Seca recorde e queimadas recorde no Pantanal em 2020 afetam
animais e até o céu de Cuiabá.MARCIO PIMENTA / REDUX
Um cheiro de mato queimado entrou pela janela da casa de
Zulmira Maria Lucia, de 67 anos, residente de Mata Cavalo, comunidade
quilombola, situada no Pantanal,
em Mato Grosso, no oeste do Brasil. “O fogo apareceu muito rápido e arriou todo o
pasto. Perdemos tudo, a roça de banana e outras plantações”, conta Zulmira,
sobre sua comunidade e as outras 28 vizinhas, onde vivem 40.000 quilombolas.
Uma das casas mais atingidas é a da família de Maria da Paz, que perdeu todo o
pasto e a cana-de-açúcar no incêndio e precisará comprar ração para alimentar o
pequeno rebanho de dez animais. Da porta da varanda, Maria da Paz, segura o
neto recém-nascido no colo. Tânia, a mãe do bebê, está internada com covid-19.
Maria levanta os olhos cheios de água e faz um sinal de que não podemos nos
aproximar por causa do bebê. Ela aponta para a área queimada e diz de forma
lacônica: “Também perdemos tudo, o fogo chegou até aqui”, mostra, apontando
para as marcas que os incêndios deixaram perto de casa.
O fogo chegou este ano com intensidade no Pantanal, um bioma
de156.000 km² no extremo oeste do Brasil, entre Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul e as fronteiras da Bolívia, Argentina e
Paraguai. Apesar de preservar 83% de suas matas, a região arde neste momento.
Só no mês de julho foram mais de 1.601 focos de calor, os maiores da história
do Pantanal desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
iniciou o monitoramento da região. No mês de agosto, o problema de aprofundou.
São 2.170 focos de calor em apenas 10 dias. “Esse número já é 28% maior em
relação ao contabilizado em todo mês de agosto de 2019”, explica Vincíus
Silgueiro, pesquisador do Instituto
Centro de Vida (ICV), que atua no bioma há vinte anos. “Mais de
55% dos focos de calor estão em propriedades rurais cadastradas. A origem dos
focos vem dessas áreas com forte presença humana.”
O quadro de emergência levou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a se deslocar para Mato Grosso no
início desta semana. Da janela do avião que o trasladou para lá, ele pôde
testemunhar o que os alertas de fogo já apitavam. “Ao longo da viagem podemos
ver centenas de focos de queimadas, mas agora conseguimos detectar a origem e
vamos penalizar todos os responsáveis”, alertou o ministro na tarde de
terça-feira após sobrevoar pontos de queimadas na região.
O Governo Bolsonaro está cada vez mais pressionado pela má gestão ambiental na Amazônia, e há consenso
que faltou organização e competência também para lidar com o bioma. Nesta
sexta, o Diário Oficial publicou a exoneração do coronel Homero Siqueira, que
estava à frente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), um dos órgãos do sistema de vigilância e fiscalização das florestas.
A decisão foi tomada por Salles em função do descontrole das queimadas no
Pantanal, segundo os jornais O Globo e o O Estado de
São Paulo. Siqueira seguiu a fórmula comum na gestão de Bolsonaro de trocar
técnicos por militares em cargos do instituto que cuida das reservas nacionais,
dizem seus críticos.
Quem conhece o Pantanal diz que faltou se antecipar aos
fatos. “As ações precisam começar mais cedo. Só foram tomadas de forma tardia
em 2020, quando os números [de queimadas] já estavam altos. Uma lentidão fatal
para o bioma”, afirma Júlio Sampaio, que coordena o programa Cerrado Pantanal
no grupo ambientalista WWF-Brasil.
Ele cita o decreto federal que proibiu o uso do fogo no manejo das
propriedades, publicado apenas este ano.
Fogo contra fogo: os bombeiros usam a tática de provocar um
fogo que reduza a capacidade do incêndio de continuar se propagando no mato
seco. MARCIO PIMENTA
Bombeiros rodeados pelo fogo
O combate ao fogo tem sido um desafio complexo pelas
características do Pantanal, como admitiu Salles na entrevista de terça.
“Estamos deslocando efetivos, mas o ambiente do Pantanal é muito seco, quente e
tem muito vento”, disse. Um dia antes, na segunda-feira, 17, equipes locais
enfrentaram momentos de terror. Seis homens do Corpo de Bombeiros Militar de
Mato Grosso foram surpreendidos pela velocidade e intensidade das linhas do
fogo em Poconé, área vizinha de Mata Cavalo, e acabaram rodeados pelas chamas.
Foi necessário acionar o helicóptero Black Hawk H-60 da Força Aérea Brasileira para o resgate
emergencial. Com sorte ninguém se feriu.
O fogo já atinge em cheio os animais da mata. Uma
onça-pintada teve 70% do corpo queimado e precisou ser transportada no
helicóptero do Exército na segunda-feira, 16, para Cuiabá. Foi internada no
hospital veterinário da universidade federal do Estado. Em desespero com o
fogo, o animal invadiu quintais na comunidade Poconé, gerando pânico na
população. Quase 500 espécies de aves e 132 mamíferos vivem no Pantanal.
O quadro preocupa o Mato Grosso, que vive do turismo na
região, e tem ali uma reserva natural importante para o equilíbrio climático
mundial. “Os incêndios já consumiram 6% do Pantanal”, disse o governador, Mauro
Mendes (DEM), ao lado do ministro Ricardo Salles, cada vez mais cobrado
para atuar em prol da preservação das matas brasileiras.
As queimadas do Pantanal mudaram o cenário até da capital
mato-grossense, a 200 quilômetros da reserva. O tradicional céu azul de Cuiabá
foi tingido de cinza. A fumaça acumulada obriga os aviões aterrissarem com a
ajuda de aparelhos por falta de visibilidade no aeroporto principal do Estado,
o Marechal Rondon. Mato Grosso vive das glórias de ser o maior produtor de soja
do mundo, ao mesmo tempo em que lidera os incêndios em 2020. Segundo Inpe, são
769 registros, um terço de tudo que queima no Brasil. Até quarta-feira (19) o
fogo seguia sem controle, especialmente na Reserva Particular do Patrimônio
Natural (RPPN) do Sesc Pantanal.
A Fazenda São Francisco do Perigara, vizinha à reserva, foi
uma das mais atingidas pelas queimadas. Ali esta a maior concentração de ninhos
naturais de arara-azul do mundo. O local é polo de pesquisa do Instituto
Arara Azul. “Ali existem 700 animais e mais de 77 ninhos monitorados,
só poderemos saber a dimensão do estrago causado pelo fogo quando o combate
acabar. Mas, muitos ninhos já estavam com filhotes e os animais perderam o seu
alimento para o fogo, as palmeiras do Bacuri”, explica Neiva Guedes, diretora
do Instituto Arara Azul.
ROGÉRIO FLORENTINO / EFE
Amazônia e Pantanal
A reserva matogrossense tem uma relação umbilical com
a Amazônia.
Os dois biomas têm grande parte de suas nascentes localizadas na mesma serra, a
Chapada dos Parecis, em Mato Grosso. É ali que estão 70% das águas que irão
formar a planície do Pantanal, em Mato
Grosso do Sul. “A região depende dessa água que vem das florestas do
norte de Mato Grosso, na região amazônica. Mas estamos registrando cada vez
menos chuvas ali”, lamenta Felipe Dias, diretor-executivo do Instituto SOS Pantanal,
instituição que monitora o desmatamento na região. A projeção é que as secas
serão cada vez mais severas daqui para a frente. “Temos que nos preparar para
não perdermos o Pantanal”, explica Dias. “O cenário atual é propício para o
tripé do fogo: inverno quente, baixa umidade e vento forte”, conclui.
Uma das causas para tanto fogo é a seca. A Régua de Ladário,
em Mato Grosso do Sul, fixada pela Marinha Brasileira em 1900 para medir as
cheias do rio Paraguai, há 47 anos não atingia índices tão baixos. “Esse regime
de secas e chuvas é a natureza do Pantanal Os antigos sempre disseram que os
períodos de alternância duram até dez anos. Isso significa que temos que nos
preparar”, alerta Dias.
O fogo no Pantanal é um problema para o mundo. As queimadas
e mudanças no uso da terra são responsáveis por 80% das emissões
brasileiras de gases que aquecem o planeta e provocam as mudanças
climáticas. O Brasil já esteve em quarto lugar no ranking mundial dos emissores de gases-estufa
durante anos de descontrole nos incêndios e desmatamento, como em 2005.
O país saiu da lista dos dez maiores emissores em 2019, após
controlar o desmatamento na Amazônia. Mas em 2016 ainda estava na sexta
posição, e se a situação sair fora de controle em outros biomas, as emissões
voltam a subir. As emissões também podem reduzir os recursos financeiros para
controlar as queimadas. Hoje, são os compromissos estaduais e nacionais de
redução do desmatamento na Amazônia que dão suporto financeiro às ações de
combate às chamas.
O acordo assinado entre o Governo de Mato Grosso e países
europeus durante a Conferência Mundial do Clima de Paris, a Cop-21, garantem
repasses anuais ao Estado. O programa conhecido como Redd+ para Pioneiros
concede aporte financeiro aos grandes desflorestadores que controlam a perda de
florestas. Mato Grosso era o segundo em perdas de áreas naturais na Amazônia,
mas hoje está em sétimo, segundo o Inpe. O controle garantiu um investimento 22
milhões de reais repassados por bancos alemães e britânicos para o combate às
queimadas.
Segundo a Secretaria do estado de Meio Ambiente (Sema), esse
recurso foi aplicado nas ações conjuntas do Comitê do Fogo, composto por
entidades civis, públicas e organizações não governamentais. A Sema fornece
equipamentos e diárias para realizar as operações. Desde março, foi repassado
680.000 reais em diárias para os Bombeiros Militares e demais profissionais que
atuam diretamente no combate às queimadas.
O ano passado já havia sido crítico em termos de estiagem.
“Tivemos picos de temperatura e baixas de umidade em todo o Pantanal”, diz
Júlio Sampaio da Silva, da WWF-Brasil. “O fogo é algo que vemos desde o início
de 2020. E as queimadas têm uma origem na ação humana. O fogo
começa pela mão do homem, através da limpeza e áreas e renovação de pastagens”,
explica. “É muita irresponsabilidade colocarem fogo em períodos críticos de
seca. Mesmo na chuva, os incêndios aconteceram e marcaram que já teríamos um
ano atípico.”
As queimadas deixarão marcas profundas. “Para os insetos é
uma perda bastante acentuada nesse momento de incêndio, porque são animais que
não têm mobilidade de longo alcance, muitos deles são polinizadores,
fundamentais para o desenvolvimento das plantas”, explica Cristina Cuiabalia,
bióloga e gerente de Pesquisa e Meio Ambiente do Polo Socioambiental Sesc
Pantanal. Não são os únicos: répteis também acabam sendo consumidos pelo fogo.
“As aves até conseguem migrar entre um ambiente e outro, mas perdem-se ninhais
e dormitórios, o que representa a perda de uma geração, já que estamos bem na
estação reprodutiva da arara-azul, do tuiuiú”, segue Cuiabalia.
Sizenando Carmo Santos, 62 anos, explica que os quilombolas
tentaram chamar o Corpo de Bombeiros por horas. “Ligamos muitas vezes. Eles
chegaram quando já não conseguiam fazer nada, o fogo tinha se alastrado por
tudo. Ficaram só olhado. Fomos nós mesmos que evitamos que as casas se
perdessem”MARCIO PIMENTA / MARCIO PIMENTA/REDUX
Covid-19 e fogo
As autoridades de Cuiabá e Várzea Grande, as maiores cidades
de Mato Grosso, precisam conciliar os efeitos das queimadas na saúde em meio a
pandemia do novo coronavírus. O Estado foi considerado em julho, pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), como um dos epicentros da covid-19 no Brasil. Com
uma curva acentuada no número de casos e poucos leitos hospitalares, são quase
80.000 casos, para 450 leitos de Unidades de Terapias Intensiva públicas.
A Secretaria da Saúde afirma que a taxa de ocupação segue
sob controle, com pouco mais de 20% de leitos disponíveis, porém o Ministério
Público de Mato Grosso decretou quarentena restritiva emergencial duas vezes no
Estado entre junho e julho por falta de leitos.
Na Comunidade de Mata Cavalo a população ainda debate o que
fazer após a perda das hortas. “As pessoas dizem que estamos perto de cidades,
mas para o quilombola sair de sua casa a dez quilômetros do asfalto e ir a um
mercado precisa de cem reais de frete. Por conta da pandemia do coronavírus, o
ônibus que fazia nossa linha parou em abril”, diz a presidente da Associação de
Mata Cavalo de Baixo, Arlete Pereira, 54 anos.
Para o agente de saúde, Edson Batista, de 51 anos, os
efeitos das queimadas podem agravar a pandemia. “Com essa seca, sem hortas e o
auxílio da pandemia acabando (em setembro), as famílias ficarão sem comida. Já
temos alguns casos aqui de coronavírus, e um óbito foi registrado. Os problemas
respiratórios gerados pelas queimadas também vão induzir as famílias a
procurarem tratamento nos hospitais da capital. Não sei como serão os próximos
meses”, diz o agente de saúde Batista.
No Twitter
✔️O fogo já destruiu 10% do Pantanal (10x o tamanho da cidade de SP).— André Trigueiro (@andretrig) August 18, 2020
✔️O Governo demorou 1 mês p/contratar 90 brigadistas (seria necessário no mínimo o dobro)
✔️ 1 avião Hércules C-130 está sendo usado na operação. Pq só 1?
✔️ Só 2 motobombas c/mangueiras estão operacionais pic.twitter.com/6vE5AUahLu
Primeiro dia cobrindo as queimadas no #Pantanal (MT). E essa cena me destruiu. Reparem na lágrima no olho dela.— Leandro Barbosa (@Barbosa_Leandro) August 22, 2020
É cinza e morte por todo canto.
Foto: @ibereperisse pic.twitter.com/lJuMEKTSLS
#SOSPantanal! em chamas, naregião da Serra do Amolar,— #SosPantanalAmazôniaCerradoIndigenas! 🎭☘🏴 (@Amy_House7) August 17, 2020
via Caetano Scannavino
Destruiram o Pantanal, fauna e flora! Seriam as queimadas 2019 q afetou Rios Voadores e desequilibrou as chuvas e a umidade?#FORASallesAssassin#ForaBolsonaroEseuBandodeCriminosos
Por André Zumak/IHP pic.twitter.com/mHNqUXcJLQ
Ajude os povos da floresta contra Covid!!! A situação está muito grave. Já fiz a minha parte, vamos? #sosamazonia https://t.co/OVDNzfQkNA— Patricia Pillar (@patriciapillar) July 27, 2020
Greenpeace Brasil
O Pantanal já perdeu mais de 10% de sua cobertura vegetal
devido aos incêndios que atingem a região desde julho. Um dos fatores para
tamanho estrago foi a temporada de seca, que tem sido mais acentuada, além do
inverno mais quente. Então o Pantanal já está sofrendo efeitos das mudanças
climáticas?
Neste episódio, conversamos sobre o que está acontecendo
nesse bioma, o que pode ou não ser efeito do aquecimento do planeta e
filosofamos um pouco sobre nossa relação com a natureza. Os convidados são
Felipe Dias, diretor-executivo da SOS Pantanal, e José Marengo, climatologista
do Centro de Monitoramento e Alertas De Desastres Naturais (Cemaden).
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