Deflagrada nesta quinta (11), operação apura uso irregular
da Inteligência brasileira para favorecer filhos de Bolsonaro
Ministros do STF teriam sido monitorados pela chamada
"Abin Paralela" - Antônio Cruz/Agência Brasil
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter a
prisão de cinco investigados na quarta fase da Operação Última Milha,
deflagrada nesta quinta-feira (11), que apura o uso irregular da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) para favorecer filhos do ex-presidente Jair
Bolsonaro, monitorar ilegalmente ministros do STF e políticos opositores.
Com a decisão, vão continuar presos Mateus de Carvalho Sposito, ex-funcionário da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o empresário Richards Dyer Pozzer, o influenciador digital Rogério Beraldo de Almeida, Marcelo Araújo Bormevet, policial federal, e Giancarlo Gomes Rodrigues, militar do Exército.
As prisões foram mantidas após audiência de custódia
realizada por um juiz instrutor do gabinete do ministro Alexandre de Moraes. A
justificativa para manutenção das prisões ainda não foi divulgada.
Segundo a investigação da Polícia Federal (PF), os cinco acusados
participaram do trabalho de monitoramento ilegal, que teria sido realizado com
o conhecimento do ex-diretor da Abin e atual deputado federal Alexandre Ramagem
(PL-RJ).
A Agência Brasil não conseguiu localizar as
defesas dos cinco acusados. Em nota, Alexandre Ramagem negou ter atuado
ilegalmente durante sua gestão no órgão.
Ramagem disse que não houve monitoramento ilegal de
autoridades. Segundo ele, os nomes que aparecem na investigação foram citados
em mensagens de WhatsApp e conversas de outros investigados na operação.
"Trazem lista de autoridades judiciais e legislativas
para criar alvoroço. Dizem monitoradas, mas na verdade não. Não se encontram em
First Mile ou interceptação alguma. Estão em conversas de WhatsApp, informações
alheias, impressões pessoais de outros investigados, mas nunca em relatório
oficial contrário à legalidade", afirmou.
O parlamentar também negou que tenha favorecido o senador
Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Segundo a PF, as ações clandestinas de monitoramento
também ocorreram contra três auditores da Receita Federal responsáveis pela
investigação sobre "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele
ocupava do cargo de deputado estadual.
"Não há interferência ou influência em processo
vinculado ao senador Flávio Bolsonaro. A demanda se resolveu exclusivamente em
instância judicial", concluiu.
Ontem (11), o senador negou qualquer favorecimento e disse
que a divulgação do relatório de investigação da PF foi feita para prejudicar a
candidatura de Ramagem à prefeitura do Rio de Janeiro.
"Simplesmente não existia nenhuma relação minha com
Abin. Minha defesa atacava questões processuais, portanto, nenhuma utilidade
que a Abin pudesse ter. A divulgação desse tipo de documento, às vésperas das
eleições, apenas tem o objetivo de prejudicar a candidatura do delegado Ramagem
à prefeitura do Rio de Janeiro", afirmou.
Vereadora foi executada no mesmo dia da aprovação do projeto
ao qual ela se opunha
Chiquinho Brazão chega preso no avião da Polícia Federal, em
Brasília. (Foto: Pedro Ladeira/folhapress)
O caso Marielle Parte 35
Marielle Franco virou um símbolo internacional após seu
assassinato no dia 14 de março de 2018. Com os olhos do mundo no Rio de
Janeiro, todos estão perguntando: #QuemMandouMatarMarielle? E por quê?
O DIRETOR-GERAL DA POLÍCIA FEDERAL diz que são
várias as situações que motivaram o deputado Chiquinho Brazão, o irmão, Domingos
Brazão, e Rivaldo Barbosa, a planejarem e encomendarem a morte da
vereadora Marielle
Franco em 2018.
A mais latente é uma disputa imobiliária: os Brazão
tinham interesse em fazer loteamentos na zona oeste do Rio, e Marielle se
opunha ao empreendimento. O assassino Ronnie Lessa receberia terrenos como
pagamento pelo crime.
Em seu relatório final sobre o caso Marielle,
a Polícia Federal, e menciona que Chiquinho foi “surpreendido por dificuldades
na obtenção de votos para a aprovação [do projeto], sendo certo que, em
primeiro turno, com votos contrários da bancada do Psol e, consequentemente, de
Marielle Franco, houve a apresentação de um substitutivo, ampliando a abrangência
territorial da lei”.
Segundo as investigações, em 2017 os Brazão haviam
infiltrado Laerte
Silva de Lima no Psol para monitorar Marielle Franco, pela qual eles
tinham “repugnância”. Lima e a mulher se filiaram ao partido naquele ano.
Foi por meio do infiltrado que os milicianos souberam que a
vereadora pedia para a população para que não aderisse aos loteamentos erguidos
em áreas de milícia. Em 2021, a polícia encontrou
documentos que apontavam que Laerte lavou milhões de reais para a
milícia com criptomoedas. Ele chegou a ser investigado no caso Marielle, mas
isso não foi adiante.
Projeto foi aprovado no dia da morte de Marielle
Na Câmara de Vereadores carioca, Chiquinho Brazão, hoje
deputado federal pelo União Brasil – e na época do crime vereador pelo Avante
–, tinha um interesse especial no PLC
n.º 174/2016, projeto sobre regularização de loteamentos em Vargem Grande,
Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá.
O projeto, proposto por Chiquinho, visava favorecer a expansão
de construções irregulares na zona oeste, área onde ele, Marcelo
Siciliano e Junior da Lucinha disputam
votos. Ele já havia tentado aprovar um projeto semelhante anos antes.
Em depoimento que consta no relatório da PF, um assessor da
Câmara disse que “o risco da não aprovação do PLC 174/2016 teria causado grande
insatisfação do Vereador Chiquinho Brazão com a bancada do Psol e,
consequentemente, com Marielle, que votou contra por entender que o projeto não
atendia ‘áreas carentes’, mas regiões de classe média e alta”.
Chiquinho não gostou da oposição do Psol e de Marielle.
Considerava que o voto contrário da vereadora, e a consequente aprovação
apertada do projeto, geraria desgaste político a ele. Conforme a testemunha,
Chiquinho ficou irritado, algo incomum para alguém habitualmente “discreto e
tranquilo”.
A testemunha apontou o Psol como o “calcanhar de Aquiles” do
MDB, partido de Brazão, na época. Ela citou ainda um outro caso que
desestabilizou ainda mais o partido, que estava sofrendo os impactos da Operação
Lava Jato. Uma ação popular do Psol impediu que o ex-deputado
Edson Albertassi, do MDB, fosse nomeado ao Tribunal de Contas do Estado.
Isso impediria qualquer gerência do MDB sobre a operação para o Superior
Tribunal de Justiça.
A testemunha disse ainda que a morte de Marielle “paralisou
o Psol no Rio de Janeiro, uma vez que amedrontou os parlamentares, assessores e
demais empregados do partido”.
O relatório da Polícia Federal diz que o descontentamento de
Brazão “ocorreu em período compatível com aquele mencionado por Ronnie Lessa”
em colaboração premiada, no segundo semestre de 2017, “o que pode ter sido o
estopim para que fosse decretada a pena capital de Marielle pelos irmãos
Brazão”.
Marielle e Anderson foram executados no dia 14 de março de
2018. Foi coincidentemente a mesma data em que foi aprovada a redação final do
PLC n.o 174/2016 no Plenário da Câmara.
O PLC acabou vetado pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo
Crivella, do Republicanos, em 5 de abril de 2018. O veto foi derrubado cerca de
um mês depois e a Lei
Complementar 188/2018 foi publicada. A vontade de Chiquinho foi
cumprida.
Correção: 24 de março de 2024, 20h52
O prefeito responsável por vetar o PLC foi Marcelo
Crivella, e não Eduardo Paes. O texto foi corrigido.
Não era para combater a corrupção, mas foi criada pelos EUA
para acabar com Lula e o PT, desindustrializar o Brasil e aprofundar a ditadura
imperialista sobre o País
Sergio Moro / Deltan Dallagnol
Há pouco mais de uma década, em 17 de março de 2014, era
deflagrada a Operação Lava Jato, um conjunto de investigações realizadas pela
Polícia Federal brasileira, em conjunto com o Ministério Público, o Poder
Judiciário e, conforme eventualmente seria revelado, com o Departamento de
Justiça dos Estados Unidos e o FBI (Federal Bureau of Investigation).
Deu-se o nome de “Lava-Jato”, pois na primeira fase da
operação foi realizada a investigação de um posto de combustíveis, local
suspeito de ser utilizado para movimentar valores de origem ilícita, ou seja,
“lavar dinheiro”, na linguagem coloquial.
Oficialmente, a operação visava a desbaratar supostos
esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro no âmbito da Petrobrás,
especialmente, o que envolveria políticos de dentro e fora do governo, assim
como empresários.
Durante toda a sua duração, a Lava Jato foi propagandeada
por todos os órgãos da imprensa burguesa brasileira, principalmente jornais
como OGlobo, OEstado de S. Paulo, Folha
de S.Paulo, e emissoras como a Rede Globo, a Record, a Bandeirantes e o
SBT, todos órgãos venais, a serviço dos Estados Unidos, como sendo uma operação
voltada para acabar com a corrupção dos políticos brasileiros.
Na realidade, a Lava Jato não era para acabar com a
corrupção, mas foi uma operação arquitetada e coordenada pelos Estados Unidos
para aprofundar a desindustrialização do Brasil, prejudicar a situação
econômica do País, e viabilizar o golpe de 2016, contra Dilma Rousseff.
Desejavam, igualmente, acabar de vez com o Partido dos Trabalhadores e o
presidente Lula, respectivamente o partido e líder político mais populares do
Brasil. Sendo ambos representantes do nacionalismo burguês de um país atrasado,
tendo como força política amplas massas da classe operária brasileira, a destruição
do PT e de Lula era um dos objetivos dos Estados Unidos para intensificar a
dominação imperialista sobre o país.
Durante seu curso, que foi até 1º de fevereiro de 2021, a
operação contou com mais de 80 fases operacionais. À frente da maioria delas esteve
Sérgio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que será eternamente
lembrado por suas arbitrariedades durante a Lava Jato, e por ter sido um agente
do imperialismo para destruir o Brasil. A operação também contou com figuras
execráveis como Deltan Dallagnol, (ex-procurador federal que considera os
americanos melhores que os brasileiros) e Rodrigo Janot (ex-procurador-geral da
República).
Ao longo de 7 anos, mais de cem pessoas foram condenadas.
Inúmeras delas cumpriram pena de prisão em regime fechado, inclusive antes
mesmo da condenação. Sobre isto, o encarceramento antes da condenação era um
método frequentemente utilizado pelos procuradores e juízes da Lava Jato para
forçar que os investigados confessassem crimes que não haviam cometido, ou para
fazer delação premiada, mentindo sobre as pessoas que a Lava Jato queria
condenar. E o principal alvo de Sergio Moro, Dallagnol e demais juízes e
procuradores era Lula.
Assim, Lula e muitas das pessoas que foram condenadas na
Lava Jato, o foram sem provas, apenas com base em delação premiada, isto em
declarações obtidas sob coação, sob tortura. Muitos dos delatores eram
ameaçados de verem seus familiares perseguidos pela Lava Jato, além das ameaças
de condenação.
No que diz respeito às empresas estatais nacionais alvos da
Lava Jato, para além da Petrobras, foram alvos do imperialismo também a BR
Distribuidora, a Transpetro e a Eletronuclear. Sobre essa última, vale lembrar
seu presidente à época, Othon Luiz Pinheiro da Silva, engenheiro mecânico e
nuclear, vice-almirante do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais da Marinha do
Brasil. Ele é uma das pessoas que liderava o desenvolvimento do Programa
Nuclear Brasileiro.
Quanto às empresas privadas, várias empreiteiras foram alvos
da Lava Jato, a mando do imperialismo, principalmente em razão da expansão de
suas atividades para outros países oprimidos, tais como os do continente
africano e sul-americano. Dentre elas foram perseguidas a Odebrecht, a OAS, a
Camargo Corrêa, a Andrade Gutierrez e outras.
O balanço da operação para a economia brasileira? A redução
de 4,44 milhões de empregos apenas entre os anos de 2014 e 2017, com as
empreiteiras perdendo 85% de suas receitas.
A destruição dessa quantidade de empregos representou uma
queda de R$85,5 bilhões na massa salarial, o que, por sua vez, teve como
consequência a redução de R$20,3 bilhões em contribuições sobre a folha.
Ademais, houve perda de R$142 bilhões nos setores da
construção civil, indústria naval, engenharia pesada e indústria metalmecânica.
Com isto, o Produto Interno Bruto no período caiu em 3,6%.
Assim, apesar de ter ficado claro desde o início que a Lava
Jato era uma operação arquitetada pelo imperialismo, em especial os Estados
Unidos, o tempo tratou de tornar esse fato incontestável.
E apesar de terem tentado destruir o Partido dos
Trabalhadores e acabar politicamente com Lula, a Lava Jato falhou nesse
aspecto. Contudo, é algo que continua na ordem do dia. Afinal, o presidente e
seu partido são representantes do nacionalismo burguês, e estando o
imperialismo cada vez mais fraco, a tendência é que ele tente criar novas
operações golpistas da aumentar seu domínio sobre o Brasil e impedir o
desenvolvimento nacional.
Dez anos de uma operação criada pelos EUA para destruir o Brasil
Há pouco mais de uma década, em 17 de março de 2014, era deflagrada a Operação Lava Jato, um conjunto de investigações realizadas pela Polícia Federal brasileira, em conjunto com o Ministério Público, o Poder… pic.twitter.com/C9Dc89nBI3
— DCO - Diário Causa Operária (@DiarioDCO) March 20, 2024
PROCURADOR DOS EUA CONFESSA PARTICIPAÇÃO NA LAVA JATO;
ASSISTA!
Esse é Kenneth Blanco, um procurador norte-americano, em uma
conferência em Nova York, em 2017. Aqui ele explica a "teoria da
conspiração" da colaboração entre Lava Jato e o Departamento de Justiça
dos EUA. Um "relacionamento íntimo", que desprezava
"procedimentos formais".
Voz de prisão pode ser dada por qualquer cidadão, incluindo militares, contra crimes cometidos em flagrante; tentativa de apresentar minuta do golpe de Jair Bolsonaro ao general provocou a reação, segundo ex-comandante da Aeronáutica
Bolsonaro apresentou hipóteses de GLO, Estado de Defesa e de
sítio, diz ex-comandante do ExércitoFoto: Reprodução/Reuters
Ex-comandante da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro do ar
Carlos Almeida Baptista Júnior relatou em depoimento à Polícia Federal (PF) que
o general Marco Antônio Freire Gomes, ex-chefe do Exército, falou em prender
Jair Bolsonaro (PL) caso o então presidente tentasse um golpe de Estado.
Segundo o artigo 301 do Código Penal brasileiro, a voz de
prisão poderia ter sido dada pelo militar, uma vez que há a previsão legal de
que qualquer cidadão - incluindo militares - tem o poder de anunciar a prisão
de uma pessoa que cometa flagrante delito.
Segundo afirmou Baptista Júnior em depoimento, a declaração
ameaçando a prisão foi feita no encontro convocado pelo general Paulo Sérgio de
Oliveira, então ministro da Defesa, que ocorreu em 14 de dezembro de 2022. Na
reunião, em seu gabinete, quando a hipótese do golpe de Estado - por meio de
Garantia da Lei e da Ordem (GLO), estado de defesa ou estado de sítio - foi
aventada, Freire Gomes afirmou que "caso tentasse tal ato teria que
prender o Presidente da República".
Na época, Bolsonaro já tinha perdido a eleição para o atual
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas permanecia no cargo, uma vez que
a posse presidencial ocorre no dia 1º de janeiro seguinte ao pleito.
A Constituição Federal prevê a responsabilização do
presidente tanto em crimes de responsabilidade quanto em crimes comuns. Como a
suposta ameaça de golpe de Estado dada por Bolsonaro não entra na categoria de
infrações político-administrativas, mas sim em crime contra o Estado de
Direito, cometido em flagrante, ela não esbarraria no artigo 86, que versa
sobre como os julgamentos de um presidente devem ocorrer.
Nos casos de crimes de responsabilidade, é o Senado Federal
que julga a denúncia, enquanto infrações penais comuns eventualmente cometidas
pelo chefe do Executivo devem ser submetidas ao julgamento do Supremo Tribunal
Federal (STF). Porém, enquanto não houver sentença condenatória nas infrações
comuns sem flagrante, o presidente não poderá ser preso.
Miguel Reale Júnior, ex-professor titular de direito penal
da Universidade de São Paulo (USP) e ministro da Justiça no governo Fernando
Henrique Cardoso, explica que a voz de prisão, por se tratar de flagrante,
poderia ter sido dada pelo general. "Qualquer ato como editar o estado de
defesa seria tentativa de golpe e poderia o presidente ser preso por crime
contra o Estado de Direito", explicou.
Para o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida
Castro, conhecido como Kakay, não há dúvida de que o que fez o comandante foi o
correto, ao comunicar que se a trama golpista continuasse, a voz de prisão
seria dada, sob pena de prevaricação. "A dificuldade prática de dar uma
voz de prisão no presidente da República é enorme, você tem que cumprir essa
voz de prisão. Evidentemente, Bolsonaro ia dizer que não aceitava prisão e ia
chamar oficiais fiéis a ele. A dificuldade prática é absolutamente
gigantesca", observou o advogado.
Procurado pelo Estadão para comentar sobre o caso, Jair
Bolsonaro não respondeu.
Na manhã desta sexta-feira, 15, o ministro do STF Alexandre
de Moraes retirou o sigilo do depoimento de 27 investigados na Operação Tempus
Veritatis, por tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de
Direito após as eleições de 2022. Mais da metade dos suspeitos, 14 deles,
preferiu ficar em silêncio. Estão incluídos os registros dos depoimentos à PF
de Bolsonaro e de ex-ministros, como Anderson Torres e os generais Augusto Heleno
e Walter Braga Netto.
Conforme o depoimento prestado por Baptista Júnior à PF, no
bojo das investigações que apuram uma suposta tentativa de golpe de Estado
tramada pela cúpula do governo Jair Bolsonaro, o então ministro da Defesa teria
declarado a intenção de apresentar a minuta golpista, para "conhecimento e
revisão". Nesse momento, Baptista disse ter questionado: "Esse
documento prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente eleito?".
Oliveira se calou e, em seguida, o brigadeiro disse que não admitira receber o
papel.
Baptista Júnior e Freire Gomes contaram aos investigadores
que se colocaram contra a investida antidemocrática de Bolsonaro. Já o
almirante Almir Garnier Santos, então comandante da Marinha, mais alinhado ao
ex-presidente, colocou tropas à disposição do ex-chefe do Executivo. Em seu
depoimento à PF, o almirante escolheu ficar em silêncio. Veja a íntegra da
minuta de golpe que Bolsonaro apresentou às Forças Armadas, segundo
ex-comandante.
Até a Polícia Federal chegar no nome de Domingos Brazão,
houve uma série de erros e pistas falsas que atrasaram em quase seis anos a
resposta para esta pergunta: Quem mandou matar Marielle?
Marielle Franco, veradora do Psol, durante comício no Rio de
Janeiro. Foto: Mídia NINJA
O caso Marielle Parte 32
Marielle Franco virou um símbolo internacional após seu
assassinato no dia 14 de março de 2018. Com os olhos do mundo no Rio de
Janeiro, todos estão perguntando: #QuemMandouMatarMarielle? E por quê?
ATÉ A POLÍCIA FEDERAL obter a delação de Ronnie
Lessa, entregando que Domingos Brazão foi o mandante
da morte de Marielle Franco e de Anderson
Gomes, o caminho da investigação foi longo, com inúmeras reviravoltas,
interferências externas e pistas falsas espalhadas pelo caminho. Isso
dificultou a resolução do duplo homicídio, próximo de completar seis anos no
mês de março.
Raquel Dodge, ex-Procuradora Geral da República, sempre
insistiu na federalização do caso Marielle Franco. Um dia após o assassinato da
vereadora e do motorista Anderson Gomes, quando ela ainda presidia o Conselho
Nacional do Ministério Público, emitiu uma nota determinando a instauração de
“procedimento instrutório de eventual incidente de deslocamento de
competência”. E solicitou a entrada da Polícia Federal nas investigações.
O Ministério Público do Rio e a Polícia Civil do Rio de
Janeiro se posicionaram contrários ao pedido de Dodge. E o caso seguiu com
investigação no âmbito estadual.
Desde quando o atentado foi cometido, houve uma rápida e
intensa cobertura internacional do caso, com notícias publicadas nos principais
veículos de comunicação do mundo e debate
na ONU.
Caso Marielle: primeiras pistas falsas e acusações sobre
delegado
Em maio de 2018, as investigações caminharam com o depoimento
do ex-PM Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, dado à Delegacia de
Homicídios. Segundo ele, Marcello Siciliano, então vereador pelo PHS, teria
mandado o miliciano Orlando Curicica assassinar a vereadora.
O motivo seria a disputa por territórios: Marielle teria
apoiado moradores com ações comunitárias em bairros da zona oeste do Rio, o que
teria incomodado milicianos e ameaçado o reduto eleitoral de Siciliano.
Orlando Curicica negou as acusações à Polícia Civil do Rio.
Em junho, foi transferido para o presídio federal em Mossoró, no Rio Grande do
Norte, e pediu para prestar outro depoimento. Dessa vez para o Ministério
Público Federal.
Ele afirmou ter sido pressionado por Giniton Lages, primeiro
delegado do caso, para assumir a autoria do crime. Curicica acusou a
polícia fluminense de receber
propina do jogo do bicho para barrar investigações de homicídio.
Giniton negou as acusações.
Domingos Brazão foi delatado por Ronnie Lessa como
responsável por mandar matar Marielle Franco. Foto: Tércio Teixeira/Domingos
Brazão
A investigação da investigação do Caso Marielle
As declarações de Curicica motivaram Dodge a pedir a
abertura de inquérito da Polícia Federal para investigar a Polícia Civil do Rio
– o que ficou conhecido como “a investigação da investigação”.
Com a PF na cola, Ferreirinha e sua advogada voltaram atrás
nos depoimentos. Ele confessou ter inventado a história para tentar se livrar
de Curicica, por quem era ameaçado. Em maio de 2019, o ex-PM
foi preso no Rio de Janeiro.
Meses antes, em fevereiro de 2019, a Polícia Federal cumpriu
ordem de busca e apreensão na casa de dois comparsas: Hélio Khristian, delegado
da instituição, e Domingos Brazão, então conselheiro afastado do Tribunal de
Contas do Estado, o TCE.
Khristian foi quem levou Ferreirinha até a Delegacia de Homicídios
para prestar depoimento. Ambos estariam juntos na empreitada para obstruir o
caso e incriminar Siciliano, adversário político de Brazão. O conselheiro do
TCE, então, virou um dos principais suspeitos de ser um dos mandantes do
assassinato da vereadora.
Prisão de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz em 2019
Em meio às suspeitas sobre o trabalho da Polícia Civil, um
ano após o duplo homicídio, os
ex-PM Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz foram presos. O MPRJ acusou os dois
de serem os executores dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes –
Élcio era o motorista e Lessa o atirador.
Ex-policial do Bope, Lessa seria ligado ao grupo de
matadores conhecido como “Escritório do Crime“, que presta serviço à
cúpula do Jogo do Bicho. Quem também fazia parte desse grupo era Adriano da
Nóbrega, assassinado
em fevereiro de 2020 na Bahia.
O delegado Giniton Lages saiu do cargo logo após as prisões,
substituído pelo delegado Daniel Rosa. Seria a primeira das cinco mudanças na
chefia da DH ao longo das investigações.
Em outubro de 2019, em seu último ato como PGR, Dodge acusou
Brazão de ter arquitetado Ferreirinha como testemunha falsa do caso e de
obstrução de justiça. Ela usou como base o relatório da PF sobre o andamento
das investigações do caso Marielle. Mais uma vez, houve o pedido de
federalização do caso. A federalização, no entanto, foi
negada pelo STJ.
A família de Marielle Franco também temia a federalização
nesse momento. Era o primeiro ano do governo Bolsonaro e havia o temor que, com
o Ministério da Justiça dirigido por Sergio Moro, houvesse interferências
políticas na Polícia Federal que atrapalhasse o curso das
investigações.
Khristian e Lorenzo Pompilio, também delegado da PF, virariam réus por
extorsão e obstrução de justiça. As acusações são do MPF. Em março de 2023,
o Superior Tribunal de Justiça rejeitou a denúncia contra Brazão por obstrução
de justiça.
Polícia Federal volta ao caso no governo Lula
Em fevereiro de 2023, a Polícia Federal abriu um novo
inquérito para investigar os mandantes dos atentados que vitimou Marielle e
Anderson, a pedido do Ministério da Justiça. Lula havia acabado de tomar posse.
Um dos principais compromissos
públicos assumidos pelo seu então ministro da Justiça, Flávio Dino,
foi o de resolver o caso.
A partir de então, a investigação voltou a ter novidades.
Élcio de Queiroz, acusado de ser o motorista, firmou
acordo de delação premiada em julho deste ano. Ele confessou a
participação dele e de Lessa no crime. E ainda acusou a Polícia Civil do Rio de
tentar extorqui-los
para impedir a investigação.
A delação de Lessa falta ser homologada no STJ. Ainda há
dúvidas sobre qual seria a real motivação de Domingos Brazão. Uma das hipóteses
é que ele teria agido por vingança contra Marcelo Freixo, seu ex-colega na
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que o denunciou na CPI das Milícias,
em 2008, e também na Operação Cadeia Velha, que prendeu
figuras do MDB, ex-partido de Brazão.
Outra hipótese é uma disputa de terra na zona oeste do Rio
de Janeiro, área de domínio de Domingos Brazão. Havia uma disputa
de terra nessa área para regularização de um condomínio e a vereadora
trabalhava para que a região fosse classificada como de interesse social.
Um grupo de manifestantes na cidade brasileira do Rio de
Janeiro exigiu justiça no sexto aniversário do assassinato da vereadora
Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Amigos, familiares e
activistas denunciaram que o Governo demorou muito a resolver o crime.
Organizações não governamentais apontam que, apesar de haver suspeitos, não se
sabe quem foi o autor intelectual do homicídio e denunciam que há impunidade
envolvida.
Software israelense FirstMile, alvo de escândalo na Abin,
também foi adquirido pelo Exército, que, questionado em 2019, dizia não ter
acesso à ferramenta que já utilizava
Exército Brasileiro / Flickr: Exército Brasileiro participa de operações de apoio durante
as Olimpíadas no Brasil, em 2016
No dia 20 de outubro de 2023, por determinação do Supremo
Tribunal Federal, a Polícia Federal deflagrou a Operação Última Milha, que
investiga o uso ilegal de um software espião, o First Mile, por servidores da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Jair Bolsonaro.
Comercializado pela empresa Cognyte, subsidiária
da israelense Verint, o aplicativo First Mile tem capacidade de acessar
a localização em tempo real de telefones celulares captando os metadados
trocados entre o aparelho e torres de telecomunicação.
Além disso, possibilita o armazenamento do histórico da
geolocalização do aparelho e a criação de alertas sobre a presença do telefone
móvel em uma determinada área. Para que os dados fossem monitorados, bastava
que se digitasse o número do celular escolhido como alvo.
A investigação da Polícia Federal apontou que a ferramenta
foi usada pela Abin mais de 60 mil vezes, 1,8 mil das quais para monitorar
políticos, jornalistas, juízes e adversários do governo Bolsonaro.
Na última quinta-feira (25), o STF autorizou a Operação
Vigilância Aproximada, com ações de busca e apreensão contra 12 alvos – dentre
os quais o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-dirigente da Abin. Na
última segunda-feira (29), houve também operações de busca e apreensão contra o
vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do ex-presidente, e o
militar Giancarlo Gomes Rodrigues, apontado como um dos operadores da FirstMile
enquanto estava lotado no Centro de Inteligência Nacional (CIN) da Abin, criado
em julho de 2020 por Bolsonaro e Augusto Heleno para “enfrentar
ameaças à segurança e à estabilidade do Estado”.
A PF passou a investigar o que considera uma organização
criminosa, dividida em vários núcleos, que fez uso do FirstMile em benefício da
família Bolsonaro e para atacar seus inimigos. Dentre os espionados pela
"Abin paralela" estariam o então governador do Ceará e atual ministro
da Educação, Camilo Santana, os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar
Mendes, além do então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e a
deputada federal Joice Hasselmann – a lista completa dos espionados continua
desconhecida.
Além da Abin, a PF também encontrou evidências, durante as
ações de busca e apreensão de 20 de outubro, de que o software FirstMile foi
adquirido pelo Exército Brasileiro. Em agosto de 2023, a Agência
Pública já havia apurado que o Exército tinha contratos
com a fabricante do software. Mas foi a investigação da Polícia Federal que
encontrou evidências de que a ferramenta fora comprada durante a intervenção
federal na segurança pública do Rio de Janeiro, ainda em 2018.
Com o avanço das investigações, Caio Santos Cruz, filho do
general Santos Cruz, relatou à PF que a compra da ferramenta foi intermediada
pelo general Luiz Roberto Peret, que havia sido contratado pela Verint Systems,
fabricante da FirstMile e proprietária da Cognyte, criada em 2021 como um braço
separado voltado especificamente à inteligência e defesa. Peret, que passou
para a reserva em 2007, teria sido membro da organização de extrema-direita
militar TERNUMA (Terrorismo Nunca Mais), e é um dos conselheiros fundadores do
Instituto General Villas Bôas, general que ocupava o cargo de comandante do
Exército na época em que o software espião foi adquirido.
O contrato do Exército com a Verint, fechado em outubro de
2018, teria o valor de 10,8 milhões de dólares (52 milhões de reais), pagos com
parte dos 1,2 bilhões de reais que compunham o orçamento da intervenção federal
no Rio de Janeiro.
Segundo
a Folha de São Paulo, “apesar de a compra ter sido
realizada no âmbito da intervenção, o software não foi utilizado somente para o
combate ao crime organizado no Rio de Janeiro. Ele ficou sob a administração do
Exército”. O Gabinete de Intervenção Federal confirmou ao jornal que “[...]
softwares de inteligência ficaram sob a propriedade das Forças Armadas, mas com
a possibilidade de utilização em prol dos órgãos de segurança pública do Rio de
Janeiro mediante necessidade e acordo com a União, caso fosse de interesse do
Governo do Estado do Rio de Janeiro”.
O compartilhamento do software com autoridades estaduais e o
eventual desvio de finalidade dos recursos da intervenção federal – como conclui
um parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) –, no entanto, não
são os únicos possíveis problemas envolvendo o Exército e o aplicativo
FirstMile. Em 27 de agosto de 2019, quatro anos antes da operação da PF,
a Revista Opera enviou ao Centro de Comunicação Social
do Exército (CComSEx) uma série de questionamentos acerca do uso de ferramentas
de vigilância como a FirstMile. As questões, formuladas pelo então jornalista
da Revista Opera André Ortega, que investigava o uso
dessas tecnologias no Brasil, foram então encaminhadas ao Comando de
Comunicações e Guerra Eletrônica do Exército, que no dia 11 de setembro de 2019
deu respostas contraditórias com o que viria a ser apontado pela PF quatro anos
depois.
Os questionamentos chegavam a citar nominalmente a empresa
Verint Systems, que também teria fornecido ferramentas de vigilância similares
à FirstMile para o Exército do Peru. Mas, de acordo com o DCT, o Exército “não
possuía capacidades semelhantes” a uma ferramenta que “seria capaz de
identificar a localização precisa de telefones”. Perguntado se possuía
capacidades similares ou próximas das ostentadas pelo Exército do Peru graças a
seu contrato com a Verint em 2015, o Exército respondeu somente que “possui
capacidades de monitoramento rádio”.
O Departamento também informou que o Exército “não possui
nenhum produto (malware) capaz de infectar, monitorar e coletar informações de
telefones móveis.”
À luz do que revelou a PF, a única explicação plausível para
a resposta dada pelo Exército à época seria se a ferramenta, adquirida em 2018,
não estivesse com sua licença de uso ativa entre agosto e setembro de 2019,
quando o questionamento foi feito. Em 2019, o Comando
do Exército destinou 40 milhões de reais à Verint, proprietária do
FirstMile, por meio de três contratos. Os três contratos, classificados como de
“aquisição de serviços de TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação) de
caráter secreto ou reservado" ou de “aquisição de material permanente de
caráter secreto ou reservado", disponíveis no Portal da Transparência,
foram pagos no dia 12 de agosto. Os questionamentos da Revista Opera foram
feitos no dia 27 de agosto, e as respostas do Exército foram enviadas no dia 11
de setembro.
Outro lado: Exército se recusa a dar informações
A reportagem voltou a entrar em contato com o Exército,
questionando quais foram os períodos durante os quais a organização teve acesso
ao FirstMile, bem como as razões pelas quais respondeu negativamente às
perguntas feitas pela Revista Opera há quatro anos.
Desta vez, o Centro de Comunicação Social do Exército disse somente que “em
função de previsão legal (Lei n.º 12.527 de 18 de novembro de 2011, em seu
artigo 23, incisos V e VIII) não poderá atender à solicitação apresentada.”
A legislação a que o Exército se refere é a Lei de Acesso à
Informação (LAI), e o artigo 23 diz respeito às informações consideradas
imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado. Os incisos mencionados
pelo Exército dizem respeito a informações que possam “prejudicar ou causar
risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas” (V) e “comprometer
atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em
andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações" (VIII).
Não foi explicado porque, em 2019, o Exército pôde responder aos
questionamentos da Revista Opera negativamente, mas
agora não pode explicar as respostas que deu, à luz da investigação da Polícia
Federal.
Mas a LAI prevê também, no seu artigo 32, as condutas
ilícitas que ensejam responsabilidade de agente público ou militar: “I -
recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar
deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma
incorreta, incompleta ou imprecisa”; “III - agir com dolo ou má-fé na análise
das solicitações de acesso à informação”; “V - impor sigilo à informação para
obter proveito pessoal ou de terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal
cometido por si ou por outrem”.
Para o diretor da associação Data Privacy Brasil e mestre em
direito Rafael Zanatta, o uso de tecnologias para atividades de inteligência no
Brasil conta com a ausência de jurisdição específica. “A legislação, a
cobertura legal e jurídica que temos para Inteligência já é bastante reduzida;
porque constitucionalmente não temos. Temos a cobertura de segurança pública,
mas não se fala de Inteligência na Constituição Brasileira. E temos a lei que
reorganizou a Abin, no governo FHC, que determina as competências e depois as
normas que criam a CCAI (Comissão Mista de Controle das Atividades de
Inteligência), que seria o órgão de controle. Mas elas não dizem nada sobre
softwares, ou seja, não parametrizam em que condições é legítima a utilização
de um software com essas capacidades, softwares espiões”, diz. “E o que foi
feito na construção de raciocínios sobre a utilização desses softwares, que
acho que tem uma certa perversidade jurídica, é que também encontraram
fundamentação jurídica dentro de pareceres que vinham da Advocacia Geral da
União (AGU) e da própria Procuradoria Geral da República (PGR) e órgãos
especializados para olhar juridicamente a licitude dessas operações, onde se
cravou uma tese de zona cinzenta. Ou seja: 'não se aplica aqui o Código de
Processo Penal, não estamos falando de interceptação telefônica, estamos
operando numa outra situação fática'. E essa outra situação fática não aplica,
não traz, não puxa, essas regras de devido processo que estão na Constituição e
no código de processo. Que é você ter o crivo judicial, autorização judicial; e
ter a delimitação de finalidade específica, de operação dentro de um espaço de
tempo, e de uma razoabilidade.”
Zanatta chama atenção, no entanto, a uma especificidade
jurídica do FirstMile. Ele cita ferramentas que são usadas para extrair
informações de celulares em posse de autoridades policiais, ou ainda softwares
que extraem informações em massa da internet e criam relatórios, como casos
diferentes ao FirstMile: “o FirstMile é diferente, porque ele explora uma
vulnerabilidade de infraestrutura de comunicações que é per se ilícita.
Esse 'spoofing', que é o atacante que está na unidade celular explorando
informação, está explorando uma vulnerabilidade que as empresas de
telecomunicações não querem que ele explore. E está explorando uma capacidade
de obtenção de informações de centenas, milhares de pessoas. E ele é feito por
uma empresa prestadora de serviço, não é uma autoridade policial que está em
posse de um dispositivo”, analisa. “Então eu acho que o FirstMile é
indefensável na nossa concepção jurídica; porque a premissa dele é uma
ilicitude. A dinâmica de funcionamento, para ele poder funcionar, ele está em
ilicitude. Porque está explorando a vulnerabilidade de um protocolo de
comunicações de um setor que é considerado de interesse nacional e que é
amplamente regulado, pela ANATEL, pelas normas de telecomunicações, etc.”
Para retirar o uso das ferramentas espiãs dessa zona
cinzenta, opina Zanatta, seria fundamental estabelecer uma classificação
jurídica clara sobre os diferentes tipos de software – malwares, spywares,
aplicativos de extração de dados, etc. –, e estabelecer uma legislação
específica sobre o tema. “Precisaria de um enfrentamento constitucional mesmo,
ou seja, inaugurar por meio de uma emenda constitucional um capítulo específico
sobre Inteligência na Constituição. E parametrizar esses elementos básicos de
necessidade, finalidade específica, razoabilidade, proporcionalidade, e criar
algum arranjo democrático de supervisão.”
Uso interno do Exército aumenta risco de autoritarismo,
diz pesquisadora
Para Julia Almeida, professora de Direito na Universidade
Anhembi Morumbi, integrante do Núcleo de Estudos da Violência da USP e autora
do livro “A militarização da política no Brasil” (Alameda, 2023), o uso
das Forças Armadas em missões de ordem interna, como a Intervenção Federal do
Rio de Janeiro, por meio da qual o FirstMile foi adquirido ou readquirido pelo
Exército, aumenta significativamente o risco de construção de governos
autoritários.
“A intervenção federal na Segurança Pública do Rio de
Janeiro foi um exemplo emblemático dessa atuação. Essa forma de intervenção é
uma forma política que ajuda a construir a intervenção de militares e membros
das Forças Armadas em projetos políticos, inclusive de natureza eleitoral.
Então o que esse escândalo do FirstMile revela é isso; como essas ferramentas
(como a GLO) não deveriam existir, e como seu uso desenfreado e intensificado é
um risco imenso à democracia no Brasil. O fato dos sistemas de inteligência
contarem com órgãos militares e terem a Abin sob o GSI também são determinantes
para essa atuação. É fundamental apontar, por último, que essa sempre foi a
tarefa da inteligência no Brasil, que tem nos militares sua efetivação:
controlar opositores, a pobreza e os que de alguma forma ameaçavam o status
quo no Brasil”, diz ela, que diz ainda que ferramentas como o
FirstMile “possuem inúmeros problemas de utilização.
Por si só, é um potencial violador de direitos fundamentais.
Tendo em vista o desenho atual da inteligência no Brasil e falta de controle
civil da atuação das Forças Armadas, acredito que esse tipo de ferramenta não
deveria ser controlada e utilizada diretamente pelas Forças Armadas, mesmo que
direcionada para as suas atribuições de Defesa.”
Para a professora, seria essencial a uma perspectiva
democrática que houvesse uma efetiva subordinação das Forças Armadas à
presidência e ao Congresso, e um efetivo controle civil delas. “Atualmente,
embora previstas na própria Constituição e na legislação da Abin e do SISBIN
(Sistema Brasileiro de Inteligência), não contamos com nenhuma efetivação de
mecanismo de controle dessas atividades [de inteligência] pelo Congresso
Nacional, com audiências e acariações.
E, no caso dos militares, embora devendo prestar contas ao
Ministério da Defesa, a que estão subordinados, o acúmulo de poder deles nos
últimos anos e o padrão de militarização do Estado impedem que essa relação
entre Executivo e Forças Armadas se dê dentro dos marcos republicanos. É o jogo
da correlação de forças, e os militares já deram sinais (como no 8 de janeiro e
seus desdobramentos) de que a mediação só é possível se alguns de seus
interesses forem atendidos, em especial o da anistia e da manutenção de
privilégios corporativos. No mais, a subordinação da Abin ao GSI sob o comando
de um militar (que tem sido a regra), também dificulta esse tipo de controle
pelos mecanismos do SISBIN.”
Resposta do Exército Brasileiro a questionamentos da Revista
Opera, dada em setembro de 2019.
No último dia 20 de outubro, a operação Última Milha da Polícia Federal (PF) reforçou uma suspeita que há meses circulava nos corredores da política na capital federal: de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do governo Bolsonaro teria usado contra seus opositores um programa espião capaz de monitorar a localização
No último dia 20 de outubro, a operação Última Milha da
Polícia Federal (PF) reforçou uma suspeita que há meses circulava nos
corredores da política na capital federal: de que a Agência Brasileira
de Inteligência (Abin) do governo Bolsonaro teria usado contra seus opositores
um programa espião capaz de monitorar a localização, em tempo real, de
até 10 mil celulares por ano no Brasil e exterior. O caso ficou conhecido pelo
nome do programa supostamente usado de forma ilegal, o First Mile –
desenvolvido e negociado pela Cognyt e, companhia israelense do setor de
inteligência.
Ciente de que algo estava prestes a acontecer no caso, a equipe da Agência
Pública em Brasília (DF) decidiu mergulhar na história nos últimos meses.
Descobrimos, então, que as incógnitas em torno da espionagem estatal
vão muito além da Abin. Assim, no mesmo dia da operação da PF, revelamos
com exclusividade que Aeronáutica, Exército, a Polícia Rodoviária Federal (PRF)
na gestão do bolsonarista Silvinei Vasques, e governos de pelo menos 9 estados,
a maioria do campo da direita bolsonarista, também adquiriram produtos do grupo
israelense nos últimos 6 anos.
Até sua primeira venda para o governo federal, em dezembro de 2017, a Cognyte
somava R$ 2 milhões em contratos com órgãos públicos brasileiros. Dali em
diante, a companhia israelense vendeu o equivalente a pelo menos R$ 57 milhões
em ferramentas de espionagem, cujo uso – e controle – seguem
completamente desconhecidos da população brasileira até o momento.
A descoberta veio apesar de alguns entes públicos se negarem a dar explicações
à Pública. No caso dos militares, por exemplo, nos deparamos com uma negativa
insustentável de acesso à informação, já relatada na coluna Entrelinhas do
Poder.
Além disso, em dois dos casos identificados há contextos nebulosos por trás dos
compradores:as gestões do governador Ronaldo Caiado em Goiás e a
do governador Mauro Mendes no Mato Grosso, ambos reeleitos ano passado pelo
partido União Brasil.
Apesar de tentativas do governo goiano de esconder informações, descobrimos que
a gestão Caiado adquiriu o First Mile em 2021, assinando um contrato que lhe
permitia 10 mil buscas por meio do programa num período de dois anos. Chama
atenção que o governo de Goiás decretou sigilo sobre a execução do
contrato na mesma data em que respondeu ao pedido inicial de informações
enviado pela Pública.
Já o governador Mauro Mendes foi tema de uma reportagem da Pública ainda no
início de 2023,em que revelamos gravações que o colocam sob suspeita
de envolvimento num esquema de arapongagem contra jornalistas e críticos à sua
gestão. No mesmo período do caso denunciado pela Pública, seu governo
operou um programa da Cognyte chamado GI2-S, capaz de forçar “atividade secreta
e uso dissimulado” de qualquer aparelho celular em seu raio de alcance.
As descobertas chamam atenção porque, a um primeiro olhar da imprensa, a
operação da Polícia Federal dava a impressão de que somente a Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) tinha usado o First Mile ou quaisquer outros
produtos da Cognyte. Não quer dizer que a Abin não mereça um olhar jornalístico
criterioso, afinal, por anos o órgão foi controlado por um dos aliados
mais fiéis do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o ex-delegado da PF e
atual deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ).
Sob o comando de Ramagem, a Abin fichou líderes caminhoneiros de acordo
com seu grau de “ameaça” ao governo Bolsonaro durante a pandemia de
Covid-19, além de ter aumentado significativamente suas compras secretas. Ambos
os casos, vale dizer, foram revelados pela equipe da Pública neste ano dentro
do especial "Caixa-Preta do governo Bolsonaro", que
investigou documentos sigilosos da gestão passada.
Casos em que o aparato estatal é usado para espionagem, com eventuais abusos e
perseguições, estão longe de se esgotar. Considerando apenas o First
Mile, uma série de perguntas ainda segue sem resposta: Quem foi alvo de
monitoramento e por quê? A quem tais informações foram passadas? Qual foi o
papel das empresas de telefonia nesses casos?
A Pública levantou os 16 casos de
absolvições em segunda instância da Lava Jato e acompanhou o impacto da
condenação na vida de três desses réus
Executivo da OAS não conseguiu mais
emprego e não recebeu direitos trabalhistas Dentista aposentada foi usada como
“laranja” pela filha doleira Gerente de posto passou por duas
condenações
“A única coisa que ouvi foi o
cachorro latindo, mas de um jeito diferente. Abri a varanda e vi que ele estava
assustado. Quando eu saí do quarto, ouvi a campainha da cozinha, da porta da sala
e pessoas forçando a maçaneta. Num primeiro momento, achei que fosse assalto,
porque faziam muita força. Fui até a porta e perguntei que estava acontecendo,
e uma voz respondeu: ‘Aqui é a Polícia Federal [PF], abra imediatamente’.
Estava de cueca [era 6h30 da manhã], é constrangedor. Fui me vestir e fizeram
uma busca e apreensão na minha casa, levaram computador, celular, pastas, tudo
que tinha da OAS. Minha esposa estava grávida de cinco meses. Reviraram tudo e
pediram para que eu os acompanhasse”, relembra hoje Fernando Augusto Stremel
Andrade, ex-gerente de gasoduto da OAS.
Acusado de envolvimento no esquema
de corrupção da empresa, como o então presidente da empreiteira Léo Pinheiro e
os diretores Agenor Franklin Medeiros e Matheus Coutinho, o ex-gerente foi
conduzido coercitivamente para a PF na sétima fase da Operação Lava Jato,
denominada Juízo Final, no dia 14 de novembro de 2014. Foi liberado em seguida,
mas em 5 de agosto de 2015 condenado a quatro anos de prisão em regime aberto
por lavagem de dinheiro.
“O [Sergio] Moro achou que eu, com
a função que tinha, deveria saber o que estava acontecendo. A noção para quem
está de fora pode ser essa, mas não é isso que ocorre na obra”, afirma sobre a
condenação. Absolvido em segunda instância por falta de provas em 27 de
novembro de 2016, ele não conseguiu mais se recolocar no mercado de trabalho.
“Estou marcado pela Lava Jato. A maioria das empresas tem o setor compliance.
Não passa, cara, mesmo com a minha absolvição por 3 a 0. Fui condenado, acusado
de corrupção, e as pessoas questionam. Não tem o que fazer”, lamenta.
Stremel Andrade foi um dos 15 réus
condenados pelo ex-juiz Sergio Moro absolvidos pelo Tribunal Regional da 4ª
Região (TRF4), em Porto Alegre (RS), segundo dados obtidos com exclusividade
pela Agência Pública. Como ele, muitos tiveram suas vidas impactadas por
sentenças proferidas na 13ª Vara Federal, de Curitiba, mesmo depois de terem
sido anuladas em segunda instância pelos desembargadores João Pedro Gebran
Neto, Carlos Eduardo Thompson Flores e Leandro Paulsen.
Foi assim com Maria Dirce Penasso,
cirurgiã dentista aposentada, à época com 66 anos, residente em Vinhedo,
interior de São Paulo. A pacata vida da senhora foi revirada do avesso ao ter
seu nome atrelado à Lava Jato, no dia 17 de março de 2014, na primeira fase da
operação, quando sua casa foi alvo de busca e apreensão. Acusada de lavagem de
dinheiro e evasão de divisas, Maria Dirce foi condenada por Moro a dois anos,
um mês e dez dias de prisão (depois comutada para prestação de serviço à
comunidade). O motivo: sua filha, a doleira Nelma Kodama, abriu uma conta em
seu nome em Hong Kong, que teria sido usada para movimentar dinheiro de
corrupção. Maria Dirce, que sempre alegou desconhecimento das transações de
Nelma, foi absolvida pelo TRF4 em dezembro de 2015, pouco mais de um ano depois
da condenação. Além da decepção com a filha, sobraram sequelas da operação,
segundo o seu advogado, Eduardo Pugliesi Lima. “Ela tinha uma conta no mesmo
banco há 30, 40 anos. Quando foi acusada, começaram a dificultar tudo, para
fazer qualquer tipo de movimentação. Já tinha mais de 70 anos, não precisava
passar por isso”, conta Pugliesi Lima.
Saga mais complexa é a do gerente
do Posto da Torre, André Catão de Miranda, preso no dia 17 de março de 2014, na
primeira fase da Lava Jato. Foi essa prisão que inaugurou e batizou a operação
– em referência ao lava-jato do posto. Catão foi preso temporariamente como
suspeito de integrar uma organização criminosa liderada por seu patrão, o
doleiro Carlos Habib Chater. Há 11 anos ele era gerente financeiro do posto e
movimentava as contas de Chater, o que lhe valeu uma condenação por lavagem de
dinheiro da qual foi absolvido pelo TRF4 em setembro de 2015. No ano passado, o
administrador foi novamente condenado por Moro – dessa vez por supostamente
pertencer a uma organização criminosa – em um dos últimos atos do juiz na 13ª
vara antes de assumir o Ministério da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. Ele
aguarda o recurso ser julgado no TRF4.
Dados inéditos obtidos pela
Agência Pública revelam que 15 réus condenados pelo ex-juiz Sergio Moro foram
absolvidos pelo TRF4
Abandonado pela OAS
Engenheiro formado pela PUC do
Paraná em 1985, com pós-graduação em engenharia de dutos desde 2007, o
ex-gerente de gasoduto da OAS tem currículo de executivo de primeira linha.
Antes de trabalhar na OAS, foi funcionário na Petrobras, onde permaneceu entre
1998 e 2007, com a responsabilidade de avaliar a viabilidade técnica e
econômica de empreendimentos da empresa no setor de gasoduto. Foi a Petrobras
que o indicou para trabalhar na OAS, na construção de um gasoduto no Amazonas,
o Urucu-Coari-Manaus, inaugurado em novembro de 2009 e recentemente vendido
junto com 90% da Transportadora Associada de Gás S.A. (TAG) para um grupo
empresarial que reúne a francesa Engie e o fundo canadense Caisse de Dépôt et
Placement du Québec (CDPQ), por US$ 8,6 bilhões (cerca de R$ 33 bilhões), em
abril do ano passado.
Em 2010, Stremel Andrade foi
deslocado para Alagoas, dessa vez para trabalhar na concepção do gasoduto Pilar-Ipojuca.
Um ano depois, assinou um contrato representando a OAS com a empreiteira
Rigidez, pertencente a Alberto Youssef, no valor de R$ 1,8 milhão. Os problemas
começaram aí.
“Não vou dizer que fui obrigado,
mas a OAS me orientou a assinar o contrato para uma divisão de dividendos e
participações. É uma divisão interna dos lucros de uma obra, mas eu não
imaginava que isso ia para um agente público ou para a Petrobras. Eu era um
funcionário operacional”, justifica Stremel Andrade. “Você pode me perguntar:
‘Pô, o Léo Pinheiro, Agenor, não participava de reunião com você?’. Sim, todo
mês a gente se reunia, mas nós falávamos do avanço físico de obra, de
rentabilidade”, afirma Fernando, que nem sonhava em ver sua casa invadida pela
PF como aconteceu em novembro de 2014.
Ele lembra que foi conduzido
coercitivamente para prestar depoimento na PF em uma sexta-feira e, na segunda,
já estava de volta ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), para
onde havia sido deslocado pela OAS em 2013. Ali supervisionava a construção da
adutora que vai levar o lixo químico tratado de uma das refinarias da Petrobras
até Maricá para ser despejado 3 km adiante no mar. “Minha equipe veio conversar
comigo para saber o que havia acontecido. Ninguém esperava essa situação.
Trabalhei normal, administrando esse problema e a continuidade da obra. Até a
sentença, que foi em meados de 2015, era um sufoco, porque ia para Curitiba,
tinha audiência de acusação, defesa”, relembra.
Questionado sobre por que preferiu
ficar em silêncio no depoimento a Sergio Moro, o ex-executivo da OAS afirma que
“essa era uma estratégia da empresa”. “Antigamente, se condenado na segunda
instância, você não ia preso. O acordo era não falar absolutamente nada, porque
eu poderia ser condenado em segunda instância e, até chegar no STJ, ia demorar
mais 10, 15 anos, todo mundo já ia ter mais de 70 anos. Isso mudou a partir do
momento que a segunda instância começou a prender.”
Entre setembro de 2015 e abril de
2016, Stremel Andrade permaneceu afastado, sem exercer nenhuma função na OAS,
ainda que recebendo salário. Quando retornou ao cotidiano da empresa, ele
relata que permaneceu marginalizado. “Eu não tinha nem mesa para trabalhar”,
conta. O executivo não era mais convocado para reuniões e tampouco sabia de
detalhes operacionais da companhia.
Meses depois, em novembro de 2016,
foi absolvido por unanimidade pelos três desembargadores do TRF4. Nenhum dos
delatores da OAS havia citado seu nome ao falar sobre as irregularidades
encontradas pela força-tarefa. “Foi um alívio e achei que tudo ia voltar a ser
como era antes, mas isso não aconteceu”, lembra o engenheiro, que continuou a
se sentir escanteado no trabalho.
Em março de 2018, foi demitido “de
maneira fria e calculista” pela OAS sem receber FGTS, férias proporcionais nem
rescisão trabalhista, o que teria acontecido também com outros funcionários da
construtora. Segundo ele, a cúpula da empresa “ficou chateada” com o depoimento
de um dos delatores da empresa, o ex-diretor financeiro Mateus Coutinho de Sá
Oliveira, dizendo que a empresa havia prometido indenizar os diretores queconcordassem em fazer a delação premiada. “Os acionistas se sentiram traídos.
Desde 2018 ninguém recebe mais nada”, diz.
Stremel Andrade diz que pediu uma
compensação para se “reerguer”, movendo uma ação trabalhista contra a OAS no
valor de R$ 4,4 milhões. São 50 salários por danos morais, R$ 385 mil por 138
dias de férias não gozadas e mais R$ 600 mil pela rescisão do contrato de
trabalho – o que ainda não recebeu. Sem emprego, ele ainda sente o peso da
condenação. “Não é mais a mesma coisa. Irmãos e os parentes mais próximos, tudo
bem. Mas o restante da família tem um outro conceito de mim.”
Stremel Andrade ainda é réu em
processo por improbidade administrativa em ação protocolada pela
Advocacia-Geral da União (AGU), por mau uso do dinheiro público. “Como fui
absolvido na ação do MPF, espero que isso conte nessa outra acusação. É uma
agonia sem fim.”
A Pública entrou em contato com a
OAS, que, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que “sobre os temas
rescisórios, a empresa acredita que encaminhará soluções definitivas nas
próximas semanas”. Sobre o depoimento de Sá Oliveira, mencionado por Stremel
Andrade, disse que “jamais efetuou qualquer tipo de pagamento aos ex-executivos
e afirma categoricamente que nunca celebrou tal acordo mencionado”. O advogado
Pedro Ivo Gricoli Iokoi, responsável pela defesa de Sá Oliveira, também não
quis conceder entrevista à Pública, afirmando que “Mateus é colaborador e
possui cláusula de confidencialidade no acordo”.
O Posto da Torre, propriedade do
empresário Carlos Habib Chater, deu origem e nome à Operação Lava Jato
De Vinhedo a Hong Kong
O relógio marcava 0h37 do dia 26
de novembro 2012 quando o visor do celular da doleira Nelma Kodama brilhou. Era
uma ligação vinda de uma operadora do HSBC, na China.
– “Oi, aqui é a Carol, de Hong
Kong DC”.
– “Sim, pode falar, aqui é Maria
Dirce Penasso.”
– “Nós temos algumas perguntas
para você, posso enviar um email para você dar uma olhada?”
– “Sobre qual das 961? Qual
pagamento ?”
– “São perguntas sobre algumas
informações que precisamos, posso lhe enviar um email”
– “Ok, vamos fazer assim, porque
aqui eu estou em outro país e agora é meia noite, ok? Todos os escritórios
estão fechados, pode me fazer um favor, me envie um email, ok? E amanhã eu vejo
o email e você me liga amanhã à noite, pode ser assim? Você entende? Porque
está tudo fechado agora”.
O diálogo, em inglês, foi
traduzido pela PF dois anos depois, ao investigar Maria Dirce Penasso, mãe da
doleira, que era real interlocutora da conversa. “A Maria Dirce não fazia ideia
dessas movimentações, era tudo em inglês. Ela, com a idade que tinha, sem saber
falar outra língua, mal sabendo mexer nas funções básicas de um computador,
jamais conseguiria movimentar o dinheiro de uma conta bancária em Hong Kong”,
contou à Pública o advogado da dentista aposentada, Eduardo Pugliesi Lima.
O uso de seu nome pela filha em
contas que movimentariam dinheiro da corrupção resultou em uma acusação do
Ministério Público Federal (MPF) por evasão de divisas e lavagem de dinheiro. A
mesma denúncia que foi feita contra a filha doleira e seu motorista particular,
Cleverson Coelho de Oliveira, entre outros. Segundo o MPF, Maria Dirce teria
consentido em ceder seu nome para abertura de uma conta em Hong Kong, na China,
intitulada “Il Solo Tuo Limited”, e outra conta da “NGs Prosper Participações
Ltda.”, uma empresa de fachada responsável pela administração de 60
apartamentos no hotel Go Inn, no Jaguaré, zona oeste da capital paulista. As
duas contam serviriam para ocultar o dinheiro do esquema entre empreiteiras e a
Petrobras.
No dia 22 de outubro de 2014,
Maria Dirce Penasso foi condenada a dois anos, um mês e dez dias de prisão,
tendo a pena sido transferida para prestação de serviço à comunidade. Além
disso, Sergio Moro bloqueou os quase R$ 11 mil que estavam em sua conta quando
ela teve a casa alvo de busca e apreensão. Na mesma sentença, sua filha, Nelma
Kodama, foi condenada a 18 anos de prisão por Sergio Moro por lavagem de
dinheiro, evasão de divisas, corrupção ativa e por supostamente liderar uma
organização criminosa. Considerada a primeira delatora da Lava Jato, Nelma teve
sua pena reduzida para 15 anos em 2015. Em junho do ano seguinte ela passou ao
regime semiaberto, com a utilização da tornozeleira eletrônica. Em agosto de
2019, foi autorizada a retirar o aparelho ao ser beneficiada pelo indulto
natalino editado por Michel Temer em 2017, que prevê o cumprimento de um quinto
da pena para não reincidentes. Como Nelma já havia cumprido mais de três anos,
a benesse foi concedida.
Nelma era ligada ao doleiro
Alberto Youssef, um dos nomes mais conhecidos de toda a operação e um dos
primeiros a aderir à delação premiada – ele foi condenado a mais de cem anos de
prisão, em 12 processos, mas ficou apenas três no regime fechado. Além da
relação profissional, os dois mantinham um vínculo sentimental. Por esse
motivo, de acordo com o advogado de Maria Dirce, a mãe de Nelma conhecia
Youssef, que frequentava sua casa. “Ela não sabia dessas transações que eles
faziam. A Nelma visitava ela, mas a Dirce nunca ficou perguntando. A filha já
era adulta, né? A mãe não ficava questionando sobre os afazeres dela”, diz o
advogado.
Em dezembro de 2015, Maria Dirce
foi absolvida pelo TRF4 de todas as acusações que constavam no processo em que
havia sido condenada por Moro. “Quando chega em um tribunal, com outros três
desembargadores, tudo muda, porque eles podem colocar outra visão. A Maria
Dirce provou, através do imposto de renda, que tudo que ela tem foi conquistado
pelos anos de trabalho como celetista. Não houve elevação da renda ou do
patrimônio nos últimos anos”, conta Pugliesi Lima.
Maria Dirce não quis conversar com
a Pública “para não reviver uma história que prefere esquecer”, de acordo com o
advogado.
Nelma Kodama utilizou o nome da
mãe como “laranja” para a abertura de conta em offshore
Duas condenações, uma absolvição
Também o ex-gerente administrativo
André Catão de Miranda diz ter sido pego de surpresa por acusações que
desconhecia. Ele e outras pessoas ligadas ao Posto da Torre foram presos em
março de 2014 em decorrência do mesmo processo que condenou o dono do posto, o
doleiro Carlos Habib Chater, apontado como líder e executor de crimes
financeiros. Por realizar operações de câmbio e pagamentos a mando do patrão,
consideradas irregulares pelo MPF, ele foi detido em Brasília e transferido
para a Casa de Custódia de São José dos Pinhais, no Paraná, onde ficou preso
provisoriamente por sete meses.
“Foi um tremendo desrespeito. Os
dias passavam e ele lá dentro da prisão”, critica o advogado Marcelo de Moura,
defensor de Miranda. “Ele era um funcionário subalterno, que recebia ordens e,
se eventualmente algum ato ilícito foi praticado, aconteceu com o total
desconhecimento [dele]. Ele cuidava da parte financeira, mas exclusivamente da
atividade-fim, que era venda de combustível”, afirma Moura.
Para o MPF, no entanto, o gerente
do posto de gasolina era responsável por fazer pagamentos em uma extensa rede
de lavagem de dinheiro, que envolvia, além de seu patrão, os doleiros Alberto
Youssef, Raul Henrique Srour e Nelma Kodama e um suposto traficante de drogas,
René Luiz Pereira. Duas ações penais foram movidas contra o gerente, uma delas
por tráfico de drogas. Nesse caso, segundo o MPF, Chater teria utilizado, com a
cumplicidade de seu gerente, a estrutura do Posto da Torre para lavar US$ 124
mil provenientes da venda de cocaína na Europa.
Nos depoimentos que prestou na 13ª
Vara de Curitiba, Miranda disse ter feito os pagamentos por determinação do
patrão. Mas, em outubro de 2014, Sergio Moro o condenou a quatro anos de
reclusão em regime semiaberto. Menos de um ano depois da condenação, em
setembro de 2015, o TRF4 absolveu André e manteve as punições de René Luiz
Pereira (14 anos de prisão) e Carlos Habib Chater (cinco anos). Os
desembargadores Leandro Paulsen e Victor Luís dos Santos Laus apresentaram voto
favorável à absolvição, enquanto o relator João Pedro Gebran Neto votou pela
manutenção da condenação em primeira instância.
Segundo Paulsen, “André era um
empregado de Habib, não havendo nenhum elemento que aponte qualquer
enriquecimento”, disse. “O Ministério Público Federal não trouxe elementos
(quebra de sigilo financeiro, fiscal, prova testemunhal ou documental)
demonstrando que o réu (André) auferia recursos derivados de atividade ilícita.
Também parece contrariar a lógica afirmar que Miranda coordenava todo o núcleo
de operações financeiras ilícitas de Carlos Habib sem a obtenção de qualquer
contrapartida específica para tanto”, afirmou o desembargador.
Apesar de absolvido, a condenação
mudou a vida de Miranda para sempre, de acordo com o seu advogado: “O reparo
nunca é suficiente para voltar ao ponto anterior de uma pessoa que não tinha
envolvimento nenhum com atividade criminosa e é surpreendida com uma prisão,
que acaba por perdurar durante sete meses. Essas máculas não podem ser
reparadas, tanto do ponto de vista financeiro quanto emocional”.
Além disso, em outubro de 2018,
Sergio Moro, voltou a condená-lo, dessa vez a dois anos e seis meses em regime
aberto pelo crime de pertencimento a organização criminosa. De acordo com o
ex-juiz, Miranda “fazia pagamentos, recebimentos e lançamentos no Sismoney, ou
seja, na contabilidade informal. Não era meramente um gerente financeiro
regular do Posto, mas pessoa de confiança de Carlos Habib Chater. Não se pode
afirmar que não tinha conhecimento da utilização da estrutura do Posto da Torre
para a prática dos crimes financeiros e dos quais aliás participava”.
A pena foi revertida para serviços
comunitários, mas Miranda “ficou revoltado”, diz o seu advogado. “Ele já tem as
marcas de uma prisão ilegal. Após a absolvição, ele estava reestruturando a
vida aos poucos. Uma notícia pesada como essa gera a sensação de que uma nova
injustiça precisa ser combatida.”
Após a primeira condenação,
Miranda morou em Uberlândia e atualmente trabalha em uma empresa da família, em
Brasília. A nova condenação, diz o advogado, significa uma pá de cal nos planos
do ex-gerente. “O André é o tipo de cidadão que poderia atravessar a vida
inteira sem entrar em uma delegacia, muito menos ser preso. As investigações
mostraram que ele não tinha aparelho de comunicação restrita, possuía um
apartamento adquirido com recurso próprio, utilizando fundo de garantia, e não
tinha automóvel. Ele entrou no bolo de uma investigação precipitada, que
geraram prisões e condenações injustas”, critica.
O recurso no TRF4 já foi
protocolado e a defesa espera o julgamento, que ainda não tem data marcada. Na
avaliação de Moura, a Lava Jato extrapolou limites jurídicos. “Acho que se
elegeu a corrupção, que é um mal a ser combatido, como um tema que extrapola a
legalidade. É como se as armas utilizadas contra a corrupção pudessem ser
ilegais.”
Com ele concorda Maria Carolina
Amorim, coordenadora do escritório do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais (IBCCRIM) em Pernambuco. “Antes de se ver condenado, o réu é exposto
pela imprensa de forma irreparável, em razão da permissividade que o Judiciário
tem tido com os seus funcionários que vazam informações. Em caso de condenação,
tal dano é ainda maior, motivo pelo qual deve-se exigir mais responsabilidade
do julgador”, diz Maria Carolina.
Outros casos
Além dos já citados Fernando
Stremel, Maria Dirce e André Catão de Miranda, há outras 12 pessoas – entre
elas o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, que teve duas condenações
anuladas pelo TRF4. A primeira, de setembro de 2015, em que foi condenado a 15
anos e quatro meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, foi revogada
em 2017. Em outra ação penal, envolvendo a empresa Engevix, a condenação a nove
anos de prisão foi anulada por insuficiência de provas. Em contato com a
Pública, o advogado Luiz Flávio D’Urso afirmou que Vaccari “se vê injustiçado,
pois somente fez o que lhe competia como tesoureiro do partido: pedia doações
legais para o PT, sempre por depósito bancário e com recibo, jamais recebeu
recursos em espécie. Ele foi um símbolo, um troféu”, afirmou o advogado.
Veja os outros casos em que as
sentenças de Moro foram revistas pelo TRF4:
Mateus Coutinho de Sá Oliveira:
condenado a 11 anos de prisão em agosto de 2015, aderiu à delação premiada e
foi absolvido um ano depois. Ele era diretor financeiro da OAS e foi apontado
pelo MPF como um dos responsáveis pelo departamento de propinas da empreiteira.
André Luiz Vargas Ilário:
ex-deputado federal (PT) foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão em
regime fechado por lavagem de dinheiro e absolvido no ano passado pelo TRF4.
Foi condenado em outras duas ações da Lava Jato: seis anos em um esquema de
lavagem de dinheiro envolvendo uma empresa fornecedora de softwares, e 14 anos
e quatro meses de prisão, em 2015, também por lavagem de dinheiro. As
condenações foram mantidas em segunda instância, mas, como ele já havia
cumprido parte da pena quando foi preso preventivamente, está em liberdade
condicional e com algumas restrições.
Leon Vargas Ilário: foi absolvido
junto com irmão, André Vargas, no mesmo processo por lavagem de dinheiro. Em
outubro do ano passado, na ação penal envolvendo o esquema de softwares, que
também afetou o ex-deputado André Vargas, Leon teve a pena reduzida pelo TRF4
de cinco anos, para quatro anos, nove meses e 18 dias em regime semiaberto
Fernando Schahin: executivo do
Grupo Schahin, recebeu condenação, em setembro de 2016, de cinco anos e quatro
meses de prisão, por corrupção ativa, envolvendo benefícios em uma licitação da
Petrobras para operação do navio-sonda Vitória 10.000 e empréstimos concedidos
ao pecuarista José Carlos Bumlai. Foi absolvido em maio de 2018. Em outro
processo, que também aponta irregularidades na construção e operação dos
navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000, Fernando teve a pena reduzida
para pouco mais de cinco anos.
Agosthilde Mônaco: assessor do
ex-diretor da área internacional da Petrobras Nestor Cerveró, foi absolvido da
condenação de 2017 pelo crime de lavagem de dinheiro proveniente de contratos
dos navios-sonda Petrobras 10.000 e Vitória 10.000. Foi, no entanto, denunciado
outra vez pelo MPF, dessa vez por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, na
negociação da compra da Refinaria de Pasadena pela Petrobras. O processo se
encontra na fase de oitiva de testemunhas.
José Carlos Costa Marques Bumlai:
pecuarista e empresário apontado pelo MPF como responsável pela realização de
reformas no sítio de Atibaia. Foi condenado a uma pena de três anos e nove
meses de reclusão na primeira instância, mas absolvido pela Oitava Turma por
ausência de provas em novembro do ano passado. Ele foi condenado também, dessa
vez a nove anos e dez meses de prisão, por gestão fraudulenta de instituição
financeira e corrupção, no mesmo caso que envolve o Banco Schahin e
navios-sonda da Petrobras. Cumprindo prisão domiciliar, foi beneficiado com a
retirada da tornozeleira eletrônica após novo entendimento do Supremo Tribunal
Federal (STF) sobre prisão em segunda instância, em novembro do ano passado.
Emyr Diniz Costa Júnior: diretor
de contratos da construtora Norberto Odebrecht. Supervisionou a obra de reforma
do sítio de Atibaia, que tem como principal alvo o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Emyr foi condenado a três anos de reclusão por Sergio Moro, mas foi
absolvido pelo TRF4, no dia 27 de novembro de 2019, por ausência de provas.
Roberto Teixeira: advogado e amigo
do ex-presidente Lula, também foi acusado de envolvimento no processo do sítio
de Atibaia. Ele teria ocultado documentos que demonstrariam a ligação da OAS
com a reforma, além de orientar engenheiros da empreiteira a celebrar contratos
fraudulentos com Fernando Bittar, um dos proprietários do sítio. Teixeira foi
condenado a dois anos de reclusão na primeira instância, mas foi absolvido por
ausência de provas.
Paulo Roberto Valente Gordilho:
diretor técnico da OAS, era o encarregado da reforma do sitio de Atibaia. Foi
condenado a um ano de reclusão por Sergio Moro, mas foi absolvido pelo TRF4 por
ausência de provas.
Isabel Izquierdo Mendiburo Degenring
Botelho: agente do banco Société Générale no Brasil, foi acusada de auxiliar a
abertura de contas em offshores pelo mundo de ex-diretores da Petrobras,
caracterizando crime de lavagem de dinheiro. Foi condenada a três anos e oito
meses de prisão em novembro de 2018, mas foi absolvida na segunda instância um
ano depois.
Álvaro José Galliez Novis: doleiro
condenado a quatro anos e sete meses por lavagem de dinheiro em março de 2018,
na mesma ação penal que envolveu o ex-presidente do Banco do Brasil Aldemir
Bendine. Em agosto do ano passado, foi beneficiado pelo habeas corpus deferido
pela Segunda Turma do STF, em agosto do ano passado, que anulou a sentença
confirmada pelo TRF4 em maio de 2019.
Alteração às 20h33 21.01.2020 –
Aldemir Bendine foi presidente do Banco do Brasil e não do Banco Central como
constava anteriormente