Oito anos depois, ninguém foi responsabilizado criminalmente pela perda dessas vidas e pelos milhares de atingidos em Mariana. Esta é a estratégia que se repete no caso de Brumadinho.
Depois do quinto aniversário da tragédia-crime de
Brumadinho, uma sessão solene no Congresso na quarta-feira passada
(06/03), homenageou as 270 vítimas fatais da Vale. Passou em brancas nuvens na
imprensa. Isso apesar do “gancho” evidente proporcionado por outro fato
relacionado - esse sim noticiado - que ocorreu no mesmo dia: a votação do HC
do presidente da Vale à época do rompimento da barragem, Fabio Schvartsman, que
pediu o trancamento da ação criminal em que é réu por homicídio doloso
qualificado.
Ou seja, o executivo sequer admite ir a julgamento apesar de estar provado no
processo que a instabilidade da barragem era de conhecimento da companhia por
ele presidida, que inclusive pressionou a consultoria Tuv Süd a conceder o
certificado de conformidade da barragem, apesar do risco constatado. Os
engenheiros da Tuv Süd e outros executivos da Vale, além de Schvartsman, estão
entre os 15 réus da ação que os responsabiliza pelas decisões que
resultaram nas 270 mortes.
Dois dos três integrantes da Segunda Turma do TRF-6 se manifestaram a favor do
pedido do ex-presidente da Vale - um deles ainda não se pronunciou e os votos
ainda podem ser alterados até 12 de março.
Nas notícias sobre a vitória parcial de Schvartsman não se ouviu a Avabrum - a
associação dos familiares das vítimas de Brumadinho - que no mesmo dia pedia
Justiça logo ali, no Congresso Nacional, pelas mortes de suas “jóias”, como se
referem aos filhos, pais, mães, irmãos, noivos, esposos, amigos, afogados no
mar de lama que se estendeu por 300 quilômetros e afetou a população de 17
cidades.
A Vale, que faz propaganda sobre o apoio que teria dado a familiares de vítimas
e comunidades atingidas pela lama, lutou - e ainda luta - na Justiça para
reduzir o valor das indenizações e da reparação de danos.
Exatamente como fez e continua fazendo com os atingidos pelo rompimento de
outra barragem, em novembro de 2015, controlada pela Vale e BHP Billiton, que
destruiu um distrito de Mariana e provocou a morte de 19 pessoas. Até mesmo uma
hidrelétrica que tem a companhia como sócia-proprietária e teve seu
reservatório invadido pela lama trava uma batalha jurídica para ser ressarcida,
como revelou reportagem da Pública desta semana.
Oito anos depois, ninguém foi responsabilizado criminalmente pela perda dessas
vidas e pelos milhares de atingidos em Mariana. Esta é a estratégia que se
repete no caso de Brumadinho.
Primeiro a companhia manobrou para que o processo, que corria em Brumadinho
desde 2019, fosse transferido para a Justiça Federal em Belo Horizonte, o que
fez com que voltasse à estaca zero. Por isso o julgamento, do qual o
ex-presidente da Vale tenta escapulir, ainda não foi realizado. O HC de seu
ex-presidente é mais um capítulo dessa história pela impunidade.
Como diz a Avabrum, um crime dessa magnitude não pode ficar sem culpados. Não
há dinheiro que pague as vidas perdidas ou impeça novos crimes de
mineradoras.
Boa parte das vítimas fatais trabalhava para a própria Vale; muitos morreram
dentro do refeitório da companhia que, como também era de conhecimento dos
executivos, estava na rota dos rejeitos em caso do acidente previsível diante
das condições da barragem. Mas a Vale deixou a lama rolar.
Schwartsman, que assumiu o cargo prometendo que nunca mais haveria outra
Mariana, recebia uma remuneração tão alta quanto deveria ser sua
responsabilidade. De acordo com matéria de 2018 da revista Exame (um ano antes de
Brumadinho), o cargo de presidente da Vale era o segundo mais bem pago por
empresas brasileiras, com salário superior a 60 milhões de reais por ano.
Segura de seu poder e da cautela da imprensa ao tocar no nome da companhia -
que é anunciante de peso e conhecida por sua extensa banca de advogados - a
Vale nem se preocupou com a repercussão negativa ao tomar outra atitude de
arrepiar: pediu e obteve na mesmíssima quarta-feira 6 de março uma liminar na
Justiça para proibir a comunidade Kamakã, uma das seis etnias do
povo Pataxó HãHãHãe, de sepultar o cacique Merong Kamakã nas terras em que
viviam, reivindicadas pela companhia.
Merong, combativa liderança indígena de 36 anos, foi encontrado morto na
segunda-feira passada, em circunstâncias ainda obscuras.
A empresa limitou-se a divulgar uma nota, em que disse lamentar o falecimento
do cacique e afirmou que busca uma "solução com a comunidade que preserve
suas tradições, dentro da legalidade" (grifo meu).
Mas os “ganchos” desta quarta-feira não foram suficientes para alçar os
atingidos pela maior tragédia humanitária do Brasil ao noticiário. A Vale até
mereceu um comentário indignado - mas a favor da companhia.
Na última edição da “Veja”, uma matéria na editoria de Política dá ares de escândalo a
uma suposta ingerência do governo na cúpula da companhia e critica: “Lula, como
se sabe, vem intimidando a Vale abertamente com suas falas, o que tem provocado
prejuízos para a empresa privada” (grifo meu).
Imagino que o jornalista se refira à fala do presidente da República, de 28 de
fevereiro passado, em que ele disse: “A Vale não pode pensar que ela é dona do
Brasil. Ela não pode pensar que ela pode mais do que o Brasil. Então, o que nós
queremos é o seguinte: as empresas brasileiras precisam estar de acordo com
aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro. É só isso
que nós queremos”.
Faltou a imprensa mostrar nesta semana que a Vale também não é dona do noticiário.
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Via: Marina Amaral
Diretora Executiva da Agência Pública
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