Deflagrada nesta quinta (11), operação apura uso irregular
da Inteligência brasileira para favorecer filhos de Bolsonaro
Ministros do STF teriam sido monitorados pela chamada
"Abin Paralela" - Antônio Cruz/Agência Brasil
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu manter a
prisão de cinco investigados na quarta fase da Operação Última Milha,
deflagrada nesta quinta-feira (11), que apura o uso irregular da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin) para favorecer filhos do ex-presidente Jair
Bolsonaro, monitorar ilegalmente ministros do STF e políticos opositores.
Com a decisão, vão continuar presos Mateus de Carvalho Sposito, ex-funcionário da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, o empresário Richards Dyer Pozzer, o influenciador digital Rogério Beraldo de Almeida, Marcelo Araújo Bormevet, policial federal, e Giancarlo Gomes Rodrigues, militar do Exército.
As prisões foram mantidas após audiência de custódia
realizada por um juiz instrutor do gabinete do ministro Alexandre de Moraes. A
justificativa para manutenção das prisões ainda não foi divulgada.
Segundo a investigação da Polícia Federal (PF), os cinco acusados
participaram do trabalho de monitoramento ilegal, que teria sido realizado com
o conhecimento do ex-diretor da Abin e atual deputado federal Alexandre Ramagem
(PL-RJ).
A Agência Brasil não conseguiu localizar as
defesas dos cinco acusados. Em nota, Alexandre Ramagem negou ter atuado
ilegalmente durante sua gestão no órgão.
Ramagem disse que não houve monitoramento ilegal de
autoridades. Segundo ele, os nomes que aparecem na investigação foram citados
em mensagens de WhatsApp e conversas de outros investigados na operação.
"Trazem lista de autoridades judiciais e legislativas
para criar alvoroço. Dizem monitoradas, mas na verdade não. Não se encontram em
First Mile ou interceptação alguma. Estão em conversas de WhatsApp, informações
alheias, impressões pessoais de outros investigados, mas nunca em relatório
oficial contrário à legalidade", afirmou.
O parlamentar também negou que tenha favorecido o senador
Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Segundo a PF, as ações clandestinas de monitoramento
também ocorreram contra três auditores da Receita Federal responsáveis pela
investigação sobre "rachadinha" no gabinete de Flávio quando ele
ocupava do cargo de deputado estadual.
"Não há interferência ou influência em processo
vinculado ao senador Flávio Bolsonaro. A demanda se resolveu exclusivamente em
instância judicial", concluiu.
Ontem (11), o senador negou qualquer favorecimento e disse
que a divulgação do relatório de investigação da PF foi feita para prejudicar a
candidatura de Ramagem à prefeitura do Rio de Janeiro.
"Simplesmente não existia nenhuma relação minha com
Abin. Minha defesa atacava questões processuais, portanto, nenhuma utilidade
que a Abin pudesse ter. A divulgação desse tipo de documento, às vésperas das
eleições, apenas tem o objetivo de prejudicar a candidatura do delegado Ramagem
à prefeitura do Rio de Janeiro", afirmou.
Software israelense FirstMile, alvo de escândalo na Abin,
também foi adquirido pelo Exército, que, questionado em 2019, dizia não ter
acesso à ferramenta que já utilizava
Exército Brasileiro / Flickr: Exército Brasileiro participa de operações de apoio durante
as Olimpíadas no Brasil, em 2016
No dia 20 de outubro de 2023, por determinação do Supremo
Tribunal Federal, a Polícia Federal deflagrou a Operação Última Milha, que
investiga o uso ilegal de um software espião, o First Mile, por servidores da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Jair Bolsonaro.
Comercializado pela empresa Cognyte, subsidiária
da israelense Verint, o aplicativo First Mile tem capacidade de acessar
a localização em tempo real de telefones celulares captando os metadados
trocados entre o aparelho e torres de telecomunicação.
Além disso, possibilita o armazenamento do histórico da
geolocalização do aparelho e a criação de alertas sobre a presença do telefone
móvel em uma determinada área. Para que os dados fossem monitorados, bastava
que se digitasse o número do celular escolhido como alvo.
A investigação da Polícia Federal apontou que a ferramenta
foi usada pela Abin mais de 60 mil vezes, 1,8 mil das quais para monitorar
políticos, jornalistas, juízes e adversários do governo Bolsonaro.
Na última quinta-feira (25), o STF autorizou a Operação
Vigilância Aproximada, com ações de busca e apreensão contra 12 alvos – dentre
os quais o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-dirigente da Abin. Na
última segunda-feira (29), houve também operações de busca e apreensão contra o
vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do ex-presidente, e o
militar Giancarlo Gomes Rodrigues, apontado como um dos operadores da FirstMile
enquanto estava lotado no Centro de Inteligência Nacional (CIN) da Abin, criado
em julho de 2020 por Bolsonaro e Augusto Heleno para “enfrentar
ameaças à segurança e à estabilidade do Estado”.
A PF passou a investigar o que considera uma organização
criminosa, dividida em vários núcleos, que fez uso do FirstMile em benefício da
família Bolsonaro e para atacar seus inimigos. Dentre os espionados pela
"Abin paralela" estariam o então governador do Ceará e atual ministro
da Educação, Camilo Santana, os ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar
Mendes, além do então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e a
deputada federal Joice Hasselmann – a lista completa dos espionados continua
desconhecida.
Além da Abin, a PF também encontrou evidências, durante as
ações de busca e apreensão de 20 de outubro, de que o software FirstMile foi
adquirido pelo Exército Brasileiro. Em agosto de 2023, a Agência
Pública já havia apurado que o Exército tinha contratos
com a fabricante do software. Mas foi a investigação da Polícia Federal que
encontrou evidências de que a ferramenta fora comprada durante a intervenção
federal na segurança pública do Rio de Janeiro, ainda em 2018.
Com o avanço das investigações, Caio Santos Cruz, filho do
general Santos Cruz, relatou à PF que a compra da ferramenta foi intermediada
pelo general Luiz Roberto Peret, que havia sido contratado pela Verint Systems,
fabricante da FirstMile e proprietária da Cognyte, criada em 2021 como um braço
separado voltado especificamente à inteligência e defesa. Peret, que passou
para a reserva em 2007, teria sido membro da organização de extrema-direita
militar TERNUMA (Terrorismo Nunca Mais), e é um dos conselheiros fundadores do
Instituto General Villas Bôas, general que ocupava o cargo de comandante do
Exército na época em que o software espião foi adquirido.
O contrato do Exército com a Verint, fechado em outubro de
2018, teria o valor de 10,8 milhões de dólares (52 milhões de reais), pagos com
parte dos 1,2 bilhões de reais que compunham o orçamento da intervenção federal
no Rio de Janeiro.
Segundo
a Folha de São Paulo, “apesar de a compra ter sido
realizada no âmbito da intervenção, o software não foi utilizado somente para o
combate ao crime organizado no Rio de Janeiro. Ele ficou sob a administração do
Exército”. O Gabinete de Intervenção Federal confirmou ao jornal que “[...]
softwares de inteligência ficaram sob a propriedade das Forças Armadas, mas com
a possibilidade de utilização em prol dos órgãos de segurança pública do Rio de
Janeiro mediante necessidade e acordo com a União, caso fosse de interesse do
Governo do Estado do Rio de Janeiro”.
O compartilhamento do software com autoridades estaduais e o
eventual desvio de finalidade dos recursos da intervenção federal – como conclui
um parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) –, no entanto, não
são os únicos possíveis problemas envolvendo o Exército e o aplicativo
FirstMile. Em 27 de agosto de 2019, quatro anos antes da operação da PF,
a Revista Opera enviou ao Centro de Comunicação Social
do Exército (CComSEx) uma série de questionamentos acerca do uso de ferramentas
de vigilância como a FirstMile. As questões, formuladas pelo então jornalista
da Revista Opera André Ortega, que investigava o uso
dessas tecnologias no Brasil, foram então encaminhadas ao Comando de
Comunicações e Guerra Eletrônica do Exército, que no dia 11 de setembro de 2019
deu respostas contraditórias com o que viria a ser apontado pela PF quatro anos
depois.
Os questionamentos chegavam a citar nominalmente a empresa
Verint Systems, que também teria fornecido ferramentas de vigilância similares
à FirstMile para o Exército do Peru. Mas, de acordo com o DCT, o Exército “não
possuía capacidades semelhantes” a uma ferramenta que “seria capaz de
identificar a localização precisa de telefones”. Perguntado se possuía
capacidades similares ou próximas das ostentadas pelo Exército do Peru graças a
seu contrato com a Verint em 2015, o Exército respondeu somente que “possui
capacidades de monitoramento rádio”.
O Departamento também informou que o Exército “não possui
nenhum produto (malware) capaz de infectar, monitorar e coletar informações de
telefones móveis.”
À luz do que revelou a PF, a única explicação plausível para
a resposta dada pelo Exército à época seria se a ferramenta, adquirida em 2018,
não estivesse com sua licença de uso ativa entre agosto e setembro de 2019,
quando o questionamento foi feito. Em 2019, o Comando
do Exército destinou 40 milhões de reais à Verint, proprietária do
FirstMile, por meio de três contratos. Os três contratos, classificados como de
“aquisição de serviços de TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação) de
caráter secreto ou reservado" ou de “aquisição de material permanente de
caráter secreto ou reservado", disponíveis no Portal da Transparência,
foram pagos no dia 12 de agosto. Os questionamentos da Revista Opera foram
feitos no dia 27 de agosto, e as respostas do Exército foram enviadas no dia 11
de setembro.
Outro lado: Exército se recusa a dar informações
A reportagem voltou a entrar em contato com o Exército,
questionando quais foram os períodos durante os quais a organização teve acesso
ao FirstMile, bem como as razões pelas quais respondeu negativamente às
perguntas feitas pela Revista Opera há quatro anos.
Desta vez, o Centro de Comunicação Social do Exército disse somente que “em
função de previsão legal (Lei n.º 12.527 de 18 de novembro de 2011, em seu
artigo 23, incisos V e VIII) não poderá atender à solicitação apresentada.”
A legislação a que o Exército se refere é a Lei de Acesso à
Informação (LAI), e o artigo 23 diz respeito às informações consideradas
imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado. Os incisos mencionados
pelo Exército dizem respeito a informações que possam “prejudicar ou causar
risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas” (V) e “comprometer
atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em
andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações" (VIII).
Não foi explicado porque, em 2019, o Exército pôde responder aos
questionamentos da Revista Opera negativamente, mas
agora não pode explicar as respostas que deu, à luz da investigação da Polícia
Federal.
Mas a LAI prevê também, no seu artigo 32, as condutas
ilícitas que ensejam responsabilidade de agente público ou militar: “I -
recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar
deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma
incorreta, incompleta ou imprecisa”; “III - agir com dolo ou má-fé na análise
das solicitações de acesso à informação”; “V - impor sigilo à informação para
obter proveito pessoal ou de terceiro, ou para fins de ocultação de ato ilegal
cometido por si ou por outrem”.
Para o diretor da associação Data Privacy Brasil e mestre em
direito Rafael Zanatta, o uso de tecnologias para atividades de inteligência no
Brasil conta com a ausência de jurisdição específica. “A legislação, a
cobertura legal e jurídica que temos para Inteligência já é bastante reduzida;
porque constitucionalmente não temos. Temos a cobertura de segurança pública,
mas não se fala de Inteligência na Constituição Brasileira. E temos a lei que
reorganizou a Abin, no governo FHC, que determina as competências e depois as
normas que criam a CCAI (Comissão Mista de Controle das Atividades de
Inteligência), que seria o órgão de controle. Mas elas não dizem nada sobre
softwares, ou seja, não parametrizam em que condições é legítima a utilização
de um software com essas capacidades, softwares espiões”, diz. “E o que foi
feito na construção de raciocínios sobre a utilização desses softwares, que
acho que tem uma certa perversidade jurídica, é que também encontraram
fundamentação jurídica dentro de pareceres que vinham da Advocacia Geral da
União (AGU) e da própria Procuradoria Geral da República (PGR) e órgãos
especializados para olhar juridicamente a licitude dessas operações, onde se
cravou uma tese de zona cinzenta. Ou seja: 'não se aplica aqui o Código de
Processo Penal, não estamos falando de interceptação telefônica, estamos
operando numa outra situação fática'. E essa outra situação fática não aplica,
não traz, não puxa, essas regras de devido processo que estão na Constituição e
no código de processo. Que é você ter o crivo judicial, autorização judicial; e
ter a delimitação de finalidade específica, de operação dentro de um espaço de
tempo, e de uma razoabilidade.”
Zanatta chama atenção, no entanto, a uma especificidade
jurídica do FirstMile. Ele cita ferramentas que são usadas para extrair
informações de celulares em posse de autoridades policiais, ou ainda softwares
que extraem informações em massa da internet e criam relatórios, como casos
diferentes ao FirstMile: “o FirstMile é diferente, porque ele explora uma
vulnerabilidade de infraestrutura de comunicações que é per se ilícita.
Esse 'spoofing', que é o atacante que está na unidade celular explorando
informação, está explorando uma vulnerabilidade que as empresas de
telecomunicações não querem que ele explore. E está explorando uma capacidade
de obtenção de informações de centenas, milhares de pessoas. E ele é feito por
uma empresa prestadora de serviço, não é uma autoridade policial que está em
posse de um dispositivo”, analisa. “Então eu acho que o FirstMile é
indefensável na nossa concepção jurídica; porque a premissa dele é uma
ilicitude. A dinâmica de funcionamento, para ele poder funcionar, ele está em
ilicitude. Porque está explorando a vulnerabilidade de um protocolo de
comunicações de um setor que é considerado de interesse nacional e que é
amplamente regulado, pela ANATEL, pelas normas de telecomunicações, etc.”
Para retirar o uso das ferramentas espiãs dessa zona
cinzenta, opina Zanatta, seria fundamental estabelecer uma classificação
jurídica clara sobre os diferentes tipos de software – malwares, spywares,
aplicativos de extração de dados, etc. –, e estabelecer uma legislação
específica sobre o tema. “Precisaria de um enfrentamento constitucional mesmo,
ou seja, inaugurar por meio de uma emenda constitucional um capítulo específico
sobre Inteligência na Constituição. E parametrizar esses elementos básicos de
necessidade, finalidade específica, razoabilidade, proporcionalidade, e criar
algum arranjo democrático de supervisão.”
Uso interno do Exército aumenta risco de autoritarismo,
diz pesquisadora
Para Julia Almeida, professora de Direito na Universidade
Anhembi Morumbi, integrante do Núcleo de Estudos da Violência da USP e autora
do livro “A militarização da política no Brasil” (Alameda, 2023), o uso
das Forças Armadas em missões de ordem interna, como a Intervenção Federal do
Rio de Janeiro, por meio da qual o FirstMile foi adquirido ou readquirido pelo
Exército, aumenta significativamente o risco de construção de governos
autoritários.
“A intervenção federal na Segurança Pública do Rio de
Janeiro foi um exemplo emblemático dessa atuação. Essa forma de intervenção é
uma forma política que ajuda a construir a intervenção de militares e membros
das Forças Armadas em projetos políticos, inclusive de natureza eleitoral.
Então o que esse escândalo do FirstMile revela é isso; como essas ferramentas
(como a GLO) não deveriam existir, e como seu uso desenfreado e intensificado é
um risco imenso à democracia no Brasil. O fato dos sistemas de inteligência
contarem com órgãos militares e terem a Abin sob o GSI também são determinantes
para essa atuação. É fundamental apontar, por último, que essa sempre foi a
tarefa da inteligência no Brasil, que tem nos militares sua efetivação:
controlar opositores, a pobreza e os que de alguma forma ameaçavam o status
quo no Brasil”, diz ela, que diz ainda que ferramentas como o
FirstMile “possuem inúmeros problemas de utilização.
Por si só, é um potencial violador de direitos fundamentais.
Tendo em vista o desenho atual da inteligência no Brasil e falta de controle
civil da atuação das Forças Armadas, acredito que esse tipo de ferramenta não
deveria ser controlada e utilizada diretamente pelas Forças Armadas, mesmo que
direcionada para as suas atribuições de Defesa.”
Para a professora, seria essencial a uma perspectiva
democrática que houvesse uma efetiva subordinação das Forças Armadas à
presidência e ao Congresso, e um efetivo controle civil delas. “Atualmente,
embora previstas na própria Constituição e na legislação da Abin e do SISBIN
(Sistema Brasileiro de Inteligência), não contamos com nenhuma efetivação de
mecanismo de controle dessas atividades [de inteligência] pelo Congresso
Nacional, com audiências e acariações.
E, no caso dos militares, embora devendo prestar contas ao
Ministério da Defesa, a que estão subordinados, o acúmulo de poder deles nos
últimos anos e o padrão de militarização do Estado impedem que essa relação
entre Executivo e Forças Armadas se dê dentro dos marcos republicanos. É o jogo
da correlação de forças, e os militares já deram sinais (como no 8 de janeiro e
seus desdobramentos) de que a mediação só é possível se alguns de seus
interesses forem atendidos, em especial o da anistia e da manutenção de
privilégios corporativos. No mais, a subordinação da Abin ao GSI sob o comando
de um militar (que tem sido a regra), também dificulta esse tipo de controle
pelos mecanismos do SISBIN.”
Resposta do Exército Brasileiro a questionamentos da Revista
Opera, dada em setembro de 2019.