A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo
menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados
sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar
um pedido de anulação do caso Queiroz. Nos dois documentos, obtidos pela coluna
e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a
Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na
Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria
feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que
gerou o inquérito das rachadinhas. Enviados em setembro para Flávio e repassados
por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general
Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que
afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo
após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre
Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.
Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão
daquele trabalho. Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no
caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados
aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para
Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.
Leia: Defesa
de Flávio leva a Bolsonaro suspeita que pode anular caso Queiroz; governo se
mobiliza para encontrar prova
O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa
reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das
advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter
os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita.
Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana
Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a
orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da Abin, a
partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro,
com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.
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No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de
“defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para
cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando
acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre
então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num
padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita
e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.
Leia: PGR
instaura apuração preliminar sobre envolvimento do governo Bolsonaro na defesa
de Flávio
“A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e
diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da
época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo
Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo
adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo
seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.
O relatório sugere a substituição dos “postos”, em provável
referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa
recomendação já havia sido feita em 2019.
“Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para
tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos
conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada
disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca
repercussão em processo interno na RFB!”, explica o texto.
A agência traça em seguida outra “alternativa de
prosseguimento”, que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço
Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).
“Com base na representação de FB protocolada na RFB
(Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da
Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância
requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso
de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita
judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos
da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento
de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”, recomenda o texto,
resumindo qual é a estratégia: “Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação
privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob
comando do Executivo”.
Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores
federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller
Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto.
“Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto
Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e
tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no
âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)”, disse o texto.
Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento,
a Abin, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro
demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial
federal: “Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por
outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF
de sua confiança”.
O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por
ele a sua advogada traça uma “manobra tripla” para tentar conseguir os
documentos que a defesa espera.
As orientações da agência aqui se tornam bem específicas.
“A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana
Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um
cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”,
diz a primeira das três ações, chamadas pela Abin de “diversionária”.
Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe
do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita,
baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que de fato a defesa de Flávio
Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito. “O e-sic
(sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema
da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB”, explicou a Abin.
E, por fim, o relatório sugere “neutralização da estrutura
de apoio”, a demissão de “três elementos-chave dentro do grupo criminoso da
RF”, que “devem ser afastados in continenti”. “Este afastamento se resume a uma
canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam
condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de
diversas fraudes fartamente documentadas”, afirma o texto, sem especificar que
condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o
corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita
no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da
Receita no Rio, Christiano Paes. Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja
seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do
cargo na semana passada.
Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo
informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de
Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada,
a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua
procedência da Abin, mas recusou-se a comentar seu conteúdo.
A Abin não respondeu aos questionamentos sobre a origem das
acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois
obtidos pela coluna. Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a
ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no
inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem,
amigo de seus filhos, para a direção da PF.
Fonte: Época