Na tarde desta quarta-feira (28), a Apib decidiu se retirar da mesa de conciliação criada pelo ministro do STF Gilmar Mendes para discutir a lei 14.701, que ataca direitos indígenas
Na tarde desta quarta-feira (28), a Articulação do Povos
Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da Mesa de Conciliação no Supremo
Tribunal Federal (STF) sobre a Lei 14.701/2023, que instituiu no ordenamento
legal brasileiro o marco temporal e uma série de ataques aos direitos
territoriais indígenas. A conciliação foi determinada pelo ministro Gilmar
Mendes, relator de processos que discutem a constitucionalidade da lei.
Em protesto, após a leitura de uma carta-manifesto, os
indígenas e aliados da causa indígenas deixaram o plenário da Segunda Turma da
Suprema Corte, onde ocorreu a segunda audiência de conciliação. Mesmo sem a
presença indígena a audiência prosseguiu os trabalhos, que nesta sessão contou
com a presença de representantes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) e integrantes dos governos federal, estaduais e municipal, e
demais partes da comissão especial.
Os povos indígenas apontam que a Lei 14.701/2023 é
inconstitucional e que não há negociação possível sobre ela, que precisa ser
imediatamente suspensa. “A conciliação está sendo conduzida com premissas
equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo
intercultural”, destaca um trecho da carta lida por Maria Baré, liderança
indígena do Amazonas e uma das representantes da Apib à mesa.
“Pela letra da Constituição da República de 1988, as terras indígenas foram gravadas como inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis. Qualquer negociação sobre direitos fundamentais é inadmissível”
“Pela letra da Constituição da República de 1988, as terras
indígenas foram gravadas como inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre
elas imprescritíveis. Qualquer negociação sobre direitos fundamentais é
inadmissível”, afirmam os indígenas na carta.
Um dos pontos questionados pela Apib é o fato de que, na
ausência de consenso, as decisões seriam tomadas por “maioria” entre as partes
que compõem a mesa. Segundo o juiz auxiliar do ministro Gilmar Mendes que
coordena a mesa, Diego Veras, essas definições da conciliação serão, então,
levadas ao plenário da Suprema Corte.
“Dessa forma, a instância da conciliação poderá ser
transformada em uma assembleia, sem ter a legitimidade necessária para decidir
sobre direitos fundamentais. Entendemos que a tutela dos direitos fundamentais
das minorias é função do Supremo, da qual ele não pode abdicar”, critica a
Apib.
A composição da mesa evidencia o desconforto dos indígenas,
que são minoria. Entre os órgãos, instituições e representações que participam
da conciliação estão a Advocacia-Geral da União (AGU), os Ministérios da
Justiça e dos Povos Indígenas, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai),
o Fórum de Governadores, o Colégio Nacional de Procuradores de Estado, a
Confederação Nacional dos Municípios, a Frente Nacional dos Prefeitos e os
autores das cinco ações discutidas, com uma vaga cada. A Câmara dos Deputados e
o Senado Federal tiveram direito a três vagas cada, e a Apib e suas
organizações de base, apenas seis.
Essa situação, assim como o fato de que o coordenador da
mesa, por diversas vezes, afirmou que “ninguém é insubstituível” e que os
trabalhos da mesa de conciliação seguiram com ou sem a presença dos indígenas,
levaram a Apib a caracterizar a situação como uma “conciliação forçada”.
“Nós, povos indígenas, já fomos submetidos a tentativas de
aculturação forçada, integração forçada, desterritorialização forçada. Não
iremos nos submeter a mais uma violência do Estado Brasileiro, com a
possibilidade de uma conciliação forçada”, afirmou Maria Baré.
Ataques seguem acontecendo em todo país contra os povos
originários, a exemplo do ataque
de fazendeiros na madrugada desta quarta (28) contra a comunidade
Avá-Guarani do Tekoha Y’Hovy, na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, no
oeste do Paraná. Neste cenário, não há ambiente para prosseguir na mesa de
conciliação.
“Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos
sólidos de não retrocessos e tampouco garantia de um acordo que resguarde a
autonomia da vontade dos povos indígenas”, afirma a Apib.
Outro ponto criticado pelos indígenas foi a falta de
“nitidez” sobre o objeto do debate e da conciliação, com o risco de se reabrir
a discussão sobre temas a respeito dos quais o STF recentemente decidiu em
processo de repercussão geral.
“Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais
seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no
sistema de proteção dos direitos indígenas que foram garantidos aos povos
indígenas pelo Constituinte originário de 1988”, aponta a carta da Apib.
Marco temporal e repercussão geral
Um dos dispositivos instituídos pela Lei 14.701, que está em
vigor desde sua promulgação em dezembro de 2023, é a tese do marco temporal.
Esta tese, que limita o direito indígena à demarcação apenas das terras que
estivessem sob sua posse comprovada em 5 de outubro de 1988, já foi considerada
inconstitucional pela Suprema Corte no julgamento de repercussão geral
concluído em setembro de 2023.
Foi esta uma das motivações da Apib para ingressar com uma
das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que, sob a relatoria de
Gilmar Mendes, acabaram dando origem à mesa de conciliação.
“Por reconhecer neste tribunal um espaço de concretização da
Constituição, a Apib propôs, em 28 de dezembro de 2023, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 7582. A entidade esperava a suspensão da Lei nº 14.701,
principalmente dos artigos da lei contrários ao que foi decidido pelo Supremo
Tribunal Federal em setembro de 2023”, destaca o manifesto indígena.
A Apib garantiu, ainda, que seguirá se manifestando nos
autos do processo e que confia que o STF “não fugirá de sua missão
constitucional”.
Clique aqui ou leia abaixo a carta-manifesto na íntegra:
Carta-manifesto da Apib
Excelentíssimos Senhores Ministros do Egrégio Supremo
Tribunal Federal Excelentíssimos Senhores Juízes Auxiliares
Excelentíssimas Autoridades Presentes
Povos indígenas de todo o Brasil
Com os nossos respeitosos cumprimentos, a Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil, entidade de representação nacional, vem se
manifestar sobre a conciliação que está em curso neste egrégio Supremo Tribunal
Federal.
Antes de mais nada, é importante dizer que o Supremo
Tribunal Federal tem sido um espaço importante de garantia dos direitos indígenas.
Sua atuação durante a pandemia foi fundamental, diante de graves violações a
direitos a que os povos indígenas estavam submetidos.
Por reconhecer neste tribunal um espaço de concretização da
Constituição, a APIB propôs, em 28 de dezembro de 2023, a Ação Direta de
Inconstitucionalidade 7582. A entidade esperava a suspensão da Lei nº 14.701,
principalmente dos artigos da lei contrários ao que foi decidido pelo Supremo
Tribunal Federal em setembro de 2023.
A Comunidade Internacional assiste com preocupação os
ataques aos direitos dos povos indígenas brasileiros! Cinco órgãos de tratados
da ONU já recomendaram que o Estado brasileiro rejeitasse a tese do Marco
Temporal e continuasse o processo de demarcação dos nossos territórios
tradicionais.
No entanto, a lei permaneceu em vigor. E, em abril de 2024,
a APIB foi surpreendida com uma proposta de conciliação entre as partes das
ações que questionam a inconstitucionalidade da Lei e outros setores da
sociedade que sequer são partes do processo.
Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais
seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no
sistema de proteção dos direitos indígenas que foram garantidos aos povos
indígenas pelo Constituinte originário de 1988. Pela letra da Constituição da
República de 1988, as terras indígenas foram gravadas como inalienáveis,
indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis. Assim, qualquer
negociação sobre direitos fundamentais já seria, a princípio, inadmissível
Ainda assim, a APIB, sentou-se à mesa, com disposição
política e vontade de reabrir os flancos de negociação, muito embora a não
declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 seja uma sinalização
nociva, a indicar incoerência e sujeição a pressões indevidas.
Durante a primeira audiência de conciliação, a entidade
encontrou um ambiente aflitivo, sendo informada que a lei não seria suspensa,
não obstante toda violência que ela tem gerado nos territórios.
A APIB foi informada também que na ausência de consenso as
decisões seriam tomadas por maioria. Dessa forma, a instância da conciliação
poderá ser transformada em uma assembleia, sem ter a legitimidade necessária
para decidir sobre direitos fundamentais. Entendemos que a tutela dos direitos
fundamentais das minorias é função do Supremo, da qual ele não pode abdicar.
Além disso, a APIB também foi confrontada com visões
ultrapassadas e inadequadas sobre a garantia dos direitos indígenas. Na
conciliação, foi aventada a possibilidade de ter a vontade dos indígenas colhida
pela Funai, órgão de estado que não tem essa competência.
A Constituição de 1988, em seu artigo 232, acabou com a
política de tutela!
Outros apontamentos realizados durante a primeira audiência
de conciliação foram violentos e opressivos. A eventual aprovação de uma PEC
que consolidaria o marco temporal no texto constitucional soou como uma ameaça,
viciando o ambiente de liberdade que deve ser criado em uma mesa de
conciliação. O juízo condutor da audiência de conciliação chegou a perguntar se
os indígenas teriam representação parlamentar suficiente para impedir a votação
de um projeto de emenda constitucional violadora de seus direitos fundamentais.
Os povos indígenas, após séculos de extermínio, são minorias. E por isso contam
com o tribunal!
Os povos indígenas estão sob guarda de cláusulas pétreas da
Constituição, cuja defesa e guarda é função do Supremo Tribunal Federal!
Diante de condições inaceitáveis – e até humilhantes –
impostas aos povos indígenas na audiência de conciliação, o juiz conciliador disse
que uma saída dos povos indígenas os tornaria responsáveis pela “espiral de
conflitos”. Isso é de uma violência atroz.
Os indígenas resistem secularmente e lutam pelo direito de
existir em uma realidade em que são vítimas da violência. Desde a colonização,
até os dias atuais, os mortos, feridos e submetidos aos conflitos violentos são
os indígenas. Os que ainda precisam lutar pela garantia territorial e por
direitos, desde há muito válidos, mas ineficazes, são os indígenas.
É inadmissível que os povos do Brasil que tem a maior
contribuição para a conservação das florestas, dos biomas, da biodiversidade e
que são aqueles que mais tem capacidade de fazer frente à emergência climática
e ao desenvolvimento sustentável do país sejam submetidos a um processo de
conciliação fora da lei, com esse nível de pressão, chantagem e preconceito.
Nós, povos indígenas, já fomos submetidos a tentativas de
aculturação forçada, integração forçada, desterritorialização forçada. Não
iremos nos submeter a mais uma violência do Estado Brasileiro, com a
possibilidade de uma conciliação forçada.
Infelizmente, a conciliação está sendo conduzida com
premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo
intercultural.
Neste cenário, a APIB não encontra ambiente para prosseguir
na mesa de conciliação. Não há garantias de proteção suficiente, pressupostos
sólidos de não retrocessos e tampouco, garantia de um acordo que resguarde a
autonomia da vontade dos povos indígenas. Nos colocamos à disposição para
sentar à mesa em um ambiente em que os acordos possam ser cumpridos com
respeito à livre determinação dos povos indígenas.
Nos resguardamos o direito de nos manifestar nos autos e
tratar sobre os nossos direitos diretamente com o Juízo competente para decidir
sobre os processos de competência do STF: o eminente relator e o Plenário do
STF. Temos confiança que o Supremo Tribunal Federal não fugirá de sua missão
constitucional.
Ainda estamos vivos e não desistiremos de nossas terras, do
usufruto exclusivo das riquezas dos rios, lagos e solos, do direito de não
sermos removidos de nossos territórios e do direito de termos nossos modelos
próprios de desenvolvimento. Não permitiremos mais que o projeto dos
neocolonizadores nos atravesse e nos arrase.
Lutamos pelo direito à diversidade que inclua radicalmente
todos os setores da sociedade brasileira e contamos com o apoio da sociedade
para a proteção de nossas vidas e de nossas florestas. O Brasil pega fogo e são
os indígenas que têm as respostas e a chave para combater a emergência
climática.
A APIB se retira da conciliação.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib
28 de agosto de 2024
O Brasil agrário, representado pelos latifundiários do retrocesso, se recusa a aceitar que a agricultura se faz com respeito e equilíbrio ambiental e as terras indígenas são o caminho para a existência futura de nossas matas. #MarcoTemporalNão #DemarcaçãoJá #SemNegociação
— Apib Oficial (@ApibOficial) August 28, 2024
Esse foi o método adotado na câmara da falsa conciliação: quando discordamos da proposta, ela vai para votação e deve ser aprovada mesmo assim. Isso não é conciliação, é violação! #MarcoTemporalNão #DemarcaçãoJá #SemNegociação
— COIAB (@CoiabAmazonia) August 28, 2024
Foto: Tukumã Pataxó pic.twitter.com/BltiUpEb7f