadida pela
PF como aconteceu em novembro de 2014.
Ele lembra que foi conduzido
coercitivamente para prestar depoimento na PF em uma sexta-feira e, na segunda,
já estava de volta ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), para
onde havia sido deslocado pela OAS em 2013. Ali supervisionava a construção da
adutora que vai levar o lixo químico tratado de uma das refinarias da Petrobras
até Maricá para ser despejado 3 km adiante no mar. “Minha equipe veio conversar
comigo para saber o que havia acontecido. Ninguém esperava essa situação.
Trabalhei normal, administrando esse problema e a continuidade da obra. Até a
sentença, que foi em meados de 2015, era um sufoco, porque ia para Curitiba,
tinha audiência de acusação, defesa”, relembra.
Questionado sobre por que preferiu
ficar em silêncio no depoimento a Sergio Moro, o ex-executivo da OAS afirma que
“essa era uma estratégia da empresa”. “Antigamente, se condenado na segunda
instância, você não ia preso. O acordo era não falar absolutamente nada, porque
eu poderia ser condenado em segunda instância e, até chegar no STJ, ia demorar
mais 10, 15 anos, todo mundo já ia ter mais de 70 anos. Isso mudou a partir do
momento que a segunda instância começou a prender.”
Entre setembro de 2015 e abril de
2016, Stremel Andrade permaneceu afastado, sem exercer nenhuma função na OAS,
ainda que recebendo salário. Quando retornou ao cotidiano da empresa, ele
relata que permaneceu marginalizado. “Eu não tinha nem mesa para trabalhar”,
conta. O executivo não era mais convocado para reuniões e tampouco sabia de
detalhes operacionais da companhia.
Meses depois, em novembro de 2016,
foi absolvido por unanimidade pelos três desembargadores do TRF4. Nenhum dos
delatores da OAS havia citado seu nome ao falar sobre as irregularidades
encontradas pela força-tarefa. “Foi um alívio e achei que tudo ia voltar a ser
como era antes, mas isso não aconteceu”, lembra o engenheiro, que continuou a
se sentir escanteado no trabalho.
Em março de 2018, foi demitido “de
maneira fria e calculista” pela OAS sem receber FGTS, férias proporcionais nem
rescisão trabalhista, o que teria acontecido também com outros funcionários da
construtora. Segundo ele, a cúpula da empresa “ficou chateada” com o depoimento
de um dos delatores da empresa, o ex-diretor financeiro Mateus Coutinho de Sá
Oliveira, dizendo que a empresa havia prometido indenizar os diretores queconcordassem em fazer a delação premiada. “Os acionistas se sentiram traídos.
Desde 2018 ninguém recebe mais nada”, diz.
Stremel Andrade diz que pediu uma
compensação para se “reerguer”, movendo uma ação trabalhista contra a OAS no
valor de R$ 4,4 milhões. São 50 salários por danos morais, R$ 385 mil por 138
dias de férias não gozadas e mais R$ 600 mil pela rescisão do contrato de
trabalho – o que ainda não recebeu. Sem emprego, ele ainda sente o peso da
condenação. “Não é mais a mesma coisa. Irmãos e os parentes mais próximos, tudo
bem. Mas o restante da família tem um outro conceito de mim.”
Stremel Andrade ainda é réu em
processo por improbidade administrativa em ação protocolada pela
Advocacia-Geral da União (AGU), por mau uso do dinheiro público. “Como fui
absolvido na ação do MPF, espero que isso conte nessa outra acusação. É uma
agonia sem fim.”
A Pública entrou em contato com a
OAS, que, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que “sobre os temas
rescisórios, a empresa acredita que encaminhará soluções definitivas nas
próximas semanas”. Sobre o depoimento de Sá Oliveira, mencionado por Stremel
Andrade, disse que “jamais efetuou qualquer tipo de pagamento aos ex-executivos
e afirma categoricamente que nunca celebrou tal acordo mencionado”. O advogado
Pedro Ivo Gricoli Iokoi, responsável pela defesa de Sá Oliveira, também não
quis conceder entrevista à Pública, afirmando que “Mateus é colaborador e
possui cláusula de confidencialidade no acordo”.
O Posto da Torre, propriedade do
empresário Carlos Habib Chater, deu origem e nome à Operação Lava Jato
De Vinhedo a Hong Kong
O relógio marcava 0h37 do dia 26
de novembro 2012 quando o visor do celular da doleira Nelma Kodama brilhou. Era
uma ligação vinda de uma operadora do HSBC, na China.
– “Oi, aqui é a Carol, de Hong
Kong DC”.
– “Sim, pode falar, aqui é Maria
Dirce Penasso.”
– “Nós temos algumas perguntas
para você, posso enviar um email para você dar uma olhada?”
– “Sobre qual das 961? Qual
pagamento ?”
– “São perguntas sobre algumas
informações que precisamos, posso lhe enviar um email”
– “Ok, vamos fazer assim, porque
aqui eu estou em outro país e agora é meia noite, ok? Todos os escritórios
estão fechados, pode me fazer um favor, me envie um email, ok? E amanhã eu vejo
o email e você me liga amanhã à noite, pode ser assim? Você entende? Porque
está tudo fechado agora”.
O diálogo, em inglês, foi
traduzido pela PF dois anos depois, ao investigar Maria Dirce Penasso, mãe da
doleira, que era real interlocutora da conversa. “A Maria Dirce não fazia ideia
dessas movimentações, era tudo em inglês. Ela, com a idade que tinha, sem saber
falar outra língua, mal sabendo mexer nas funções básicas de um computador,
jamais conseguiria movimentar o dinheiro de uma conta bancária em Hong Kong”,
contou à Pública o advogado da dentista aposentada, Eduardo Pugliesi Lima.
O uso de seu nome pela filha em
contas que movimentariam dinheiro da corrupção resultou em uma acusação do
Ministério Público Federal (MPF) por evasão de divisas e lavagem de dinheiro. A
mesma denúncia que foi feita contra a filha doleira e seu motorista particular,
Cleverson Coelho de Oliveira, entre outros. Segundo o MPF, Maria Dirce teria
consentido em ceder seu nome para abertura de uma conta em Hong Kong, na China,
intitulada “Il Solo Tuo Limited”, e outra conta da “NGs Prosper Participações
Ltda.”, uma empresa de fachada responsável pela administração de 60
apartamentos no hotel Go Inn, no Jaguaré, zona oeste da capital paulista. As
duas contam serviriam para ocultar o dinheiro do esquema entre empreiteiras e a
Petrobras.
No dia 22 de outubro de 2014,
Maria Dirce Penasso foi condenada a dois anos, um mês e dez dias de prisão,
tendo a pena sido transferida para prestação de serviço à comunidade. Além
disso, Sergio Moro bloqueou os quase R$ 11 mil que estavam em sua conta quando
ela teve a casa alvo de busca e apreensão. Na mesma sentença, sua filha, Nelma
Kodama, foi condenada a 18 anos de prisão por Sergio Moro por lavagem de
dinheiro, evasão de divisas, corrupção ativa e por supostamente liderar uma
organização criminosa. Considerada a primeira delatora da Lava Jato, Nelma teve
sua pena reduzida para 15 anos em 2015. Em junho do ano seguinte ela passou ao
regime semiaberto, com a utilização da tornozeleira eletrônica. Em agosto de
2019, foi autorizada a retirar o aparelho ao ser beneficiada pelo indulto
natalino editado por Michel Temer em 2017, que prevê o cumprimento de um quinto
da pena para não reincidentes. Como Nelma já havia cumprido mais de três anos,
a benesse foi concedida.
Nelma era ligada ao doleiro
Alberto Youssef, um dos nomes mais conhecidos de toda a operação e um dos
primeiros a aderir à delação premiada – ele foi condenado a mais de cem anos de
prisão, em 12 processos, mas ficou apenas três no regime fechado. Além da
relação profissional, os dois mantinham um vínculo sentimental. Por esse
motivo, de acordo com o advogado de Maria Dirce, a mãe de Nelma conhecia
Youssef, que frequentava sua casa. “Ela não sabia dessas transações que eles
faziam. A Nelma visitava ela, mas a Dirce nunca ficou perguntando. A filha já
era adulta, né? A mãe não ficava questionando sobre os afazeres dela”, diz o
advogado.
Em dezembro de 2015, Maria Dirce
foi absolvida pelo TRF4 de todas as acusações que constavam no processo em que
havia sido condenada por Moro. “Quando chega em um tribunal, com outros três
desembargadores, tudo muda, porque eles podem colocar outra visão. A Maria
Dirce provou, através do imposto de renda, que tudo que ela tem foi conquistado
pelos anos de trabalho como celetista. Não houve elevação da renda ou do
patrimônio nos últimos anos”, conta Pugliesi Lima.
Maria Dirce não quis conversar com
a Pública “para não reviver uma história que prefere esquecer”, de acordo com o
advogado.
Nelma Kodama utilizou o nome da
mãe como “laranja” para a abertura de conta em offshore
Duas condenações, uma absolvição
Também o ex-gerente administrativo
André Catão de Miranda diz ter sido pego de surpresa por acusações que
desconhecia. Ele e outras pessoas ligadas ao Posto da Torre foram presos em
março de 2014 em decorrência do mesmo processo que condenou o dono do posto, o
doleiro Carlos Habib Chater, apontado como líder e executor de crimes
financeiros. Por realizar operações de câmbio e pagamentos a mando do patrão,
consideradas irregulares pelo MPF, ele foi detido em Brasília e transferido
para a Casa de Custódia de São José dos Pinhais, no Paraná, onde ficou preso
provisoriamente por sete meses.
“Foi um tremendo desrespeito. Os
dias passavam e ele lá dentro da prisão”, critica o advogado Marcelo de Moura,
defensor de Miranda. “Ele era um funcionário subalterno, que recebia ordens e,
se eventualmente algum ato ilícito foi praticado, aconteceu com o total
desconhecimento [dele]. Ele cuidava da parte financeira, mas exclusivamente da
atividade-fim, que era venda de combustível”, afirma Moura.
Para o MPF, no entanto, o gerente
do posto de gasolina era responsável por fazer pagamentos em uma extensa rede
de lavagem de dinheiro, que envolvia, além de seu patrão, os doleiros Alberto
Youssef, Raul Henrique Srour e Nelma Kodama e um suposto traficante de drogas,
René Luiz Pereira. Duas ações penais foram movidas contra o gerente, uma delas
por tráfico de drogas. Nesse caso, segundo o MPF, Chater teria utilizado, com a
cumplicidade de seu gerente, a estrutura do Posto da Torre para lavar US$ 124
mil provenientes da venda de cocaína na Europa.
Nos depoimentos que prestou na 13ª
Vara de Curitiba, Miranda disse ter feito os pagamentos por determinação do
patrão. Mas, em outubro de 2014, Sergio Moro o condenou a quatro anos de
reclusão em regime semiaberto. Menos de um ano depois da condenação, em
setembro de 2015, o TRF4 absolveu André e manteve as punições de René Luiz
Pereira (14 anos de prisão) e Carlos Habib Chater (cinco anos). Os
desembargadores Leandro Paulsen e Victor Luís dos Santos Laus apresentaram voto
favorável à absolvição, enquanto o relator João Pedro Gebran Neto votou pela
manutenção da condenação em primeira instância.
Segundo Paulsen, “André era um
empregado de Habib, não havendo nenhum elemento que aponte qualquer
enriquecimento”, disse. “O Ministério Público Federal não trouxe elementos
(quebra de sigilo financeiro, fiscal, prova testemunhal ou documental)
demonstrando que o réu (André) auferia recursos derivados de atividade ilícita.
Também parece contrariar a lógica afirmar que Miranda coordenava todo o núcleo
de operações financeiras ilícitas de Carlos Habib sem a obtenção de qualquer
contrapartida específica para tanto”, afirmou o desembargador.
Apesar de absolvido, a condenação
mudou a vida de Miranda para sempre, de acordo com o seu advogado: “O reparo
nunca é suficiente para voltar ao ponto anterior de uma pessoa que não tinha
envolvimento nenhum com atividade criminosa e é surpreendida com uma prisão,
que acaba por perdurar durante sete meses. Essas máculas não podem ser
reparadas, tanto do ponto de vista financeiro quanto emocional”.
Além disso, em outubro de 2018,
Sergio Moro, voltou a condená-lo, dessa vez a dois anos e seis meses em regime
aberto pelo crime de pertencimento a organização criminosa. De acordo com o
ex-juiz, Miranda “fazia pagamentos, recebimentos e lançamentos no Sismoney, ou
seja, na contabilidade informal. Não era meramente um gerente financeiro
regular do Posto, mas pessoa de confiança de Carlos Habib Chater. Não se pode
afirmar que não tinha conhecimento da utilização da estrutura do Posto da Torre
para a prática dos crimes financeiros e dos quais aliás participava”.
A pena foi revertida para serviços
comunitários, mas Miranda “ficou revoltado”, diz o seu advogado. “Ele já tem as
marcas de uma prisão ilegal. Após a absolvição, ele estava reestruturando a
vida aos poucos. Uma notícia pesada como essa gera a sensação de que uma nova
injustiça precisa ser combatida.”
Após a primeira condenação,
Miranda morou em Uberlândia e atualmente trabalha em uma empresa da família, em
Brasília. A nova condenação, diz o advogado, significa uma pá de cal nos planos
do ex-gerente. “O André é o tipo de cidadão que poderia atravessar a vida
inteira sem entrar em uma delegacia, muito menos ser preso. As investigações
mostraram que ele não tinha aparelho de comunicação restrita, possuía um
apartamento adquirido com recurso próprio, utilizando fundo de garantia, e não
tinha automóvel. Ele entrou no bolo de uma investigação precipitada, que
geraram prisões e condenações injustas”, critica.
O recurso no TRF4 já foi
protocolado e a defesa espera o julgamento, que ainda não tem data marcada. Na
avaliação de Moura, a Lava Jato extrapolou limites jurídicos. “Acho que se
elegeu a corrupção, que é um mal a ser combatido, como um tema que extrapola a
legalidade. É como se as armas utilizadas contra a corrupção pudessem ser
ilegais.”
Com ele concorda Maria Carolina
Amorim, coordenadora do escritório do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCRIM) em Pernambuco. “Antes de se ver condenado, o réu é exposto
pela imprensa de forma irreparável, em razão da permissividade que o Judiciário
tem tido com os seus funcionários que vazam informações. Em caso de condenação,
tal dano é ainda maior, motivo pelo qual deve-se exigir mais responsabilidade
do julgador”, diz Maria Carolina.
Outros casos
Além dos já citados Fernando
Stremel, Maria Dirce e André Catão de Miranda, há outras 12 pessoas – entre
elas o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, que teve duas condenações
anuladas pelo TRF4. A primeira, de setembro de 2015, em que foi condenado a 15
anos e quatro meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, foi revogada
em 2017. Em outra ação penal, envolvendo a empresa Engevix, a condenação a nove
anos de prisão foi anulada por insuficiência de provas. Em contato com a
Pública, o advogado Luiz Flávio D’Urso afirmou que Vaccari “se vê injustiçado,
pois somente fez o que lhe competia como tesoureiro do partido: pedia doações
legais para o PT, sempre por depósito bancário e com recibo, jamais recebeu
recursos em espécie. Ele foi um símbolo, um troféu”, afirmou o advogado.
Veja os outros casos em que as
sentenças de Moro foram revistas pelo TRF4:
Mateus Coutinho de Sá Oliveira:
condenado a 11 anos de prisão em agosto de 2015, aderiu à delação premiada e
foi absolvido um ano depois. Ele era diretor financeiro da OAS e foi apontado
pelo MPF como um dos responsáveis pelo departamento de propinas da empreiteira.
André Luiz Vargas Ilário:
ex-deputado federal (PT) foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão em
regime fechado por lavagem de dinheiro e absolvido no ano passado pelo TRF4.
Foi condenado em outras duas ações da Lava Jato: seis anos em um esquema de
lavagem de dinheiro envolvendo uma empresa fornecedora de softwares, e 14 anos
e quatro meses de prisão, em 2015, também por lavagem de dinheiro. As
condenações foram mantidas em segunda instância, mas, como ele já havia
cumprido parte da pena quando foi preso preventivamente, está em liberdade
condicional e com algumas restrições.
Leon Vargas Ilário: foi absolvido
junto com irmão, André Vargas, no mesmo processo por lavagem de dinheiro. Em
outubro do ano passado, na ação penal envolvendo o esquema de softwares, que
também afetou o ex-deputado André Vargas, Leon teve a pena reduzida pelo TRF4
de cinco anos, para quatro anos, nove meses e 18 dias em regime semiaberto
Fernando Schahin: executivo do
Grupo Schahin, recebeu condenação, em setembro de 2016, de cinco anos e quatro
meses de prisão, por corrupção ativa, envolvendo benefícios em uma licitação da
Petrobras para operação do navio-sonda Vitória 10.000 e empréstimos concedidos
ao pecuarista José Carlos Bumlai. Foi absolvido em maio de 2018. Em outro
processo, que também aponta irregularidades na construção e operação dos
navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000, Fernando teve a pena reduzida
para pouco mais de cinco anos.
Agosthilde Mônaco: assessor do
ex-diretor da área internacional da Petrobras Nestor Cerveró, foi absolvido da
condenação de 2017 pelo crime de lavagem de dinheiro proveniente de contratos
dos navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000. Foi, no entanto, denunciado
outra vez pelo MPF, dessa vez por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, na
negociação da compra da Refinaria de Pasadena pela Petrobras. O processo se
encontra na fase de oitiva de testemunhas.
José Carlos Costa Marques Bumlai:
pecuarista e empresário apontado pelo MPF como responsável pela realização de
reformas no sítio de Atibaia. Foi condenado a uma pena de três anos e nove
meses de reclusão na primeira instância, mas absolvido pela Oitava Turma por
ausência de provas em novembro do ano passado. Ele foi condenado também, dessa
vez a nove anos e dez meses de prisão, por gestão fraudulenta de instituição
financeira e corrupção, no mesmo caso que envolve o Banco Schahin e
navios-sonda da Petrobras. Cumprindo prisão domiciliar, foi beneficiado com a
retirada da tornozeleira eletrônica após novo entendimento do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre prisão em segunda instância, em novembro do ano passado.
Emyr Diniz Costa Júnior: diretor
de contratos da construtora Norberto Odebrecht. Supervisionou a obra de reforma
do sítio de Atibaia, que tem como principal alvo o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Emyr foi condenado a três anos de reclusão por Sergio Moro, mas foi
absolvido pelo TRF4, no dia 27 de novembro de 2019, por ausência de provas.
Roberto Teixeira: advogado e amigo
do ex-presidente Lula, também foi acusado de envolvimento no processo do sítio
de Atibaia. Ele teria ocultado documentos que demonstrariam a ligação da OAS
com a reforma, além de orientar engenheiros da empreiteira a celebrar contratos
fraudulentos com Fernando Bittar, um dos proprietários do sítio. Teixeira foi
condenado a dois anos de reclusão na primeira instância, mas foi absolvido por
ausência de provas.
Paulo Roberto Valente Gordilho:
diretor técnico da OAS, era o encarregado da reforma do sitio de Atibaia. Foi
condenado a um ano de reclusão por Sergio Moro, mas foi absolvido pelo TRF4 por
ausência de provas.
Isabel Izquierdo Mendiburo Degenring
Botelho: agente do banco Société Générale no Brasil, foi acusada de auxiliar a
abertura de contas em offshores pelo mundo de ex-diretores da Petrobras,
caracterizando crime de lavagem de dinheiro. Foi condenada a três anos e oito
meses de prisão em novembro de 2018, mas foi absolvida na segunda instância um
ano depois.
Álvaro José Galliez Novis: doleiro
condenado a quatro anos e sete meses por lavagem de dinheiro em março de 2018,
na mesma ação penal que envolveu o ex-presidente do Banco do Brasil Aldemir
Bendine. Em agosto do ano passado, foi beneficiado pelo habeas corpus deferido
pela Segunda Turma do STF, em agosto do ano passado, que anulou a sentença
confirmada pelo TRF4 em maio de 2019.
Alteração às 20h33 21.01.2020 –
Aldemir Bendine foi presidente do Banco do Brasil e não do Banco Central como
constava anteriormente
Maior do que Panama Papers, investigação encontrou empresas
em paraísos fiscais ligadas à elite política de mais de 90 países; offshore de
Paulo Guedes está entre as descobertas
Esta reportagem faz parte do Pandora Papers, projeto do
Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) que reúne mais de
600 repórteres de 151 veículos em 117 países e territórios. O Pandora Papers
investigou milhões de documentos de paraísos fiscais em todo o mundo. No
Brasil, participaram da apuração Agência Pública, revista piauí, Poder360 e
Metrópoles. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves/revista piauí
Milhões de documentos vazados e a maior parceria de
jornalismo da história revelam segredos financeiros de 35 líderes mundiais,
atuais e passados, mais de 330 funcionários públicos em mais de 91 países e
territórios e um elenco global de fugitivos, estelionatários e
assassinos.
Os documentos secretos expõem negociações offshore do rei da
Jordânia, dos presidentes da Ucrânia, Quênia e Equador, do primeiro-ministro da
República Tcheca e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair. Os arquivos
também detalham as atividades financeiras do “ministro oficioso da propaganda”
do presidente russo, Vladimir Putin, e de mais de 130 bilionários da Rússia,
Estados Unidos, Turquia e outros países.
Os registros vazados demonstram que muitos dos atores
poderosos que poderiam ajudar a acabar com o sistema offshore em vez disso se
beneficiarem dele, escondendo ativos em empresas e fundos sigilosos enquanto
seus governos pouco fazem para desacelerar o fluxo global de dinheiro ilícito
que enriquece criminosos e empobrece nações.
Entre os tesouros escondidos revelados nos documentos estão:
• Um castelo de US$ 22 milhões na Riviera Francesa – que
inclui cinema e duas piscinas –, comprado por meio de empresas offshore pelo
primeiro-ministro populista da República Tcheca, um bilionário que protestava
contra a corrupção das elites econômicas e políticas.
• Mais de US$ 13 milhões guardados em um fundo secreto na
região das Grandes Planícies (centro) dos Estados Unidos por um descendente de
uma das famílias mais poderosas da Guatemala, dinastia que controla um
conglomerado de cosméticos acusado de prejudicar os trabalhadores e a terra.
• Três mansões à beira-mar em Malibu (Califórnia) compradas
por meio de três empresas offshore por US$ 68 milhões pelo rei da Jordânia nos
anos seguintes à Primavera Árabe, quando os jordanianos encheram as ruas em
protesto contra o desemprego e a corrupção.
Os registros secretos são conhecidos como Pandora Papers.
O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) obteve o conjunto de 11,9 milhões de arquivos confidenciais e liderou uma equipe de mais de 600 jornalistas de 150 veículos de notícias que passaram dois anos examinando-os, rastreando fontes e vasculhando arquivos judiciais e outros registros públicos de dezenas de países.
Os registros que vazaram vêm de 14 firmas de serviços
offshore de todo o mundo, que abriram empresas de fachada e outros esquemas
offshore para clientes que geralmente buscam manter suas atividades financeiras
às escuras. Os registros incluem informações sobre as negociações de quase três
vezes mais líderes de países, atuais e antigos, do que qualquer vazamento
anterior de documentos em paraísos offshore.
Em uma era de autoritarismo e desigualdade crescentes, a
investigação dos Pandora Papers oferece uma perspectiva inigualável de como o
dinheiro e o poder atuam no século 21 – e como o estado de direito foi dobrado
e violado em todo o mundo por um sistema de sigilo financeiro autorizado pelos
Estados Unidos e outros países ricos.
As descobertas do ICIJ e seus parceiros de mídia destacam
quão profundamente as finanças sigilosas se infiltraram na política global, e
oferecem ideias sobre por que governos e organizações globais avançaram pouco
para acabar com os abusos financeiros offshore.
Uma análise dos documentos secretos feita pelo ICIJ
identificou 956 empresas em paraísos offshore ligadas a 336 políticos e
funcionários públicos de alto nível, incluindo líderes de países, ministros,
embaixadores e outros. Mais de dois terços dessas empresas foram estabelecidas
nas Ilhas Virgens Britânicas (IVB, ou BVI, na sigla em inglês), jurisdição há
muito conhecida como peça chave no sistema offshore.
Pelo menos US$ 11,3 trilhões são mantidos “offshore”, de
acordo com um estudo de 2020 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), com sede em Paris. Devido à complexidade e ao sigilo desse
sistema, não é possível saber quanto dessa riqueza está vinculada à sonegação
de impostos e outros crimes e quanto disso envolve fundos que vieram de fontes
legítimas e foram relatados às autoridades competentes.
Cada canto do mundo
A investigação dos Pandora Papers desmascara os
proprietários secretos de empresas offshore, contas bancárias incógnitas, jatos
particulares, iates, mansões e até obras de arte de Picasso, Banksy e outros
mestres, fornecendo mais informações do que normalmente está disponível para
órgãos judiciais e governos sem recursos. Pessoas vinculadas pelos documentos
secretos a ativos offshore incluem o superastro indiano do críquete Sachin
Tendulkar, a diva da música pop Shakira, a supermodelo Claudia Schiffer e um
mafioso italiano conhecido como “Lell, o Gordo”.
O mafioso, Raffaele Amato, está vinculado a pelo menos uma
dúzia de assassinatos. Os documentos fornecem detalhes sobre uma empresa de
fachada registrada no Reino Unido que Amato usou para comprar terras na Espanha
pouco antes de fugir da Itália para formar seu próprio bando criminoso. Amato,
cuja história ajudou a inspirar o elogiado filme “Gomorra”, está cumprindo uma
sentença de 20 anos de prisão.
O advogado de Amato não respondeu aos pedidos de
comentários. O advogado de Tendulkar disse que o investimento do jogador de
críquete é legítimo e foi declarado às autoridades fiscais. O advogado de
Shakira disse que a cantora declarou suas empresas, que, segundo ele, não
oferecem a ela vantagens fiscais. Os representantes de Schiffer disseram que a
supermodelo paga corretamente seus impostos no Reino Unido, onde mora.
Os Pandora Papers revelam que a cantora Shakira possui
offshores em paraísos fiscais
Na maioria dos países, não é ilegal ter ativos offshore ou
usar empresas de fachada para fazer negócios além das fronteiras nacionais.
Empresários que operam no plano internacional dizem precisar de empresas
offshore para realizar seus negócios financeiros.
Mas esses negócios geralmente significam transferir lucros
de países com impostos elevados, onde foram obtidos, para empresas que existem
apenas no papel em jurisdições com impostos baixos. O uso de refúgios offshore
é especialmente controverso para figuras políticas, porque muitas vezes são uma
forma de manter atividades politicamente impopulares ou mesmo ilícitas longe da
vista do público.
Na imaginação popular, o sistema offshore é frequentemente
visto como uma série de ilhas espalhadas, cheias de coqueiros. Os Pandora
Papers mostram que a máquina de fazer dinheiro offshore opera em todos os
cantos do mundo, incluindo as maiores democracias. Os principais atores desse
sistema incluem instituições de elite – bancos multinacionais, firmas de
advocacia e escritórios de contabilidade – sediados nos EUA e na Europa.
Um documento dos Pandora Papers mostra, por exemplo, que
bancos do mundo todo ajudaram seus clientes a abrir pelo menos 3.926 empresas
offshore com a ajuda da Alemán, Cordero, Galindo & Lee, escritório de
advocacia panamenho comandado por um ex-embaixador nos Estados Unidos. O
arquivo mostra que a firma – também conhecida como Alcogal – criou pelo menos
312 empresas nas Ilhas Virgens Britânicas para clientes do gigante americano de
serviços financeiros Morgan Stanley.
Um porta-voz do Morgan Stanley disse: “Não criamos empresas
offshore… Esse processo é independente da empresa e fica a critério e
orientação do cliente”.
A investigação dos Pandora Papers também destaca como a
Baker McKenzie, a maior firma de advocacia dos Estados Unidos, ajudou a criar o
sistema offshore moderno e continua sendo um esteio dessa economia subterrânea.
A Baker McKenzie e suas afiliadas globais têm usado seu
conhecimento de lobby e elaboração de leis para moldar a legislação financeira
em todo o mundo. Eles também lucraram com o trabalho feito para pessoas e
empresas ligadas a fraude e corrupção , constatou a reportagem do ICIJ.
As pessoas para quem a empresa trabalhou incluem o oligarca
ucraniano Ihor Kolomoisky, que, segundo as autoridades americanas, lavou 5,5
bilhões de dólares por meio de um emaranhado de empresas de fachada, comprando
fábricas e propriedades comerciais em todo o interior dos Estados Unidos.
A Baker McKenzie também trabalhou para Jho Low, financista
hoje fugitivo acusado por autoridades de vários países de planejar o desfalque
de mais de 4,5 bilhões de dólares de um fundo de desenvolvimento econômico da
Malásia conhecido como 1MDB. A apuração do ICIJ descobriu que Low contou com a
Baker McKenzie e afiliados para ajudá-lo e a seus sócios a construir uma rede
de empresas na Malásia e em Hong Kong. As autoridades americanas afirmam que Low
usou algumas dessas empresas para transferir dinheiro saqueado do 1MDB.
Um porta-voz da Baker McKenzie disse que a empresa busca
fornecer a melhor consultoria a seus clientes e se esforça para “garantir que
nossos clientes cumpram tanto a lei quanto as melhores práticas”. O porta-voz
não abordou diretamente muitas questões sobre o papel da Baker McKenzie na
economia offshore, citando a confidencialidade do cliente e o privilégio legal.
Ele disse que a empresa realiza verificações rigorosas de antecedentes de todos
os clientes potenciais.
“Você sabe quem”
A investigação Pandora Papers é maior e mais global do que
os Panama Papers, também do ICIJ, que abalaram o mundo em 2016, gerando batidas
policiais e nova legislação em dezenas de países e a queda de primeiros-ministros
na Islândia e no Paquistão.
Os Panama Papers vieram dos arquivos de um único provedor de
serviços offshore: o escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca. Os
Pandora Papers fazem um corte longitudinal muito mais amplo dos advogados e
intermediários que estão no cerne da indústria offshore.
Os Pandora Papers fornecem mais que o dobro de informações
sobre a propriedade de empresas offshore. Ao todo, os novos documentos revelam
os verdadeiros proprietários de mais de 29 mil empresas offshore. Os
proprietários são de mais de 200 países, sendo os maiores contingentes da
Rússia, Reino Unido, Argentina e China.
Os 150 veículos que aderiram à parceria investigativa
incluem The Washington Post, BBC, The Guardian, Radio France, Oštro Croatia,
Indian Express, The Standard (Zimbábue), Le Desk (Marrocos) e Diario El
Universo (Equador).
Foi necessária uma equipe global porque os 14 provedores
offshore que são a fonte dos documentos vazados estão sediados em todo o mundo,
do Caribe ao Golfo Pérsico e ao Mar da China Meridional.
Três dos provedores pertencem ou são administrados por
antigos funcionários graduados de governos, incluindo um ex-ministro e
conselheiro presidencial do Panamá e um ex-procurador-geral de Belize, que
controla dois provedores.
Por algumas centenas ou alguns milhares de dólares, os
fornecedores offshore podem ajudar os clientes a criar uma empresa cujos
verdadeiros proprietários permanecem ocultos. Ou, por algo entre 2 mil e 25 mil
dólares, eles podem montar um fundo que, em alguns casos, permite que seus
beneficiários controlem seu dinheiro enquanto assumem a ficção jurídica de que
não o controlam – um pouco de criatividade burocrática que ajuda a proteger
bens de credores, agentes da lei e ex-cônjuges.
Os operadores offshore não trabalham isolados. Fazem
parcerias com outros provedores de sigilo em todo o mundo para criar camadas
interligadas de empresas e fundos. Quanto mais complexos os acordos, mais altas
as taxas – e mais sigilo e proteção os clientes podem esperar.
Os Pandora Papers mostram que um contador inglês na Suíça
trabalhou com advogados nas Ilhas Virgens Britânicas para ajudar o rei Abdullah
II, da Jordânia, a comprar secretamente 14 casas de luxo, no valor de mais de
106 milhões dólares, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os conselheiros o
ajudaram a montar pelo menos 36 empresas de fachada de 1995 a 2017.
Em 2017, o rei comprou uma propriedade de 23 milhões de
dólares com vista para uma praia na Califórnia por meio de uma empresa nas
Ilhas Virgens Britânicas. O rei pagou a mais para que outra empresa das IVB, de
propriedade de seus gestores de patrimônio suíços, atuasse como diretor
“nominal” da empresa das IVB que comprou a propriedade.
No mundo offshore, os diretores nominais são pessoas ou
empresas pagas para servir de fachada para quem está realmente por trás de uma
empresa. Os formulários de inscrição enviados aos clientes pelo Alcogal, o
escritório de advocacia que trabalha em nome do rei, dizem que o uso de
diretores nominais ajuda a “preservar a privacidade, evitando que a identidade
do verdadeiro diretor… seja acessível ao público”.
Em e-mails, os consultores offshore usaram um codinome para
o rei: “Você sabe quem”.
Os advogados do rei no Reino Unido disseram que ele não é
obrigado a pagar impostos sob a lei jordaniana e que tem razões de segurança e
de privacidade para possuir propriedade em empresas offshore. Eles disseram que
o rei nunca fez mau uso de fundos públicos.
Os advogados também disseram que a maioria das empresas e
propriedades identificadas pelo ICIJ não tem ligação com o rei ou não existem
mais, mas se recusaram a fornecer detalhes.
Especialistas dizem que, como governante de um dos países
mais pobres e dependentes de ajuda do Oriente Médio, o rei tem motivos para
evitar ostentar sua riqueza.
“Se o monarca jordaniano exibisse sua riqueza mais
publicamente, não apenas antagonizaria seu povo, como irritaria doadores
ocidentais que lhe deram dinheiro”, disse Annelle Sheline, especialista em
autoridade política no Oriente Médio, ao ICIJ.
No vizinho Líbano, onde questões semelhantes sobre riqueza e
pobreza estão ocorrendo, os Pandora Papers mostram que importantes figuras
políticas e financeiras também adotaram o uso de paraísos offshore.
Entre elas estão o atual primeiro-ministro, Najib Mikati, e
seu antecessor, Hassan Diab, bem como Riad Salameh, presidente do banco central
do Líbano, que está sob investigação na França por suposta lavagem de
dinheiro.
Marwan Kheireddine, ex-ministro de Estado do Líbano e
presidente do Banco Al Mawarid, também aparece nos arquivos secretos. Em 2019,
ele repreendeu seus ex-colegas parlamentares pela inércia em meio a uma
terrível crise econômica. Metade da população vivia na pobreza, lutando para
encontrar comida, enquanto padarias e mercearias fechavam.
“Há evasão fiscal e o governo precisa resolver isso”, disse
Kheireddine.
Naquele mesmo ano, revelam os Pandora Papers, Kheireddine
assinou documentos como proprietário de uma empresa nas Ilhas Virgens que
possui um iate de US$ 2 milhões.
O Al Mawarid Bank foi um dos muitos no país que restringiram
os saques em dólares americanos por clientes para conter o pânico econômico.
Wafaa Abou Hamdan, uma viúva de 57 anos, está entre os
libaneses comuns que continuam irritados com as elites de seu país. Por causa
da inflação galopante, as economias que fez durante toda a sua vida despencaram
do equivalente a 60 mil para menos de 5 mil dólares, disse ela a Daraj, um
parceiro de mídia do ICIJ.
“Todos os esforços da minha vida foram em vão. Trabalhei
continuamente nas últimas três décadas”, disse ela. “Ainda lutamos diariamente
para nos manter vivos”, enquanto “os políticos e os banqueiros… transferiram e
investiram seu dinheiro no exterior”.
Kheireddine e Diab não responderam a pedidos de comentários.
Em uma resposta por escrito, Salameh disse que declara seus bens e cumpriu
todas as obrigações fiscais sob a lei libanesa. O filho de Mikati, Maher, disse
que é comum as pessoas no Líbano usarem empresas offshore “devido ao fácil
processo de incorporação”, mais que pelo desejo de sonegar impostos.
Um contador na Suíça trabalhou com advogados nas Ilhas Virgens Britânicas para ajudar o rei Abdullah II, da Jordânia (ao centro), a comprar secretamente 14 casas de luxo, no valor de mais de 106 milhões dólares, nos EUA e Reino Unido
“Coalizão dos corruptos”
Imran Khan, a superestrela do críquete do Paquistão que se tornou político anticorrupção, ficou exultante quando a investigação dos Panama Papers do ICIJ foi divulgada em abril de 2016.
“Os vazamentos são enviados por Deus”, disse ele.
Os Panama Papers revelaram que os filhos do então primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, tinham laços com pelo menos três empresas offshore. Isso deu a Khan uma oportunidade para atacar Sharif, seu principal rival político, no que Khan descreveu como a “coalizão dos corruptos” que assola o Paquistão.
“É nojenta a forma como, no mundo em desenvolvimento, é saqueado o dinheiro de pessoas que já estão privadas de necessidades básicas: saúde, educação, justiça e emprego”, disse ele ao The Guardian, parceiro do ICIJ, em 2016. “Esse dinheiro é investido em contas offshore, ou mesmo em países ocidentais, bancos ocidentais. Os pobres ficam mais pobres. Os países pobres ficam mais pobres e os países ricos, mais ricos. Contas offshore protegem esses criminosos.”
No final das contas, o tribunal superior do Paquistão removeu Sharif do cargo como resultado de uma investigação iniciada pelos Panama Papers. Khan entrou para substituí-lo na eleição nacional seguinte.
Os Pandora Papers trazem atenção renovada para o uso de empresas offshore por atores políticos do Paquistão. Desta vez, as participações offshore de pessoas próximas a Khan estão sendo divulgadas, incluindo um importante financista e a família de seu ministro das Finanças.
Os documentos também mostram que o ministro de recursos hídricos de Khan, Chaudhry Moonis Elahi, contatou a Asiaciti, provedora de serviços financeiros offshore em Cingapura em 2016, sobre montar um fundo para investir os lucros de um negócio de terras de uma família que havia sido financiado pelo que o credor mais tarde alegou ser um empréstimo ilegal. O banco disse às autoridades paquistanesas que o empréstimo foi aprovado devido à influência do pai de Elahi, um ex-vice-primeiro-ministro.
Os registros da Asiaciti dizem que Elahi desistiu de colocar dinheiro em um fundo de investimento em Cingapura depois que o provedor disse a ele que relataria os detalhes às autoridades fiscais do Paquistão.
Elahi não respondeu aos pedidos de comentário. Por meio de um porta-voz, Khan não respondeu diretamente a uma pergunta sobre membros de seu círculo interno que mantinham entidades offshore. O porta-voz disse que a administração de Khan adotou como prioridade a responsabilidade e a transparência, aumentando o número de funcionários do governo necessários para divulgar seus ativos financeiros.
Outras figuras políticas também se manifestaram contra o sistema offshore, enquanto vivem cercados por nomeados e outros apoiadores que possuem ativos no exterior. Alguns usam o sistema eles próprios.
“Os bens de todos os servidores públicos devem ser declarados publicamente para que as pessoas possam questionar e perguntar – o que é legítimo?”, disse o presidente do Quênia, Uhuru Kenyatta, em uma entrevistada à BBC em 2018. “Se você não consegue se explicar, inclusive eu mesmo, então tenho um caso para responder”.
Os registros vazados listam Kenyatta e sua mãe como beneficiários de uma fundação secreta no Panamá. Outros membros da família, incluindo seu irmão e duas irmãs, possuem cinco empresas offshore com ativos de mais de US$ 30 milhões, mostram os registros.
Kenyatta e sua família não responderam aos pedidos de comentários.
O primeiro-ministro da República Tcheca, Andrej Babis, um dos homens mais ricos de seu país, subiu ao poder prometendo reprimir a evasão fiscal e a corrupção. Em 2011, à medida que se envolvia mais com a política, Babis disse aos eleitores que queria criar um país “onde os empresários façam negócios e fiquem felizes em pagar impostos”.
Os registros vazados mostram que, em 2009, Babis injetou US$ 22 milhões em uma série de empresas de fachada para comprar uma extensa propriedade, conhecida como Chateau Bigaud, em um vilarejo no topo de uma colina em Mougins, na França, perto de Cannes.
Babis não revelou a propriedade dessas empresas de fachada e do castelo nas declarações de bens que ele deve apresentar como funcionário público, de acordo com documentos obtidos pelo parceiro tcheco do ICIJ, Investigace.cz. Em 2018, um conglomerado imobiliário controlado indiretamente por Babis comprou com discrição a empresa de Mônaco que possuía o castelo.
Babis não respondeu a pedidos de comentários.
Um porta-voz do conglomerado disse ao ICIJ que a empresa cumpre a lei. Ele não respondeu às perguntas sobre a aquisição do castelo. “Como qualquer outra entidade empresarial, temos o direito de proteger nossos segredos comerciais”, escreveu.
“Um paraíso de golpes”
Os arquivos secretos fornecem uma camada de contexto de bastidores para os pronunciamentos públicos deste ano sobre riqueza e refúgios offshore, enquanto governos de todo o mundo lutam com cortes de receita, a pandemia, a mudança climática e a desconfiança pública.
Em fevereiro, um comentário do Instituto Tony Blair para Mudança Global instou os legisladores a buscar, entre outras medidas, impostos mais altos sobre terras e residências. Blair, o fundador e presidente-executivo do instituto, falou sobre como os ricos e bem relacionados evitavam pagar sua parte nos impostos já em 1994, quando fez campanha para se tornar o líder do Partido Trabalhista do Reino Unido.
“Para aqueles que podem contratar os contadores certos, o sistema tributário é um paraíso de golpes e vantagens… e lucros”, disse ele durante um discurso em West Midlands, na Inglaterra. “Não devemos fazer de nossas regras fiscais um playground para abusadores de impostos que pagam pouco ou nada, enquanto outros pagam mais do que sua parte.”
Os Pandora Papers mostram que em 2017 Blair e sua mulher, Cherie, tornaram-se proprietários de um edifício vitoriano de 8,8 milhões de dólares ao adquirir a empresa das Ilhas Virgens Britânicas que detinha a propriedade. O prédio em Londres hospeda hoje o escritório de advocacia de Cherie Blair.
Os registros indicam que Cherie e seu marido – que serviu como diplomata no Oriente Médio após deixar o cargo de primeiro-ministro em 2007 – compraram a imobiliária offshore da família do ministro da Indústria e Turismo do Bahrein, Zayed bin Rashid al-Zayani.
Ao comprar as ações da empresa em vez do prédio, os Blairs se beneficiaram de um acordo legal que os salvou de ter que pagar mais de US$ 400 mil em impostos sobre a propriedade.
Os Blairs e os al-Zayanis disseram que inicialmente não sabiam sobre o envolvimento um do outro no negócio.
Cherie Blair disse que seu marido não estava envolvido na transação e que seu objetivo era “trazer a empresa e o prédio de volta ao regime fiscal e regulatório do Reino Unido”.
Ela também disse que “não queria ser dona de uma empresa nas IVB” e que o “vendedor para seus próprios fins só queria vender a empresa”. A empresa agora está fechada.
Por meio de seu advogado, al-Zayanis disse que suas empresas “cumpriram todas as leis do Reino Unido no passado e no presente”.
“Essas são brechas que estão disponíveis para pessoas ricas, mas não para outras pessoas”, disse Robert Palmer, diretor-executivo da Tax Justice UK, ao The Guardian. “Os políticos precisam consertar o sistema tributário para que todos paguem sua parte justa.”
Em junho, o ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, propôs um pacote de reforma tributária que incluía um imposto de 30% sobre os lucros auferidos por meio de entidades offshore. Especialistas estimam que os mais ricos do Brasil detêm quase 200 bilhões de dólares em fundos não tributados fora do país.
“Não se pode ter vergonha de ser rico”, disse Guedes. “Você deve ter vergonha de não pagar impostos.”
Depois que banqueiros e líderes empresariais se opuseram ao aumento de impostos na legislação, Guedes, um ex-banqueiro milionário, concordou em remover o imposto sobre os lucros offshore. As negociações sobre a legislação continuam.
Os Pandora Papers revelam que Guedes criou a Dreadnoughts International Group em 2014 nas Ilhas Virgens Britânicas.
Em resposta a perguntas da revista piauí, parceira do ICIJ no Brasil, um porta-voz de Guedes disse que o ministro declarou a empresa às autoridades brasileiras. O porta-voz não forneceu registros para confirmar essa afirmação e não respondeu à pergunta sobre a retirada do imposto offshore da legislação.
Em 2014, o ministro da Economia Paulo Guedes criou a empresa Dreadnoughts International Group nas Ilhas Virgens Britânicas, um conhecido Paraíso Fiscal
“Caixa de Pandora”
Em dezembro de 2018, as Bahamas promulgaram legislação exigindo que as empresas e certos fundos fiduciários declarem seus verdadeiros proprietários a um registro governamental. A nação insular estava sob pressão de países maiores, incluindo os Estados Unidos, para que tentasse bloquear os sonegadores de impostos e criminosos do sistema financeiro.
Alguns políticos das Bahamas se opuseram à medida. Eles reclamaram que o registro desencorajaria clientes latino-americanos ricos a fazer negócios no Caribe. “Os vencedores desses novos critérios duplos são os estados norte-americanos de Delaware, Alasca e Dakota do Sul”, disse um advogado local.
Meses depois, um documento confidencial indicou que a família do ex-vice-presidente da República Dominicana Carlos Morales Troncoso deixou de usar as Bahamas como santuário para suas riquezas. Como novo refúgio, escolheram um lugar a cerca de 2,5 mil quilômetros de distância: Sioux Falls, na Dakota do Sul, no norte dos Estados Unidos.
A família montou fundos em Dakota do Sul, mostram os registros que vazaram, para guardar vários ativos, incluindo ações que detinham em uma empresa açucareira dominicana. A família não respondeu a perguntas sobre os bens transferidos das Bahamas para Dakota do Sul.
Os Pandora Papers fornecem detalhes sobre dezenas de milhões de dólares transferidos de paraísos offshore no Caribe e na Europa para Dakota do Sul, estado norte-americano de baixa densidade populacional que se tornou um importante destino de ativos estrangeiros.
Na última década, Dakota do Sul, Nevada e mais de uma dúzia de outros estados dos EUA se transformaram em líderes na oferta de sigilo financeiro. Enquanto isso, a maioria das políticas e esforços de repressão judicial dos países mais poderosos do mundo se concentrou em paraísos offshore “tradicionais”, como Bahamas, Cayman e outras ilhas paradisíacas.
Os Estados Unidos são um dos maiores players no mundo offshore. É também o país em melhor condição para pôr fim aos abusos financeiros offshore graças ao importante papel que exerce no sistema bancário internacional. Por causa do status do dólar americano como a moeda global, a maioria das transações internacionais entra e sai de operações bancárias sediadas em Nova York.
As autoridades norte-americanas tomaram medidas nas últimas duas décadas para forçar os bancos da Suíça e de outros países a entregar informações sobre cidadãos dos EUA com contas no exterior. Mas os EUA estão mais interessados em forçar outros países a compartilhar informações sobre os bancos americanos offshore do que em compartilhar informações sobre a movimentação de dinheiro por meio de contas bancárias, empresas e fundos americanos.
Os Estados Unidos se recusaram a aderir a um acordo de 2014 apoiado por mais de cem jurisdições, incluindo as Ilhas Cayman e Luxemburgo, que exigiria que as instituições financeiras norte-americanas compartilhassem as informações que possuem sobre os ativos estrangeiros.
Ano após ano em Dakota do Sul, legisladores estaduais aprovaram leis elaboradas por membros do setor de truste, oferecendo cada vez mais proteções e outros benefícios para clientes de fideicomisso nos Estados Unidos e no exterior. Os ativos dos clientes em trustes da Dakota do Sul mais que quadruplicaram na última década, e agora valem 360 bilhões de dólares.
“Como cidadã, estou muito triste porque meu estado foi o que abriu a caixa de Pandora”, disse a ex-parlamentar Susan Wismer ao ICIJ.
Em 2020, 17 das 20 jurisdições menos restritivas do mundo para trustes eram estados norte-americanos, de acordo com um estudo do pesquisador israelense Adam Hofri-Winogradow. Em muitos casos, disse ele, as leis dos EUA tornaram mais difícil para os credores colocarem as mãos sobre o que lhes é devido, incluindo pagamentos de pensão alimentícia de pais ausentes.
Usando documentos dos Pandora Papers, o ICIJ e The Washington Post identificaram cerca de 30 trustes com sede nos Estados Unidos ligadas a estrangeiros acusados de má conduta ou cujas empresas foram acusadas de contravenção.
Entre eles está Federico Kong Vielman, cuja família é uma das potências econômicas da Guatemala.
Em 2016, Kong Vielman transferiu 13,5 milhões de dólares para um consórcio em Sioux Falls. Parte do dinheiro veio da empresa de sua família, que fabrica ceras para pisos, batons e outros produtos.
A mídia guatemalteca noticiou durante décadas os laços da família com a política. Na década de 1970, reportagens identificaram a família como um importante aliado do general Carlos Manuel Arana Osorio, ex-ditador guatemalteco conhecido como o “Chacal de Zacapa”. Em 2016, o hotel de luxo da família na Cidade da Guatemala ofereceu uma cortesia de cem noites ao então presidente Jimmy Morales. A mídia local noticiou a suspeita de um possível pagamento por “favores políticos”.
Em 2014, as autoridades trabalhistas dos EUA entraram com uma queixa contra o governo da Guatemala que incluía denúncias de que a empresa de óleo de palma da família remunerava mal seus trabalhadores e os expunha a produtos químicos tóxicos. Os registros da empresa mostram que Kong Vielman foi anteriormente o tesoureiro da empresa.
Um ano depois, as autoridades ambientais dos Estados Unidos, fornecendo assistência técnica à Guatemala, descobriram que a empresa lançava poluentes no rio Pasion. A empresa familiar Nacional Agro Industrial SA, conhecida como Naisa, não foi autuada.
A Naisa disse ao ICIJ que seguiu a lei e não poluiu o rio. A denúncia trabalhista foi resolvida por um painel de arbitragem, segundo a empresa. Já Kong Vielman se recusou a responder a perguntas sobre o fundo na Dakota do Sul.
Outro rico latino-americano que fundou trustes na Dakota do Sul é Guillermo Lasso, banqueiro que foi eleito presidente do Equador em abril. Documentos vazados mostram que Lasso transferiu ativos para dois fundos na Dakota do Sul em dezembro de 2017, três meses depois que o parlamento do Equador aprovou uma lei proibindo funcionários públicos de manter ativos em paraísos fiscais. Os registros revelam que Lasso transferiu duas empresas offshore para os trustes da Dakota do Sul de duas fundações secretas no Panamá.
Lasso disse que o uso que fazia de offshores no passado era “legal e legítimo”. Ele afirmou também cumprir a lei equatoriana.
Trustes constituídos na Dakota do Sul e em vários outros dos Estados Unidos continuam envoltos em sigilo, apesar da promulgação neste ano da Lei de Transparência Corporativa dos Estados Unidos, que torna mais difícil para os proprietários de certos tipos de empresas ocultar suas identidades.
Não se espera que a lei se aplique a trustes populares entre cidadãos não americanos. Outra isenção gritante, dizem os especialistas em crimes financeiros, é que muitos advogados que criam trustes e empresas de fachada não têm a obrigação de examinar as origens da fortuna de seus clientes.
“Claramente, os EUA são uma grande brecha no mundo”, disse Yehuda Shaffer, ex-chefe da unidade de inteligência financeira israelense. “Os EUA estão criticando todo o resto do mundo, mas em seu próprio quintal esse é um problema muito, muito sério.”
“Despesas extraordinárias”
O império de construção do bilionário turco Erman Ilicak teve um grande ano em 2014.
A Rönesans Holding, empresa do magnata russo, concluiu a construção de um palácio presidencial de 1.150 quartos para o líder belicoso de seu país, Recep Tayyip Erdogan, em meio a rumores na mídia sobre estouros de orçamento e episódios de corrupção e uma ordem judicial que tentou impedir o projeto.
Outro evento notável envolvendo a família Ilicak aconteceu em 2014, desta vez longe dos holofotes públicos. A mãe do titã corporativo de 74 anos, Ayse Ilicak, tornou-se dona de duas empresas offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, de acordo com os Pandora Papers.
Ambas as empresas foram chefiadas por diretores e acionistas nominais. Uma delas, a Covar Trading Ltd., detinha ativos do conglomerado de construção da família, dizem os registros. Durante seu primeiro ano de operação, a Covar Trading teve receitas de 105,5 milhões de dólares em dividendos, de acordo com demonstrações financeiras confidenciais. O dinheiro foi guardado em uma conta na Suíça.
Não ficou lá por muito tempo.
Naquele mesmo ano, segundo mostram os relatórios, a empresa gastou quase todos os 105,5 milhões de dólares em uma “doação” listada em “despesas extraordinárias”. As declarações não detalham para onde foi o dinheiro.
Illiack não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.
Ilicak e os outros bilionários dos Pandora Papers vêm de 45 países, sendo o maior número da Rússia (52), Brasil (15), Reino Unido (13) e Israel (10).
Os bilionários norte-americanos mencionados nos documentos secretos incluem dois magnatas da tecnologia, Robert F. Smith e Robert T. Brockman, cujos fundos têm sido alvo de investigações por autoridades americanas. Ambos foram clientes da CILTrust, provedor offshore em Belize operado por Glenn Godfrey, ex-procurador-geral de Belize.
No ano passado, Smith concordou em pagar às autoridades dos EUA US$ 139 milhões para encerrar uma investigação fiscal. Um júri dos EUA indiciou Brockman, mentor e financiador de Smith, no que os promotores descreveram como a maior fraude fiscal da história dos EUA.
Smith não quis comentar. Brockman se declarou inocente.
Nem a CILTrust nem Godfrey foram acusados de irregularidades. A Godfrey não respondeu aos pedidos de comentários.
Um escritório de advocacia em Chipre, o Nicos Chr. Anastasiades and Partners, aparece nos Pandora Papers como um importante intermediário offshore para os russos ricos. A empresa mantém o nome de seu fundador, o presidente de Chipre, Nicos Anastasiades, e as duas filhas do presidente são sua sócias,
Os registros mostram que, em 2015, um gerente de compliance da Alcogal descobriu que o escritório de advocacia com conexões políticas ajudou um bilionário russo e ex-senador, Leonid Lebedev, a ocultar a propriedade de quatro empresas, listando os funcionários do escritório de advocacia como proprietários das companhias de Lebedev.
Lebedev – um magnata do petróleo e produtor de cinema com conexões em Hollywood – fugiu da Rússia em 2016 depois que as autoridades o acusaram de desviar 220 milhões de dólares de uma empresa de energia. Lebedev não respondeu aos pedidos de comentários. Não se sabe em que estágio está o processo iniciado pelas autoridades russas.
O escritório de advocacia também preparou cartas de referência para o magnata russo do aço Alexander Abramov, incluindo uma redigida dias depois que o governo dos Estados Unidos acrescentou o nome do bilionário à lista de oligarcas sancionados próximos ao presidente Putin. Abramov não respondeu aos pedidos de comentário.
Theophanis Philippou, o diretor-administrativo da firma de advocacia, disse à BBC, parceira do ICIJ, que nunca enganou as autoridades ou ocultou a identidade do proprietário de uma empresa. Ele se recusou a comentar sobre os clientes, citando a confidencialidade advogado-cliente.
Outro russo nos Pandora Papers ligado a Putin é Konstantin Ernst, um executivo de televisão e produtor indicado ao Oscar. Ele é conhecido como um dos grandes responsáveis pela criação da imagem de Putin, um talento criativo que vendeu à nação a ideia de que o presidente é o “salvador obstinado da Rússia”.
Os Pandora Papers revelam que foi dada a Ernst a chance de participar de uma oportunidade financeira altamente lucrativa logo após produzir as cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi, criando um espetáculo que impulsionou a reputação de Putin dentro e fora do país.
Ernst tornou-se um parceiro silencioso, escondido atrás de várias empresas offshore, em um enorme contrato de privatização financiado pelo Estado – um acordo para comprar dezenas de cinemas e outras propriedades da prefeitura de Moscou.
Os registros vazados mostram que, em 2019, o valor da participação pessoal de Ernst no negócio ultrapassou 140 milhões de dólares.
Ernst disse ao ICIJ que “nunca fez segredo” de seu envolvimento no negócio de privatização e que ele não foi uma compensação por seu trabalho durante as Olimpíadas de 2014.
“Não cometi nenhuma ação ilegal”, disse ele. “Nem estou cometendo agora ou prestes a fazê-lo. Foi assim que meus pais me criaram.”
“Nosso modo de vida”
Como ativista de direitos humanos e combate à pobreza, Mae Buenaventura aderiu à luta para garantir a devolução de bilhões de dólares do falecido ditador das Filipinas Ferdinand Marcos, sua família e amigos, escondidos em contas suíças e outros locais difíceis de rastrear.
Muitos em seu país natal, disse Buenaventura, “sabem que os ricos têm maneiras e meios de acumular riquezas e também de escondê-las de uma forma que as pessoas comuns não possam alcançá-las”.
O escândalo de Marcos também foi didático para o mundo, incentivando esforços cada vez maiores para descobrir dinheiro ilícito e punir as pessoas que o escondem.
Nos últimos 20 anos, líderes políticos prometeram “erradicar” os paraísos fiscais. Eles chamaram as empresas de fachada e lavagem de dinheiro de “ameaças à nossa segurança, nossa democracia e nosso modo de vida”, aprovaram novas leis e assinaram acordos internacionais.
Mas o sistema offshore é extremamente adaptável, e o crime financeiro internacional, a evasão fiscal e a desigualdade continuam prosperando.
Quando um provedor ou jurisdição offshore é exposto ou sofre pressão das autoridades, outros usam seu infortúnio como oportunidade de marketing, abocanhando clientes que fogem para refúgios mais seguros.
Uma análise do ICIJ identificou centenas de empresas offshore que encerraram seus relacionamentos com a firma de advocacia Mossack Fonseca depois do lançamento da investigação dos Panama Papers. Outros provedores assumiram sua posição como agentes offshore das empresas.
Uma delas era controlada por um fundo offshore cujos beneficiários incluíam a mulher de Jacob Rees-Mogg, membro do Partido Conservador britânico e atual líder da Câmara dos Comuns. Os Pandora Papers indicam que uma holding e um fundo que beneficiava sua mulher, Helena de Chair, possuíam “quadros e pinturas” no valor de 3,5 milhões de dólares.
Outra empresa que se afastou da Mossack Fonseca foi uma entidade das IVB controlada pela viúva e dois filhos da figura do submundo indiano Iqbal Memon. Memon foi identificado em reportagens como um importante traficante de drogas com ligações com terroristas. Sua viúva e filhos, acusados de lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas, são procurados desde 2019 pelas autoridades de Nova Delhi.
Nas Filipinas, o dinheiro movido nas sombras continua a ser um problema, apesar da atenção dada à atuação offshore de Ferdinando Marcos, ex-presidente do país. Nos últimos anos, o Departamento de Estado dos EUA classificou as Filipinas como uma “importante jurisdição para lavagem de dinheiro”.
As figuras políticas filipinas nos Pandora Papers incluem Juan Andres Donato Bautista, que de 2010 a 2015 foi presidente da Comissão Presidencial de Bom Governo – painel criado para rastrear os bilhões de Marcos.
Um mês depois de ser nomeado para chefiar a comissão, Bautista criou uma empresa de fachada nas IVB, que tinha uma conta bancária em Cingapura, segundo documentos secretos.
Bautista foi escolhido mais tarde para liderar a agência eleitoral do país, mas os legisladores decidiram por seu impeachment em 2017 depois que sua mulher afirmou que ele acumulou milhões de dólares em contas bancárias não declaradas no país e no exterior.
Em um telefonema para o ICIJ, Bautista disse que criou sua empresa nas IVB a conselho de banqueiros. A conta bancária foi aberta antes que entrasse para o governo, disse, acrescentando que ela nunca recebeu depósitos significativos e que ele revelou seus interesses às autoridades. Ele negou desvios e afirmou que não há acusações formais contra ele.
Apesar dos fracassos das Filipinas e de outros países em conter o fluxo de dinheiro encoberto, Buenaventura e outros defensores da reforma dizem que há motivos para esperança.
Manifestações de rua ajudaram a derrubar líderes nacionais na Islândia e no Paquistão após os Panama Papers. As Filipinas se juntaram a dezenas de países que agora exigem que as empresas revelem seus verdadeiros proprietários. As autoridades filipinas recuperaram cerca de 4 bilhões de dólares roubados por Marcos e seu círculo, usando-os para comprar terras para agricultores sem terra e para indenizar famílias de vítimas de assassinato ou “desaparecimento forçado” pelo regime do ditador.
Muitos obstáculos permanecem. Grandes bancos, escritórios de advocacia e outros grupos poderosos costumam se opor a regras de transparência e fiscalização mais rígidas contra abusos no exterior. E nas Filipinas, como em muitos outros países, ativistas anticorrupção enfrentam ameaças legais, prisões e violência.
No mês passado, a polícia disparou jatos de água contra manifestantes em protestos pelo 49º aniversário da declaração da lei marcial por Marcos, chamando a atenção para as semelhanças entre àquele governo e o atual, de Rodrigo Duterte.
Buenaventura disse que ela e outros ativistas continuarão trabalhando para expor a riqueza que está “profundamente escondida”.