O mundo dá voltas. O ex-advogado-geral da União Bruno
Bianco, escalado por Jair Bolsonaro e pelo general Augusto Heleno para atuar na tentativa de golpe de estado em 2022, voltou aos
corredores do Executivo Federal durante o governo Lula – desta vez como lobista
do BTG Pactual. Desde julho de 2023, após cumprir quarentena, Bianco ocupa o cargo de gerente de relações institucionais no
banco de investimentos.
No dia 4 de fevereiro de 2024, Bruno Bianco liderou uma reunião entre o BTG e os dois principais assessores do ministro
da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, nas dependências da própria AGU, em
Brasília: o ministro-substituto Flávio José Roman e advogado-geral adjunto
Paulo Ceo. Além deles, esteve no encontro o procurador da Agência Nacional de
Telecomunicações, Cássio Cavalcante.
A pauta da reunião não consta nas agendas oficiais de Román,
Ceo e Cavalcante, mas foi registrada por Ana Paula Severo, subprocuradora da AGU, que
também esteve presente. Segundo a descrição dela, o assunto foi a "solução
consensual da Oi junto ao TCU", um tema que movimenta o mercado de
telecomunicações por envolver cifras que chegam a R$ 50 bilhões e que está
diretamente ligado aos interesses do BTG Pactual.
Maior operadora de telefonia fixa do país, com atuação em
88% dos municípios, a Oi está à beira da falência. A situação é alvo de intensa
preocupação no BTG Pactual, que é dono de quase 70% da V.tal, uma empresa de infraestrutura de
telecomunicações que será diretamente impactada pelo futuro da Oi, já que as
duas empresas compartilham infraestrutura e contratos comerciais.
Devido à intensa relação entre a Oi e a V.tal, qualquer mudança na
situação da operadora, como intervenção governamental ou alteração de ativos
pela Anatel, afeta diretamente os interesses do BTG. Os planos de expansão da
V.tal, vinculados a compromissos específicos, também são moldados pela
resolução da crise da Oi, impactando as projeções de investimento e retorno do
BTG.
A crise parecia próxima ao final nesta semana, quando a Assembleia
Geral de Credores da Oi votaria o plano de recuperação judicial da operadora,
mas a reunião foi cancelada. Assim, todas as atenções ficam voltadas para o
possível acordo entre Oi, Anatel e TCU, tema da visita de Bianco ao governo
Lula. A possível decisão de mudar as concessões de telefonia fixa para o modelo
de autorização é crucial para a Oi se livrar de obrigações regulatórias
pesadas.
Hoje lobista com acesso ao governo Lula, um ano antes, Bianco defendeu, em uma reunião ministerial de Jair
Bolsonaro, um encontro de teor golpista com embaixadores, que inclusive tornou
o ex-presidente inelegível por abuso de poder político e uso indevido dos meios
de comunicação.
As declarações de Bianco constam de um vídeo com a íntegra
da reunião, realizada em julho de 2022, que embasou a operação da Polícia
Federal contra militares e ex-ministros de Bolsonaro suspeitos de participarem
de uma tentativa de golpe de estado. Em sua fala, Bianco disse que Bolsonaro
estava "corretíssimo com relação à reunião com embaixadores".
"O senhor também está correto em mostrar para o mundo,
como chefe de Estado, a sua postura", acrescentou o então advogado-geral
da União.
As imagens foram encontradas no computador de Mauro Barbosa
Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e tornadas públicas pelo ministro
Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o STF.
Como se não bastasse, o general Augusto Heleno, ex-ministro
do Gabinete de Segurança Institucional, escalou a AGU, então chefiada por
Bianco, como protagonista de uma trama golpista que consta no 'diário' em que
fazia anotações sobre a tentativa de mudar o resultado das eleições, segundo reportagem da Veja.
Enquanto Heleno, Bianco e Bolsonaro se envolviam na trama,
um outro ministro do governo já estava ligado no caso BTG. Em 19 de dezembro de
2022, poucos dias antes do fim da gestão, a V.Tal recebeu autorização de Fábio Faria, então ministro das
Comunicações, para captar até R$ 2,5 bilhões em recursos para projetos de
telecomunicações na modalidade incentivada, com redução na cobrança do imposto
de renda para investidores. Um dia depois da autorização, Fábio Faria deixou o
governo.
Com a canetada, os projetos listados pela V.tal se tornaram
prioritários na emissão de debêntures. A portaria segue em vigor, já que tem
validade de cinco anos. Com a decisão, a emissão das debêntures da V.Tal passou
a contar com benefício fiscal, com a redução de 22% para 15% no Imposto de
Renda para pessoas jurídicas e para 0% entre investidores pessoas físicas.
Três meses depois de sair do governo Bolsonaro, Fábio Faria
também foi trabalhar na área de relações institucionais do BTG.
A Pública levantou os 16 casos de
absolvições em segunda instância da Lava Jato e acompanhou o impacto da
condenação na vida de três desses réus
Executivo da OAS não conseguiu mais
emprego e não recebeu direitos trabalhistas Dentista aposentada foi usada como
“laranja” pela filha doleira Gerente de posto passou por duas
condenações
“A única coisa que ouvi foi o
cachorro latindo, mas de um jeito diferente. Abri a varanda e vi que ele estava
assustado. Quando eu saí do quarto, ouvi a campainha da cozinha, da porta da sala
e pessoas forçando a maçaneta. Num primeiro momento, achei que fosse assalto,
porque faziam muita força. Fui até a porta e perguntei que estava acontecendo,
e uma voz respondeu: ‘Aqui é a Polícia Federal [PF], abra imediatamente’.
Estava de cueca [era 6h30 da manhã], é constrangedor. Fui me vestir e fizeram
uma busca e apreensão na minha casa, levaram computador, celular, pastas, tudo
que tinha da OAS. Minha esposa estava grávida de cinco meses. Reviraram tudo e
pediram para que eu os acompanhasse”, relembra hoje Fernando Augusto Stremel
Andrade, ex-gerente de gasoduto da OAS.
Acusado de envolvimento no esquema
de corrupção da empresa, como o então presidente da empreiteira Léo Pinheiro e
os diretores Agenor Franklin Medeiros e Matheus Coutinho, o ex-gerente foi
conduzido coercitivamente para a PF na sétima fase da Operação Lava Jato,
denominada Juízo Final, no dia 14 de novembro de 2014. Foi liberado em seguida,
mas em 5 de agosto de 2015 condenado a quatro anos de prisão em regime aberto
por lavagem de dinheiro.
“O [Sergio] Moro achou que eu, com
a função que tinha, deveria saber o que estava acontecendo. A noção para quem
está de fora pode ser essa, mas não é isso que ocorre na obra”, afirma sobre a
condenação. Absolvido em segunda instância por falta de provas em 27 de
novembro de 2016, ele não conseguiu mais se recolocar no mercado de trabalho.
“Estou marcado pela Lava Jato. A maioria das empresas tem o setor compliance.
Não passa, cara, mesmo com a minha absolvição por 3 a 0. Fui condenado, acusado
de corrupção, e as pessoas questionam. Não tem o que fazer”, lamenta.
Stremel Andrade foi um dos 15 réus
condenados pelo ex-juiz Sergio Moro absolvidos pelo Tribunal Regional da 4ª
Região (TRF4), em Porto Alegre (RS), segundo dados obtidos com exclusividade
pela Agência Pública. Como ele, muitos tiveram suas vidas impactadas por
sentenças proferidas na 13ª Vara Federal, de Curitiba, mesmo depois de terem
sido anuladas em segunda instância pelos desembargadores João Pedro Gebran
Neto, Carlos Eduardo Thompson Flores e Leandro Paulsen.
Foi assim com Maria Dirce Penasso,
cirurgiã dentista aposentada, à época com 66 anos, residente em Vinhedo,
interior de São Paulo. A pacata vida da senhora foi revirada do avesso ao ter
seu nome atrelado à Lava Jato, no dia 17 de março de 2014, na primeira fase da
operação, quando sua casa foi alvo de busca e apreensão. Acusada de lavagem de
dinheiro e evasão de divisas, Maria Dirce foi condenada por Moro a dois anos,
um mês e dez dias de prisão (depois comutada para prestação de serviço à
comunidade). O motivo: sua filha, a doleira Nelma Kodama, abriu uma conta em
seu nome em Hong Kong, que teria sido usada para movimentar dinheiro de
corrupção. Maria Dirce, que sempre alegou desconhecimento das transações de
Nelma, foi absolvida pelo TRF4 em dezembro de 2015, pouco mais de um ano depois
da condenação. Além da decepção com a filha, sobraram sequelas da operação,
segundo o seu advogado, Eduardo Pugliesi Lima. “Ela tinha uma conta no mesmo
banco há 30, 40 anos. Quando foi acusada, começaram a dificultar tudo, para
fazer qualquer tipo de movimentação. Já tinha mais de 70 anos, não precisava
passar por isso”, conta Pugliesi Lima.
Saga mais complexa é a do gerente
do Posto da Torre, André Catão de Miranda, preso no dia 17 de março de 2014, na
primeira fase da Lava Jato. Foi essa prisão que inaugurou e batizou a operação
– em referência ao lava-jato do posto. Catão foi preso temporariamente como
suspeito de integrar uma organização criminosa liderada por seu patrão, o
doleiro Carlos Habib Chater. Há 11 anos ele era gerente financeiro do posto e
movimentava as contas de Chater, o que lhe valeu uma condenação por lavagem de
dinheiro da qual foi absolvido pelo TRF4 em setembro de 2015. No ano passado, o
administrador foi novamente condenado por Moro – dessa vez por supostamente
pertencer a uma organização criminosa – em um dos últimos atos do juiz na 13ª
vara antes de assumir o Ministério da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. Ele
aguarda o recurso ser julgado no TRF4.
Dados inéditos obtidos pela
Agência Pública revelam que 15 réus condenados pelo ex-juiz Sergio Moro foram
absolvidos pelo TRF4
Abandonado pela OAS
Engenheiro formado pela PUC do
Paraná em 1985, com pós-graduação em engenharia de dutos desde 2007, o
ex-gerente de gasoduto da OAS tem currículo de executivo de primeira linha.
Antes de trabalhar na OAS, foi funcionário na Petrobras, onde permaneceu entre
1998 e 2007, com a responsabilidade de avaliar a viabilidade técnica e
econômica de empreendimentos da empresa no setor de gasoduto. Foi a Petrobras
que o indicou para trabalhar na OAS, na construção de um gasoduto no Amazonas,
o Urucu-Coari-Manaus, inaugurado em novembro de 2009 e recentemente vendido
junto com 90% da Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) para um grupo
empresarial que reúne a francesa Engie e o fundo canadense Caisse de Dépôt et
Placement du Québec (CDPQ), por US$ 8,6 bilhões (cerca de R$ 33 bilhões), em
abril do ano passado.
Em 2010, Stremel Andrade foi
deslocado para Alagoas, dessa vez para trabalhar na concepção do gasoduto Pilar-Ipojuca.
Um ano depois, assinou um contrato representando a OAS com a empreiteira
Rigidez, pertencente a Alberto Youssef, no valor de R$ 1,8 milhão. Os problemas
começaram aí.
“Não vou dizer que fui obrigado,
mas a OAS me orientou a assinar o contrato para uma divisão de dividendos e
participações. É uma divisão interna dos lucros de uma obra, mas eu não
imaginava que isso ia para um agente público ou para a Petrobras. Eu era um
funcionário operacional”, justifica Stremel Andrade. “Você pode me perguntar:
‘Pô, o Léo Pinheiro, Agenor, não participava de reunião com você?’. Sim, todo
mês a gente se reunia, mas nós falávamos do avanço físico de obra, de
rentabilidade”, afirma Fernando, que nem sonhava em ver sua casa invadida pela
PF como aconteceu em novembro de 2014.
Ele lembra que foi conduzido
coercitivamente para prestar depoimento na PF em uma sexta-feira e, na segunda,
já estava de volta ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), para
onde havia sido deslocado pela OAS em 2013. Ali supervisionava a construção da
adutora que vai levar o lixo químico tratado de uma das refinarias da Petrobras
até Maricá para ser despejado 3 km adiante no mar. “Minha equipe veio conversar
comigo para saber o que havia acontecido. Ninguém esperava essa situação.
Trabalhei normal, administrando esse problema e a continuidade da obra. Até a
sentença, que foi em meados de 2015, era um sufoco, porque ia para Curitiba,
tinha audiência de acusação, defesa”, relembra.
Questionado sobre por que preferiu
ficar em silêncio no depoimento a Sergio Moro, o ex-executivo da OAS afirma que
“essa era uma estratégia da empresa”. “Antigamente, se condenado na segunda
instância, você não ia preso. O acordo era não falar absolutamente nada, porque
eu poderia ser condenado em segunda instância e, até chegar no STJ, ia demorar
mais 10, 15 anos, todo mundo já ia ter mais de 70 anos. Isso mudou a partir do
momento que a segunda instância começou a prender.”
Entre setembro de 2015 e abril de
2016, Stremel Andrade permaneceu afastado, sem exercer nenhuma função na OAS,
ainda que recebendo salário. Quando retornou ao cotidiano da empresa, ele
relata que permaneceu marginalizado. “Eu não tinha nem mesa para trabalhar”,
conta. O executivo não era mais convocado para reuniões e tampouco sabia de
detalhes operacionais da companhia.
Meses depois, em novembro de 2016,
foi absolvido por unanimidade pelos três desembargadores do TRF4. Nenhum dos
delatores da OAS havia citado seu nome ao falar sobre as irregularidades
encontradas pela força-tarefa. “Foi um alívio e achei que tudo ia voltar a ser
como era antes, mas isso não aconteceu”, lembra o engenheiro, que continuou a
se sentir escanteado no trabalho.
Em março de 2018, foi demitido “de
maneira fria e calculista” pela OAS sem receber FGTS, férias proporcionais nem
rescisão trabalhista, o que teria acontecido também com outros funcionários da
construtora. Segundo ele, a cúpula da empresa “ficou chateada” com o depoimento
de um dos delatores da empresa, o ex-diretor financeiro Mateus Coutinho de Sá
Oliveira, dizendo que a empresa havia prometido indenizar os diretores queconcordassem em fazer a delação premiada. “Os acionistas se sentiram traídos.
Desde 2018 ninguém recebe mais nada”, diz.
Stremel Andrade diz que pediu uma
compensação para se “reerguer”, movendo uma ação trabalhista contra a OAS no
valor de R$ 4,4 milhões. São 50 salários por danos morais, R$ 385 mil por 138
dias de férias não gozadas e mais R$ 600 mil pela rescisão do contrato de
trabalho – o que ainda não recebeu. Sem emprego, ele ainda sente o peso da
condenação. “Não é mais a mesma coisa. Irmãos e os parentes mais próximos, tudo
bem. Mas o restante da família tem um outro conceito de mim.”
Stremel Andrade ainda é réu em
processo por improbidade administrativa em ação protocolada pela
Advocacia-Geral da União (AGU), por mau uso do dinheiro público. “Como fui
absolvido na ação do MPF, espero que isso conte nessa outra acusação. É uma
agonia sem fim.”
A Pública entrou em contato com a
OAS, que, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que “sobre os temas
rescisórios, a empresa acredita que encaminhará soluções definitivas nas
próximas semanas”. Sobre o depoimento de Sá Oliveira, mencionado por Stremel
Andrade, disse que “jamais efetuou qualquer tipo de pagamento aos ex-executivos
e afirma categoricamente que nunca celebrou tal acordo mencionado”. O advogado
Pedro Ivo Gricoli Iokoi, responsável pela defesa de Sá Oliveira, também não
quis conceder entrevista à Pública, afirmando que “Mateus é colaborador e
possui cláusula de confidencialidade no acordo”.
O Posto da Torre, propriedade do
empresário Carlos Habib Chater, deu origem e nome à Operação Lava Jato
De Vinhedo a Hong Kong
O relógio marcava 0h37 do dia 26
de novembro 2012 quando o visor do celular da doleira Nelma Kodama brilhou. Era
uma ligação vinda de uma operadora do HSBC, na China.
– “Oi, aqui é a Carol, de Hong
Kong DC”.
– “Sim, pode falar, aqui é Maria
Dirce Penasso.”
– “Nós temos algumas perguntas
para você, posso enviar um email para você dar uma olhada?”
– “Sobre qual das 961? Qual
pagamento ?”
– “São perguntas sobre algumas
informações que precisamos, posso lhe enviar um email”
– “Ok, vamos fazer assim, porque
aqui eu estou em outro país e agora é meia noite, ok? Todos os escritórios
estão fechados, pode me fazer um favor, me envie um email, ok? E amanhã eu vejo
o email e você me liga amanhã à noite, pode ser assim? Você entende? Porque
está tudo fechado agora”.
O diálogo, em inglês, foi
traduzido pela PF dois anos depois, ao investigar Maria Dirce Penasso, mãe da
doleira, que era real interlocutora da conversa. “A Maria Dirce não fazia ideia
dessas movimentações, era tudo em inglês. Ela, com a idade que tinha, sem saber
falar outra língua, mal sabendo mexer nas funções básicas de um computador,
jamais conseguiria movimentar o dinheiro de uma conta bancária em Hong Kong”,
contou à Pública o advogado da dentista aposentada, Eduardo Pugliesi Lima.
O uso de seu nome pela filha em
contas que movimentariam dinheiro da corrupção resultou em uma acusação do
Ministério Público Federal (MPF) por evasão de divisas e lavagem de dinheiro. A
mesma denúncia que foi feita contra a filha doleira e seu motorista particular,
Cleverson Coelho de Oliveira, entre outros. Segundo o MPF, Maria Dirce teria
consentido em ceder seu nome para abertura de uma conta em Hong Kong, na China,
intitulada “Il Solo Tuo Limited”, e outra conta da “NGs Prosper Participações
Ltda.”, uma empresa de fachada responsável pela administração de 60
apartamentos no hotel Go Inn, no Jaguaré, zona oeste da capital paulista. As
duas contam serviriam para ocultar o dinheiro do esquema entre empreiteiras e a
Petrobras.
No dia 22 de outubro de 2014,
Maria Dirce Penasso foi condenada a dois anos, um mês e dez dias de prisão,
tendo a pena sido transferida para prestação de serviço à comunidade. Além
disso, Sergio Moro bloqueou os quase R$ 11 mil que estavam em sua conta quando
ela teve a casa alvo de busca e apreensão. Na mesma sentença, sua filha, Nelma
Kodama, foi condenada a 18 anos de prisão por Sergio Moro por lavagem de
dinheiro, evasão de divisas, corrupção ativa e por supostamente liderar uma
organização criminosa. Considerada a primeira delatora da Lava Jato, Nelma teve
sua pena reduzida para 15 anos em 2015. Em junho do ano seguinte ela passou ao
regime semiaberto, com a utilização da tornozeleira eletrônica. Em agosto de
2019, foi autorizada a retirar o aparelho ao ser beneficiada pelo indulto
natalino editado por Michel Temer em 2017, que prevê o cumprimento de um quinto
da pena para não reincidentes. Como Nelma já havia cumprido mais de três anos,
a benesse foi concedida.
Nelma era ligada ao doleiro
Alberto Youssef, um dos nomes mais conhecidos de toda a operação e um dos
primeiros a aderir à delação premiada – ele foi condenado a mais de cem anos de
prisão, em 12 processos, mas ficou apenas três no regime fechado. Além da
relação profissional, os dois mantinham um vínculo sentimental. Por esse
motivo, de acordo com o advogado de Maria Dirce, a mãe de Nelma conhecia
Youssef, que frequentava sua casa. “Ela não sabia dessas transações que eles
faziam. A Nelma visitava ela, mas a Dirce nunca ficou perguntando. A filha já
era adulta, né? A mãe não ficava questionando sobre os afazeres dela”, diz o
advogado.
Em dezembro de 2015, Maria Dirce
foi absolvida pelo TRF4 de todas as acusações que constavam no processo em que
havia sido condenada por Moro. “Quando chega em um tribunal, com outros três
desembargadores, tudo muda, porque eles podem colocar outra visão. A Maria
Dirce provou, através do imposto de renda, que tudo que ela tem foi conquistado
pelos anos de trabalho como celetista. Não houve elevação da renda ou do
patrimônio nos últimos anos”, conta Pugliesi Lima.
Maria Dirce não quis conversar com
a Pública “para não reviver uma história que prefere esquecer”, de acordo com o
advogado.
Nelma Kodama utilizou o nome da
mãe como “laranja” para a abertura de conta em offshore
Duas condenações, uma absolvição
Também o ex-gerente administrativo
André Catão de Miranda diz ter sido pego de surpresa por acusações que
desconhecia. Ele e outras pessoas ligadas ao Posto da Torre foram presos em
março de 2014 em decorrência do mesmo processo que condenou o dono do posto, o
doleiro Carlos Habib Chater, apontado como líder e executor de crimes
financeiros. Por realizar operações de câmbio e pagamentos a mando do patrão,
consideradas irregulares pelo MPF, ele foi detido em Brasília e transferido
para a Casa de Custódia de São José dos Pinhais, no Paraná, onde ficou preso
provisoriamente por sete meses.
“Foi um tremendo desrespeito. Os
dias passavam e ele lá dentro da prisão”, critica o advogado Marcelo de Moura,
defensor de Miranda. “Ele era um funcionário subalterno, que recebia ordens e,
se eventualmente algum ato ilícito foi praticado, aconteceu com o total
desconhecimento [dele]. Ele cuidava da parte financeira, mas exclusivamente da
atividade-fim, que era venda de combustível”, afirma Moura.
Para o MPF, no entanto, o gerente
do posto de gasolina era responsável por fazer pagamentos em uma extensa rede
de lavagem de dinheiro, que envolvia, além de seu patrão, os doleiros Alberto
Youssef, Raul Henrique Srour e Nelma Kodama e um suposto traficante de drogas,
René Luiz Pereira. Duas ações penais foram movidas contra o gerente, uma delas
por tráfico de drogas. Nesse caso, segundo o MPF, Chater teria utilizado, com a
cumplicidade de seu gerente, a estrutura do Posto da Torre para lavar US$ 124
mil provenientes da venda de cocaína na Europa.
Nos depoimentos que prestou na 13ª
Vara de Curitiba, Miranda disse ter feito os pagamentos por determinação do
patrão. Mas, em outubro de 2014, Sergio Moro o condenou a quatro anos de
reclusão em regime semiaberto. Menos de um ano depois da condenação, em
setembro de 2015, o TRF4 absolveu André e manteve as punições de René Luiz
Pereira (14 anos de prisão) e Carlos Habib Chater (cinco anos). Os
desembargadores Leandro Paulsen e Victor Luís dos Santos Laus apresentaram voto
favorável à absolvição, enquanto o relator João Pedro Gebran Neto votou pela
manutenção da condenação em primeira instância.
Segundo Paulsen, “André era um
empregado de Habib, não havendo nenhum elemento que aponte qualquer
enriquecimento”, disse. “O Ministério Público Federal não trouxe elementos
(quebra de sigilo financeiro, fiscal, prova testemunhal ou documental)
demonstrando que o réu (André) auferia recursos derivados de atividade ilícita.
Também parece contrariar a lógica afirmar que Miranda coordenava todo o núcleo
de operações financeiras ilícitas de Carlos Habib sem a obtenção de qualquer
contrapartida específica para tanto”, afirmou o desembargador.
Apesar de absolvido, a condenação
mudou a vida de Miranda para sempre, de acordo com o seu advogado: “O reparo
nunca é suficiente para voltar ao ponto anterior de uma pessoa que não tinha
envolvimento nenhum com atividade criminosa e é surpreendida com uma prisão,
que acaba por perdurar durante sete meses. Essas máculas não podem ser
reparadas, tanto do ponto de vista financeiro quanto emocional”.
Além disso, em outubro de 2018,
Sergio Moro, voltou a condená-lo, dessa vez a dois anos e seis meses em regime
aberto pelo crime de pertencimento a organização criminosa. De acordo com o
ex-juiz, Miranda “fazia pagamentos, recebimentos e lançamentos no Sismoney, ou
seja, na contabilidade informal. Não era meramente um gerente financeiro
regular do Posto, mas pessoa de confiança de Carlos Habib Chater. Não se pode
afirmar que não tinha conhecimento da utilização da estrutura do Posto da Torre
para a prática dos crimes financeiros e dos quais aliás participava”.
A pena foi revertida para serviços
comunitários, mas Miranda “ficou revoltado”, diz o seu advogado. “Ele já tem as
marcas de uma prisão ilegal. Após a absolvição, ele estava reestruturando a
vida aos poucos. Uma notícia pesada como essa gera a sensação de que uma nova
injustiça precisa ser combatida.”
Após a primeira condenação,
Miranda morou em Uberlândia e atualmente trabalha em uma empresa da família, em
Brasília. A nova condenação, diz o advogado, significa uma pá de cal nos planos
do ex-gerente. “O André é o tipo de cidadão que poderia atravessar a vida
inteira sem entrar em uma delegacia, muito menos ser preso. As investigações
mostraram que ele não tinha aparelho de comunicação restrita, possuía um
apartamento adquirido com recurso próprio, utilizando fundo de garantia, e não
tinha automóvel. Ele entrou no bolo de uma investigação precipitada, que
geraram prisões e condenações injustas”, critica.
O recurso no TRF4 já foi
protocolado e a defesa espera o julgamento, que ainda não tem data marcada. Na
avaliação de Moura, a Lava Jato extrapolou limites jurídicos. “Acho que se
elegeu a corrupção, que é um mal a ser combatido, como um tema que extrapola a
legalidade. É como se as armas utilizadas contra a corrupção pudessem ser
ilegais.”
Com ele concorda Maria Carolina
Amorim, coordenadora do escritório do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCRIM) em Pernambuco. “Antes de se ver condenado, o réu é exposto
pela imprensa de forma irreparável, em razão da permissividade que o Judiciário
tem tido com os seus funcionários que vazam informações. Em caso de condenação,
tal dano é ainda maior, motivo pelo qual deve-se exigir mais responsabilidade
do julgador”, diz Maria Carolina.
Outros casos
Além dos já citados Fernando
Stremel, Maria Dirce e André Catão de Miranda, há outras 12 pessoas – entre
elas o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, que teve duas condenações
anuladas pelo TRF4. A primeira, de setembro de 2015, em que foi condenado a 15
anos e quatro meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, foi revogada
em 2017. Em outra ação penal, envolvendo a empresa Engevix, a condenação a nove
anos de prisão foi anulada por insuficiência de provas. Em contato com a
Pública, o advogado Luiz Flávio D’Urso afirmou que Vaccari “se vê injustiçado,
pois somente fez o que lhe competia como tesoureiro do partido: pedia doações
legais para o PT, sempre por depósito bancário e com recibo, jamais recebeu
recursos em espécie. Ele foi um símbolo, um troféu”, afirmou o advogado.
Veja os outros casos em que as
sentenças de Moro foram revistas pelo TRF4:
Mateus Coutinho de Sá Oliveira:
condenado a 11 anos de prisão em agosto de 2015, aderiu à delação premiada e
foi absolvido um ano depois. Ele era diretor financeiro da OAS e foi apontado
pelo MPF como um dos responsáveis pelo departamento de propinas da empreiteira.
André Luiz Vargas Ilário:
ex-deputado federal (PT) foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão em
regime fechado por lavagem de dinheiro e absolvido no ano passado pelo TRF4.
Foi condenado em outras duas ações da Lava Jato: seis anos em um esquema de
lavagem de dinheiro envolvendo uma empresa fornecedora de softwares, e 14 anos
e quatro meses de prisão, em 2015, também por lavagem de dinheiro. As
condenações foram mantidas em segunda instância, mas, como ele já havia
cumprido parte da pena quando foi preso preventivamente, está em liberdade
condicional e com algumas restrições.
Leon Vargas Ilário: foi absolvido
junto com irmão, André Vargas, no mesmo processo por lavagem de dinheiro. Em
outubro do ano passado, na ação penal envolvendo o esquema de softwares, que
também afetou o ex-deputado André Vargas, Leon teve a pena reduzida pelo TRF4
de cinco anos, para quatro anos, nove meses e 18 dias em regime semiaberto
Fernando Schahin: executivo do
Grupo Schahin, recebeu condenação, em setembro de 2016, de cinco anos e quatro
meses de prisão, por corrupção ativa, envolvendo benefícios em uma licitação da
Petrobras para operação do navio-sonda Vitória 10.000 e empréstimos concedidos
ao pecuarista José Carlos Bumlai. Foi absolvido em maio de 2018. Em outro
processo, que também aponta irregularidades na construção e operação dos
navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000, Fernando teve a pena reduzida
para pouco mais de cinco anos.
Agosthilde Mônaco: assessor do
ex-diretor da área internacional da Petrobras Nestor Cerveró, foi absolvido da
condenação de 2017 pelo crime de lavagem de dinheiro proveniente de contratos
dos navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000. Foi, no entanto, denunciado
outra vez pelo MPF, dessa vez por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, na
negociação da compra da Refinaria de Pasadena pela Petrobras. O processo se
encontra na fase de oitiva de testemunhas.
José Carlos Costa Marques Bumlai:
pecuarista e empresário apontado pelo MPF como responsável pela realização de
reformas no sítio de Atibaia. Foi condenado a uma pena de três anos e nove
meses de reclusão na primeira instância, mas absolvido pela Oitava Turma por
ausência de provas em novembro do ano passado. Ele foi condenado também, dessa
vez a nove anos e dez meses de prisão, por gestão fraudulenta de instituição
financeira e corrupção, no mesmo caso que envolve o Banco Schahin e
navios-sonda da Petrobras. Cumprindo prisão domiciliar, foi beneficiado com a
retirada da tornozeleira eletrônica após novo entendimento do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre prisão em segunda instância, em novembro do ano passado.
Emyr Diniz Costa Júnior: diretor
de contratos da construtora Norberto Odebrecht. Supervisionou a obra de reforma
do sítio de Atibaia, que tem como principal alvo o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Emyr foi condenado a três anos de reclusão por Sergio Moro, mas foi
absolvido pelo TRF4, no dia 27 de novembro de 2019, por ausência de provas.
Roberto Teixeira: advogado e amigo
do ex-presidente Lula, também foi acusado de envolvimento no processo do sítio
de Atibaia. Ele teria ocultado documentos que demonstrariam a ligação da OAS
com a reforma, além de orientar engenheiros da empreiteira a celebrar contratos
fraudulentos com Fernando Bittar, um dos proprietários do sítio. Teixeira foi
condenado a dois anos de reclusão na primeira instância, mas foi absolvido por
ausência de provas.
Paulo Roberto Valente Gordilho:
diretor técnico da OAS, era o encarregado da reforma do sitio de Atibaia. Foi
condenado a um ano de reclusão por Sergio Moro, mas foi absolvido pelo TRF4 por
ausência de provas.
Isabel Izquierdo Mendiburo Degenring
Botelho: agente do banco Société Générale no Brasil, foi acusada de auxiliar a
abertura de contas em offshores pelo mundo de ex-diretores da Petrobras,
caracterizando crime de lavagem de dinheiro. Foi condenada a três anos e oito
meses de prisão em novembro de 2018, mas foi absolvida na segunda instância um
ano depois.
Álvaro José Galliez Novis: doleiro
condenado a quatro anos e sete meses por lavagem de dinheiro em março de 2018,
na mesma ação penal que envolveu o ex-presidente do Banco do Brasil Aldemir
Bendine. Em agosto do ano passado, foi beneficiado pelo habeas corpus deferido
pela Segunda Turma do STF, em agosto do ano passado, que anulou a sentença
confirmada pelo TRF4 em maio de 2019.
Alteração às 20h33 21.01.2020 –
Aldemir Bendine foi presidente do Banco do Brasil e não do Banco Central como
constava anteriormente
Flávio Bolsonaro, denunciado pelo MP, contou com a atuação
do governo do pai na busca de documentos para sua defesa. Foto: Pablo Jacob /
Agência O Globo
Abin produziu pelo menos dois relatórios de orientação para
Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os
documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo
menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados
sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar
um pedido de anulação do caso Queiroz. Nos dois documentos, obtidos pela coluna
e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a
Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na
Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria
feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que
gerou o inquérito das rachadinhas. Enviados em setembro para Flávio e repassados
por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general
Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que
afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo
após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre
Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.
Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão
daquele trabalho. Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no
caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados
aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para
Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.
O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa
reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das
advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter
os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita.
Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana
Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a
orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da Abin, a
partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro,
com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.
No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de
“defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para
cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando
acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre
então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num
padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita
e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.
“A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e
diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da
época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo
Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo
adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo
seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.
O relatório sugere a substituição dos “postos”, em provável
referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa
recomendação já havia sido feita em 2019.
“Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para
tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos
conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada
disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca
repercussão em processo interno na RFB!”, explica o texto.
A agência traça em seguida outra “alternativa de
prosseguimento”, que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço
Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).
“Com base na representação de FB protocolada na RFB
(Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da
Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância
requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso
de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita
judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos
da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento
de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”, recomenda o texto,
resumindo qual é a estratégia: “Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação
privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob
comando do Executivo”.
Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores
federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller
Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto.
“Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto
Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e
tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no
âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)”, disse o texto.
Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento,
a Abin, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro
demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial
federal: “Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por
outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF
de sua confiança”.
O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por
ele a sua advogada traça uma “manobra tripla” para tentar conseguir os
documentos que a defesa espera.
As orientações da agência aqui se tornam bem específicas.
“A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana
Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um
cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”,
diz a primeira das três ações, chamadas pela Abin de “diversionária”.
Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe
do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita,
baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que de fato a defesa de Flávio
Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito. “O e-sic
(sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema
da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB”, explicou a Abin.
E, por fim, o relatório sugere “neutralização da estrutura
de apoio”, a demissão de “três elementos-chave dentro do grupo criminoso da
RF”, que “devem ser afastados in continenti”. “Este afastamento se resume a uma
canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam
condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de
diversas fraudes fartamente documentadas”, afirma o texto, sem especificar que
condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o
corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita
no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da
Receita no Rio, Christiano Paes. Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja
seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do
cargo na semana passada.
Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo
informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de
Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada,
a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua
procedência da Abin, mas recusou-se a comentar seu conteúdo.
A Abin não respondeu aos questionamentos sobre a origem das
acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois
obtidos pela coluna. Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a
ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no
inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem,
amigo de seus filhos, para a direção da PF.
Quando todos os órgãos de controle são aparelhados, seus arapongas negam até o fim as devassas e interferências, deixando aos demais despachantes do poder de turno a tarefa de engavetar o caso por “falta” de (coleta de) provas, mesmo quando elas vêm a público pela imprensa.
O presidente Michel Temer negou neste domingo que tenha interferido para arbitrar um conflito de natureza privada do ex-ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima.
No entanto, Temer admitiu que o pedido de Geddel para que fosse liberada a construção de um prédio de 30 andares em área histórica de salvador foi "muito inadequado".
Segundo o ex-ministro da Cultura Marcelo Calero, o político baiano o pressionou para que conseguisse autorização para a obra junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Calero levou o caso a Temer e disse que o presidente o "enquadrou" a encontrar uma solução para a questão, remetendo o caso à Advocacia Geral da União (AGU).
Segundo Temer, uma das conversas com Calero teria sido gravada pelo então titular da pasta. Ele nega que tenha "enquadrado" o então ministro.
"Eu não estava patrocinando nenhum interesse privado, data venia, né? Não há razão para isso. Se você me disser, 'não foi útil, não foi conveniente', eu digo, de fato", reconheceu Temer.
"Eu disse até ao ministro, 'olha, foi uma inadequação, uma coisa muito inadequada, não pode ser feita'", disse também o presidente.
Temer deu a declaração ao ser questionado pela BBC Brasil sobre qual "conflito institucional" ele estava arbitrando ao sugerir que o caso fosse remetido a AGU, ou se estava interferindo em uma questão particular.
O presidente disse que o conflito institucional era entre o Iphan da Bahia, que havia autorizado a obra, e o Iphan federal, que havia barrado o empreendimento.
"Estava arbitrando um conflito de natureza administrativa, entre órgãos da administração pública, o Iphan da Bahia tinha uma posição e o Iphan nacional tinha outra posição", argumentou Temer.
"Quando ele (Calero) disse que não queria, não iria despachar (tomar decisão no caso), eu disse 'então faça o seguinte, mande para a AGU, e ela arbitra essa questão'", continuou o presidente.
A própria AGU manifestou-se na quinta-feira, por meio de nota, informando que "a presidência do Iphan é competente para a anulação de ato da Superintendência estadual e que poderia decidir o caso concreto".
Segundo a assessoria da AGU, essa decisão já havia sido dada pela procuradoria do Iphan, órgão ligado à AGU, antes do Iphan federal barrar a obra.
Foi a primeira vez que Temer comentou o caso publicamente. O presidente disse também que seu perfil "não é autoritário" e que sempre atua para resolver conflitos.
"Sempre que houver conflitos entre quem quer que seja, mesmo ministros, eu vou arbitrá-los, foi o que eu fiz, ao longo da vida", afirmou.
Geddel tem um apartamento no prédio que aguardava autorização para ser construído. Ao apresentar sua carta de demissão na sexta-feira, ele deixou clara sua relação de amizade com Temer, ao se referir ao presidente como "meu fraterno amigo" e "meu querido amigo".
Geddel (à esquerda) é dono de um apartamento em empreendimento embargado pelo Iphan
Ao deixar a coletiva, Temer foi questionado se sabia que Geddel era dono do imóvel no empreendimento que tentava liberar. O presidente desconversou e disse que "soube nesse episódio".
Diante da insistência sobre quando teve conhecimento, ele afirmou que foi "na quinta-feira", aparentemente se referindo a conversa com Calero antes da demissão do ministro, no último dia 18.
Neste, domingo, Temer criticou Calero, dizendo ser "indigno" e "gravíssimo" que um ministro gravasse uma conversa com o presidente.
"Espero que essas gravações venham a público", disse Temer, que disse ainda cogitar fazer gravações oficiais das audiências na Presidência da República.
A líder da minoria (oposição) na Câmara, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), disse após a coletiva de Temer que o presidente "tenta montar uma versão amena para um fato absolutamente grave e contundente".
Segundo ela, há um "conluio de interesses privados comandando a República".
Feghali sustenta que Temer cometeu "crime de responsabilidade" e disse que a oposição tomará "medidas concretas a partir da segunda-feira contra o governo".
O líder da minoria no Senado, Lindberg Farias (PT-RJ), e o PSOL já disseram que pretendem apresentar um pedido de impeachment contra o presidente.
O andamento dessa denúncia, porém, dependeria de uma decisão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é aliado de Temer.
"Com os fatos que nós temos e conhecendo o presidente Michel Temer, apesar de não ter ouvido ainda a tal gravação que o ex-ministro Calero fez com o presidente da República, um fato grave, não vejo nenhum motivo para a gente pensar em impedimento do presidente Temer de forma algumas", afirmou Maia na sexta-feira, em entrevista ao canal Globonews.
Na entrevista, que contou com a presença de Maia e do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), Temer anunciou o que chamou de "ajustamento institucional" para impedir a tramitação de qualquer proposta de anistia a políticos que tenham praticado o caixa 2 - movimentação irregular de recursos de campanha eleitoral.
Na coletiva com Calheiros (à esquerda) e Maia, Temer prometeu barrar qualquer tentativa de anistia ao caixa 2
Na quinta-feira , a votação de um projeto com medidas anticorrupção acabou adiada depois de vir à tona uma articulação em prol de uma emenda para anistiar quem tivesse feito uso de caixa 2 em eleições passadas - nos bastidores da Câmara, chegou a circular um texto de uma emenda que previa livrar, em todas as esferas (cível, criminal e eleitoral).
"Estamos aqui para revelar que, há uma unanimidade daqueles dos poderes Legislativo e Executivo", afirmou o presidente.
"Não há a menor condição de se patrocinar, de se levar adiante essa proposta", declarou Temer, que disse ser preciso "ouvir a voz das ruas" em relação à anistia.
Maia voltou a dizer que nunca tinha sido a intenção do Legislativo de anistiar crimes e culpou uma "confusão de comunicação" pela polêmica. "Estamos discutindo algo que não existe", afirmou. Calheiros disse que uma eventual proposta de anistia não terá chances no Congresso.
A entrevista foi convocada no sábado por Temer e representou um rara aparição de mídia conjunta dos principais líderes dos Poderes Executivo e Legislativo, o que pareceu indicar a preocupação do Planalto com a repercussão da crise política detonada tanto pela renúncia de Geddel - a sexta de um ministro nos seis meses de governo do pemedebista - e a polêmica causada pela possibilidade de anistia do caixa 2.
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