Em entrevista, petista afirma que presidente Bolsonaro deu
cidadania à extrema direita no Brasil e defende candidatura de Jilmar Tatto à
prefeitura de São Paulo.
O EL PAÍS entrevistou nesta quarta-feira o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva(PT) ―a íntegra da
entrevista, em vídeo, está disponível na página. Na conversa, transmitida ao
vivo nos canais do jornal no Facebook e no YouTube,
o petista falou sobre as eleições municipais no Brasil, as presidenciais dos
Estados Unidos, as forças políticas em ação na América Latina e a situação das
democracias na Venezuela e Bolívia. “Quem define a democracia da Venezuela é o
povo da Venezuela.” Também comentou o processo que o levou à prisão. “Eu
poderia ter ido para uma embaixada, não fui. Mentira tem perna curta e é por
isso que o Sergio Moro está acovardado agora”, disse Lula. “Eu quero que a
Justiça, que eu acredito que é pra todos, diga que eu sou inocente e que o
Bolsonaro é um lacaio”, completou o ex-presidente.
Um dos políticos mais populares do país, Lula governou o
Brasil entre 2003 a 2010 e manteve seu partido na Presidência até 2016, com o
impeachment de Dilma Rousseff. Condenado por corrupção no âmbito da Operação
Lava Jato, o petista foi impedido pela Justiça de disputar a presidência
contra Jair Bolsonaro em 2018 e segue inelegível. Ficou 580 dias preso em
Curitiba, até que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que réus só devem ir
para a cadeia se esgotados todos os recursos da defesa. Lula nega todas as
acusações e afirma que é vítima de perseguição política da Lava Jato.
Desde que deixou a prisão, Lula tem se dedicado a
articulações políticas no PT e na esquerda que tenta se posicionar contra o
Governo Bolsonaro. No feriado de 7 de Setembro, o petista lançou um vídeo no
qual fortaleceu a polarização com Bolsonaro e fez críticas à política econômica,
externa e à gestão da pandemia. O vídeo foi lido como uma senha de que estaria de volta ao
ringue político, rumo a 2022, apesar do impedimento da Justiça.
A conversa com Lula faz parte da série multiplataforma do
jornal para discutir o Brasil em plena crise da pandemia
do coronavírus. Lula é o quinto ex-presidente a ser entrevistado na série
multiplataforma do EL PAÍS. Fernando
Collor (PROS), Fernando Henrique Cardoso (PSDB),
Dilma Rousseff (PT)
e Michel Temer (MDB) também passaram pelo programa.
Seca recorde e queimadas recorde no Pantanal em 2020 afetam
animais e até o céu de Cuiabá.MARCIO PIMENTA / REDUX
Um cheiro de mato queimado entrou pela janela da casa de
Zulmira Maria Lucia, de 67 anos, residente de Mata Cavalo, comunidade
quilombola, situada no Pantanal,
em Mato Grosso, no oeste do Brasil. “O fogo apareceu muito rápido e arriou todo o
pasto. Perdemos tudo, a roça de banana e outras plantações”, conta Zulmira,
sobre sua comunidade e as outras 28 vizinhas, onde vivem 40.000 quilombolas.
Uma das casas mais atingidas é a da família de Maria da Paz, que perdeu todo o
pasto e a cana-de-açúcar no incêndio e precisará comprar ração para alimentar o
pequeno rebanho de dez animais. Da porta da varanda, Maria da Paz, segura o
neto recém-nascido no colo. Tânia, a mãe do bebê, está internada com covid-19.
Maria levanta os olhos cheios de água e faz um sinal de que não podemos nos
aproximar por causa do bebê. Ela aponta para a área queimada e diz de forma
lacônica: “Também perdemos tudo, o fogo chegou até aqui”, mostra, apontando
para as marcas que os incêndios deixaram perto de casa.
O fogo chegou este ano com intensidade no Pantanal, um bioma
de156.000 km² no extremo oeste do Brasil, entre Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul e as fronteiras da Bolívia, Argentina e
Paraguai. Apesar de preservar 83% de suas matas, a região arde neste momento.
Só no mês de julho foram mais de 1.601 focos de calor, os maiores da história
do Pantanal desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
iniciou o monitoramento da região. No mês de agosto, o problema de aprofundou.
São 2.170 focos de calor em apenas 10 dias. “Esse número já é 28% maior em
relação ao contabilizado em todo mês de agosto de 2019”, explica Vincíus
Silgueiro, pesquisador do Instituto
Centro de Vida (ICV), que atua no bioma há vinte anos. “Mais de
55% dos focos de calor estão em propriedades rurais cadastradas. A origem dos
focos vem dessas áreas com forte presença humana.”
O quadro de emergência levou o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, a se deslocar para Mato Grosso no
início desta semana. Da janela do avião que o trasladou para lá, ele pôde
testemunhar o que os alertas de fogo já apitavam. “Ao longo da viagem podemos
ver centenas de focos de queimadas, mas agora conseguimos detectar a origem e
vamos penalizar todos os responsáveis”, alertou o ministro na tarde de
terça-feira após sobrevoar pontos de queimadas na região.
O Governo Bolsonaro está cada vez mais pressionado pela má gestão ambiental na Amazônia, e há consenso
que faltou organização e competência também para lidar com o bioma. Nesta
sexta, o Diário Oficial publicou a exoneração do coronel Homero Siqueira, que
estava à frente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), um dos órgãos do sistema de vigilância e fiscalização das florestas.
A decisão foi tomada por Salles em função do descontrole das queimadas no
Pantanal, segundo os jornais O Globo e o O Estado de
São Paulo. Siqueira seguiu a fórmula comum na gestão de Bolsonaro de trocar
técnicos por militares em cargos do instituto que cuida das reservas nacionais,
dizem seus críticos.
Quem conhece o Pantanal diz que faltou se antecipar aos
fatos. “As ações precisam começar mais cedo. Só foram tomadas de forma tardia
em 2020, quando os números [de queimadas] já estavam altos. Uma lentidão fatal
para o bioma”, afirma Júlio Sampaio, que coordena o programa Cerrado Pantanal
no grupo ambientalista WWF-Brasil.
Ele cita o decreto federal que proibiu o uso do fogo no manejo das
propriedades, publicado apenas este ano.
Fogo contra fogo: os bombeiros usam a tática de provocar um
fogo que reduza a capacidade do incêndio de continuar se propagando no mato
seco. MARCIO PIMENTA
Bombeiros rodeados pelo fogo
O combate ao fogo tem sido um desafio complexo pelas
características do Pantanal, como admitiu Salles na entrevista de terça.
“Estamos deslocando efetivos, mas o ambiente do Pantanal é muito seco, quente e
tem muito vento”, disse. Um dia antes, na segunda-feira, 17, equipes locais
enfrentaram momentos de terror. Seis homens do Corpo de Bombeiros Militar de
Mato Grosso foram surpreendidos pela velocidade e intensidade das linhas do
fogo em Poconé, área vizinha de Mata Cavalo, e acabaram rodeados pelas chamas.
Foi necessário acionar o helicóptero Black Hawk H-60 da Força Aérea Brasileira para o resgate
emergencial. Com sorte ninguém se feriu.
O fogo já atinge em cheio os animais da mata. Uma
onça-pintada teve 70% do corpo queimado e precisou ser transportada no
helicóptero do Exército na segunda-feira, 16, para Cuiabá. Foi internada no
hospital veterinário da universidade federal do Estado. Em desespero com o
fogo, o animal invadiu quintais na comunidade Poconé, gerando pânico na
população. Quase 500 espécies de aves e 132 mamíferos vivem no Pantanal.
O quadro preocupa o Mato Grosso, que vive do turismo na
região, e tem ali uma reserva natural importante para o equilíbrio climático
mundial. “Os incêndios já consumiram 6% do Pantanal”, disse o governador, Mauro
Mendes (DEM), ao lado do ministro Ricardo Salles, cada vez mais cobrado
para atuar em prol da preservação das matas brasileiras.
As queimadas do Pantanal mudaram o cenário até da capital
mato-grossense, a 200 quilômetros da reserva. O tradicional céu azul de Cuiabá
foi tingido de cinza. A fumaça acumulada obriga os aviões aterrissarem com a
ajuda de aparelhos por falta de visibilidade no aeroporto principal do Estado,
o Marechal Rondon. Mato Grosso vive das glórias de ser o maior produtor de soja
do mundo, ao mesmo tempo em que lidera os incêndios em 2020. Segundo Inpe, são
769 registros, um terço de tudo que queima no Brasil. Até quarta-feira (19) o
fogo seguia sem controle, especialmente na Reserva Particular do Patrimônio
Natural (RPPN) do Sesc Pantanal.
A Fazenda São Francisco do Perigara, vizinha à reserva, foi
uma das mais atingidas pelas queimadas. Ali esta a maior concentração de ninhos
naturais de arara-azul do mundo. O local é polo de pesquisa do Instituto
Arara Azul. “Ali existem 700 animais e mais de 77 ninhos monitorados,
só poderemos saber a dimensão do estrago causado pelo fogo quando o combate
acabar. Mas, muitos ninhos já estavam com filhotes e os animais perderam o seu
alimento para o fogo, as palmeiras do Bacuri”, explica Neiva Guedes, diretora
do Instituto Arara Azul.
ROGÉRIO FLORENTINO / EFE
Amazônia e Pantanal
A reserva matogrossense tem uma relação umbilical com
a Amazônia.
Os dois biomas têm grande parte de suas nascentes localizadas na mesma serra, a
Chapada dos Parecis, em Mato Grosso. É ali que estão 70% das águas que irão
formar a planície do Pantanal, em Mato
Grosso do Sul. “A região depende dessa água que vem das florestas do
norte de Mato Grosso, na região amazônica. Mas estamos registrando cada vez
menos chuvas ali”, lamenta Felipe Dias, diretor-executivo do Instituto SOS Pantanal,
instituição que monitora o desmatamento na região. A projeção é que as secas
serão cada vez mais severas daqui para a frente. “Temos que nos preparar para
não perdermos o Pantanal”, explica Dias. “O cenário atual é propício para o
tripé do fogo: inverno quente, baixa umidade e vento forte”, conclui.
Uma das causas para tanto fogo é a seca. A Régua de Ladário,
em Mato Grosso do Sul, fixada pela Marinha Brasileira em 1900 para medir as
cheias do rio Paraguai, há 47 anos não atingia índices tão baixos. “Esse regime
de secas e chuvas é a natureza do Pantanal Os antigos sempre disseram que os
períodos de alternância duram até dez anos. Isso significa que temos que nos
preparar”, alerta Dias.
O fogo no Pantanal é um problema para o mundo. As queimadas
e mudanças no uso da terra são responsáveis por 80% das emissões
brasileiras de gases que aquecem o planeta e provocam as mudanças
climáticas. O Brasil já esteve em quarto lugar no ranking mundial dos emissores de gases-estufa
durante anos de descontrole nos incêndios e desmatamento, como em 2005.
O país saiu da lista dos dez maiores emissores em 2019, após
controlar o desmatamento na Amazônia. Mas em 2016 ainda estava na sexta
posição, e se a situação sair fora de controle em outros biomas, as emissões
voltam a subir. As emissões também podem reduzir os recursos financeiros para
controlar as queimadas. Hoje, são os compromissos estaduais e nacionais de
redução do desmatamento na Amazônia que dão suporto financeiro às ações de
combate às chamas.
O acordo assinado entre o Governo de Mato Grosso e países
europeus durante a Conferência Mundial do Clima de Paris, a Cop-21, garantem
repasses anuais ao Estado. O programa conhecido como Redd+ para Pioneiros
concede aporte financeiro aos grandes desflorestadores que controlam a perda de
florestas. Mato Grosso era o segundo em perdas de áreas naturais na Amazônia,
mas hoje está em sétimo, segundo o Inpe. O controle garantiu um investimento 22
milhões de reais repassados por bancos alemães e britânicos para o combate às
queimadas.
Segundo a Secretaria do estado de Meio Ambiente (Sema), esse
recurso foi aplicado nas ações conjuntas do Comitê do Fogo, composto por
entidades civis, públicas e organizações não governamentais. A Sema fornece
equipamentos e diárias para realizar as operações. Desde março, foi repassado
680.000 reais em diárias para os Bombeiros Militares e demais profissionais que
atuam diretamente no combate às queimadas.
O ano passado já havia sido crítico em termos de estiagem.
“Tivemos picos de temperatura e baixas de umidade em todo o Pantanal”, diz
Júlio Sampaio da Silva, da WWF-Brasil. “O fogo é algo que vemos desde o início
de 2020. E as queimadas têm uma origem na ação humana. O fogo
começa pela mão do homem, através da limpeza e áreas e renovação de pastagens”,
explica. “É muita irresponsabilidade colocarem fogo em períodos críticos de
seca. Mesmo na chuva, os incêndios aconteceram e marcaram que já teríamos um
ano atípico.”
As queimadas deixarão marcas profundas. “Para os insetos é
uma perda bastante acentuada nesse momento de incêndio, porque são animais que
não têm mobilidade de longo alcance, muitos deles são polinizadores,
fundamentais para o desenvolvimento das plantas”, explica Cristina Cuiabalia,
bióloga e gerente de Pesquisa e Meio Ambiente do Polo Socioambiental Sesc
Pantanal. Não são os únicos: répteis também acabam sendo consumidos pelo fogo.
“As aves até conseguem migrar entre um ambiente e outro, mas perdem-se ninhais
e dormitórios, o que representa a perda de uma geração, já que estamos bem na
estação reprodutiva da arara-azul, do tuiuiú”, segue Cuiabalia.
Sizenando Carmo Santos, 62 anos, explica que os quilombolas
tentaram chamar o Corpo de Bombeiros por horas. “Ligamos muitas vezes. Eles
chegaram quando já não conseguiam fazer nada, o fogo tinha se alastrado por
tudo. Ficaram só olhado. Fomos nós mesmos que evitamos que as casas se
perdessem”MARCIO PIMENTA / MARCIO PIMENTA/REDUX
Covid-19 e fogo
As autoridades de Cuiabá e Várzea Grande, as maiores cidades
de Mato Grosso, precisam conciliar os efeitos das queimadas na saúde em meio a
pandemia do novo coronavírus. O Estado foi considerado em julho, pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), como um dos epicentros da covid-19 no Brasil. Com
uma curva acentuada no número de casos e poucos leitos hospitalares, são quase
80.000 casos, para 450 leitos de Unidades de Terapias Intensiva públicas.
A Secretaria da Saúde afirma que a taxa de ocupação segue
sob controle, com pouco mais de 20% de leitos disponíveis, porém o Ministério
Público de Mato Grosso decretou quarentena restritiva emergencial duas vezes no
Estado entre junho e julho por falta de leitos.
Na Comunidade de Mata Cavalo a população ainda debate o que
fazer após a perda das hortas. “As pessoas dizem que estamos perto de cidades,
mas para o quilombola sair de sua casa a dez quilômetros do asfalto e ir a um
mercado precisa de cem reais de frete. Por conta da pandemia do coronavírus, o
ônibus que fazia nossa linha parou em abril”, diz a presidente da Associação de
Mata Cavalo de Baixo, Arlete Pereira, 54 anos.
Para o agente de saúde, Edson Batista, de 51 anos, os
efeitos das queimadas podem agravar a pandemia. “Com essa seca, sem hortas e o
auxílio da pandemia acabando (em setembro), as famílias ficarão sem comida. Já
temos alguns casos aqui de coronavírus, e um óbito foi registrado. Os problemas
respiratórios gerados pelas queimadas também vão induzir as famílias a
procurarem tratamento nos hospitais da capital. Não sei como serão os próximos
meses”, diz o agente de saúde Batista.
✔️O fogo já destruiu 10% do Pantanal (10x o tamanho da cidade de SP).
✔️O Governo demorou 1 mês p/contratar 90 brigadistas (seria necessário no mínimo o dobro)
✔️ 1 avião Hércules C-130 está sendo usado na operação. Pq só 1?
✔️ Só 2 motobombas c/mangueiras estão operacionais pic.twitter.com/6vE5AUahLu
O Pantanal já perdeu mais de 10% de sua cobertura vegetal
devido aos incêndios que atingem a região desde julho. Um dos fatores para
tamanho estrago foi a temporada de seca, que tem sido mais acentuada, além do
inverno mais quente. Então o Pantanal já está sofrendo efeitos das mudanças
climáticas?
Neste episódio, conversamos sobre o que está acontecendo
nesse bioma, o que pode ou não ser efeito do aquecimento do planeta e
filosofamos um pouco sobre nossa relação com a natureza. Os convidados são
Felipe Dias, diretor-executivo da SOS Pantanal, e José Marengo, climatologista
do Centro de Monitoramento e Alertas De Desastres Naturais (Cemaden).
Economista seria primeiro ministro negro do Governo, mas
deixa cargo antes da posse. “Grotesco ter como indicado alguém que mente no
currículo”, diz Movimento Campanha Nacional pela Educação POR: EL PAÍS
Visto por organizações da área e setores do Governo como
uma correção de rota no Ministério da Educação, após a
conturbada passagem de Abraham Weintraub, o nome de Carlos Alberto Decotelli da Silva chegou a gerar
expectativa de pacificação dos ânimos, que derreteu antes mesmo da posse. Como
o economista não conseguiu comprovar as qualificações de seu currículo, questionadas por instituições onde
ele afirmara ter cursado doutorado e pós-doutorado e ainda trabalhado como
professor, o presidente Jair Bolsonaro foi obrigado a recuar, adiando a
nomeação. Diante da pressão pela descoberta das fraudes, o ministro, que durou
apenas cinco dias no cargo, pediu demissão nesta terça-feira.
A primeira inconsistência no currículo de Decotelli surgiu
da Universidade Nacional de Rosario, na Argentina, que informou que o indicado
ao MEC não obteve título de doutor por ter tido a tese reprovada. Na sequência,
a universidade alemã de Wuppertal negou que o economista tenha cursado
pós-doutorado na instituição. Já nesta terça, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) emitiu nota para
esclarecer que o agora ex-ministro nunca integrou seu corpo efetivo de
professores, mas somente deu aulas, como colaborador, em cursos de educação
continuada vinculados à fundação. Em seu currículo Lattes, ele apontava ter
sido professor da instituição entre 2001 e 2018. A FGV ainda apura denúncia de
plágio da dissertação de mestrado, que será devidamente conferida após
orientadores retornarem às atividades presenciais e, caso seja confirmada, pode
render a abertura de um processo disciplinar e, em última instância, a anulação
do título.
Por meio do MEC, Decotelli se comprometeu a revisar a
dissertação, negando dolo em eventuais omissões de créditos a outros
pesquisadores, e admitiu não ter concluído os trabalhos necessários para a
obtenção dos títulos de doutorado e pós-doutorado. Embora tenha efetuado
ajustes no currículo e recebido o apoio de Bolsonaro, que relativizou a
falsificação que chamou de “inadequações curriculares” e enalteceu a
“capacidade para construir uma educação inclusiva e de oportunidades para
todos” do ministro, o economista não conseguiu se segurar no cargo, rifado pela
alta cúpula do presidente.
Sem se comover com o voto de confiança dado por Bolsonaro a
seu escolhido, parlamentares governistas bradaram publicamente pela saída de
Decotelli. “O Governo precisa passar um pente fino na área responsável pela análise
de informações e demitir os incompetentes. Além disso, deve repensar a nomeação
de Decotelli. Um ministro da Educação não pode assumir o cargo nessa
fragilidade”, postou o deputado federal Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), que,
mais tarde, celebraria o pedido de demissão do ministro. “Melhor para o Brasil,
para o presidente e para Decotelli.”
Com passagem pela Marinha, o ministro havia recebido o crivo
da ala militar que tem ganhado influência sob o Governo Bolsonaro. Antes do
MEC, ele presidiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) entre
fevereiro e agosto de 2019. Sua chegada ao comando da autarquia federal
vinculada ao MEC é anterior ao decreto assinado pelo presidente em 15 de março
do ano passado, que estipula critérios técnicos, como experiência profissional
na área ou título de doutorado, para nomeações em cargos comissionados do Governo.
Entretanto, as regras preveem que as informações curriculares sejam prestadas
pelos indicados ao cargo, sem obrigatoriedade de verificação, e que ministros
de cada pasta podem dispensar os critérios desde que apresentem justificativas.
A falta de mecanismos de controle das qualificações segue
fazendo com que critérios políticos frequentemente se sobreponham aos técnicos
nas nomeações do Governo. Depois da saída de Weintraub e a prevalência da
indicação dos militares, Decotelli ganhou a rejeição imediata do núcleo governista mais ligado ao filósofo Olavo de Carvalho,
que havia apadrinhado os dois ministros anteriores, mas perdera a queda de
braço na disputa pelo MEC. Alfinetadas públicas de aliados bolsonaristas ao
novo ministro se somaram às críticas de parlamentares da oposição e entidades
de educação quando as inconsistências no currículo vieram à tona.
“É um cenário no mínimo grotesco termos como indicado para o
Ministério da Educação alguém que mente no currículo —e que comete, portanto,
um crime— e ainda por cima tendo chegado ao ministério se dizendo técnico e
tentando se descolar do caráter político e ideológico vergonhoso do Governo
para o qual aceitou entrar. Desde sua confirmação já dissemos que nenhum
técnico não é político, e agora isso se comprova”, manifestou o movimento da
Campanha Nacional pela Educação.
Porém, antes da polêmica sobre o currículo, o nome de
Decotelli foi inicialmente bem assimilado por lideranças do setor. Organizações
não governamentais como o Todos Pela Educação se surpreenderam de forma
positiva com o perfil mais técnico que ideológico do economista, ao contrário
de Weintraub. A primeira impressão, no entanto, caiu por terra em meio à
desconstrução de seu currículo. “Muita mentira junta é grave. Ministro da
Educação mentir formação acadêmica, é gravíssimo. Ministro que não é mais
confiável para restabelecer as pontes com Estados, Municípios, Congresso e
sociedade, não consegue exercer suas funções frente à profunda crise na
educação”, afirmou Priscila Cruz, presidente do Todos Pela Educação.
Para Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor
aposentado da Unicamp, a miragem de que Decotelli poderia ser um ministro
técnico e conciliador, apesar de sua curta experiência na área de políticas
públicas para a educação, foi facilitada pela repulsa generalizada a seu
antecessor no cargo. “Depois de uma gestão tão tensa como a do Weintraub,
qualquer nome soa como um alívio, uma esperança de que, finalmente, alguém vai
propor um grande debate nacional”, diz Freitas. O pesquisador entende que o
substituto de Decotelli, independentemente de perfil ou currículo, deve se
guiar por uma visão mercantilista da educação. “O Governo Bolsonaro
foi loteado pelas forças que lhe dão suporte. Na medida em que uma delas ganha
mais relevância que outra, a direção do Governo muda, mas elas ainda
compartilham a ideia radical de reduzir o Estado a qualquer custo. E, na
educação, esse apelo por reformas de caráter empresarial naturalmente se
reproduz.”
Única baixa por falsificação de currículo no Governo
Carlos Alberto Decotelli não foi o primeiro integrante do
Governo Bolsonaro exposto por exagerar ou fraudar qualificações
curriculares. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, dizia-se
mestre em Direito Público pela Universidade Yale até uma reportagem do The
Intercept Brasil desmascarar o falso mérito. Salles atribuiu a
informação a um “equívoco de assessoria”. Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos
Humanos, indicava possuir o título de mestre em Educação e Direito
Constitucional e da Família, embora nunca tenha feito mestrado, sem especificar
que se tratava de uma distinção religiosa.
Os antecessores de Decotelli na pasta também turbinaram seus
currículos. Primeiro ministro da Educação de Bolsonaro, o colombiano
naturalizado brasileiro, Ricardo Vélez Rodríguez, apresentou pelo menos 22 erros em
seu currículo Lattes, incluindo a autoria de livros que não havia escrito, de
acordo com levantamento do portal Nexo. Por sua vez, Abraham Weintraub foi anunciado pelo presidente como
doutor, sendo que só possui o título de mestre em Administração. A Folha
de S. Paulo ainda verificou que o ex-ministro ostentava no currículo
artigos idênticos, publicados em dois veículos diferentes, em prática conhecida
como autoplágio.
Em que pese a sequência de desmentidos de instituições onde
Decotelli informava ter trabalhado ou se graduado, ele foi o único membro do
alto escalão do Governo a sair do cargo após ser flagrado por fraude
curricular. Até então, o economista também era o único ministro negro nomeado por Bolsonaro ao longo de
seu mandato. “Comecei a desenhar um projeto para implementar no MEC. Esse
projeto, porém, foi questionado pelo fato da minha inconsistência curricular,
que, no mundo acadêmico, é explicável”, justificou Decotelli em entrevista
à CNN Brasil. Ele foi o ministro que permaneceu menos tempo no
cargo, superando a passagem-relâmpago de Nelson Teich (28 dias) pelo
Ministério da Saúde.
Mesmo com pandemia, o Brasil não tem ministro da saúde e nem
da educação. Carlos Alberto Decotelli se demitiu nesta tarde sem sequer ter
assumido o cargo. A demissão acontece após a polêmica sobre títulos que
Decotélli diz possuir.
País investiga qual destino final da droga, descoberta em
mala de mão durante escala do avião reserva da Presidência em Sevilha
A Guarda Civil espanhola deteve nesta terça-feira no
aeroporto de Sevilha o militar brasileiro Manoel Silva Rodrigues, de 38 anos,
que havia transportado 39 quilos de cocaína em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) integrado à comitiva do presidente Jair Bolsonaro, segundo
confirmaram fontes da corporação policial ao EL PAÍS.
A prisão do sargento da FAB ocorreu durante uma escala do
avião reserva da presidência em Sevilha, no sul da Espanha, rumo a Osaka, onde Bolsonaro participará da reunião do G-20. O ministério brasileiro de Defesa
emitiu nota confirmando a detenção do militar por tráfico de entorpecentes, e anunciou
a abertura de um inquérito para apurar o ocorrido. Bolsonaro também escreveu um
tuíte sobre o fato.
Fontes da Guarda Civil disseram que a detecção da droga e a
posterior detenção do militar ocorreram quando os membros da tripulação e suas
bagagens passaram pelo controle alfandegário obrigatório após a chegada a
Sevilha. Ao abrir a mala de mão os agentes encontraram 37 tijolos de pouco mais
de um quilo cada. "Não estava nem mesmo escondido entre as roupas",
disseram fontes da Guarda. As autoridades da Espanha agora querem saber qual
era o destino final da droga.
O militar foi levado para o comando da Guarda Civil na
capital andaluza. Nesta quarta-feira, o Tribunal de Instrução número 11 de
Sevilha ordenou nesta quarta-feira a prisão provisória do militar, sem fiança.
Inicialmente, ele está sendo investigado por um suposto crime contra a saúde
pública.
O Ministério da Defesa disse em seu comunicado que “repudia”
os atos do militar e que colaborará com as autoridades espanholas na
investigação. No Twitter, Bolsonaro disse que pediu ao ministro da Defesa que
preste "imediata colaboração" à polícia espanhola.
Após o incidente em Sevilha, a Presidência alterou a rota da
viagem de Bolsonaro ao Japão, segundo o portal UOL. Após decolar de Brasília,
Bolsonaro fará escala em Lisboa em vez de Sevilha, segundo constava na sua
agenda no final da noite de terça. O gabinete de imprensa do presidente não
explicou o motivo da mudança.
Não é a primeira vez que membros da Aeronáutica usam sua
condição de militares para traficar drogas. Em abril, o Tribunal Superior
Militar decretou a expulsão da corporação de um comandante pelo transporte de
33 quilos de cocaína numa aeronave militar que se dirigia à França com escala
nas ilhas Canárias. Outros dois colegas do comandante já tinham perdido o posto
por sua participação no caso, ocorrido em 1999. O comandante foi condenado a 16
anos da prisão por integrar “uma rede especializada no tráfico internacional de
cocaína" com a ajuda de aviões da FAB.
“Sargento preso com cocaína na Espanha fez 29 viagens e acompanhou três presidentes”
Mas foi com governo Bolsonaro que carregou cocaína https://t.co/KpRSK2VuXW
EL PAÍS - Pesquisa comparativa liderada por Thomas Piketty aponta que
27,8% da riqueza nacional está em poucas mãos
Quase 30% da renda do Brasil está nas mãos de apenas 1% dos
habitantes do país, a maior concentração do tipo no mundo. É o que indica a
Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, coordenada, entre outros, pelo economista
francês Thomas Piketty. O grupo, composto por centenas de estudiosos,
disponibiliza nesta quinta-feira um banco de dados que permite comparar a
evolução da desigualdade de renda no mundo nos últimos anos.
Os dados sobre o Brasil se restringem ao período de 2001 a
2015, e são semelhantes em metodologia e achados aos estudos pioneiros
publicados pelos pesquisadores brasileiros Marcelo Medeiros, Pedro Ferreira de
Souza e Fábio Castro a partir de 2014. No caso de Souza, pesquisador do IPEA, o
trabalho construiu série histórica sobre a disparidade de renda no Brasil desde1926. A World Wealth & Income Database (base de dados mundial de riqueza e
renda) aponta que o 1% mais rico do Brasil detinha 27,8% da renda do país em
2015, enquanto no estudo do brasileiro, por diferenças de metodologia, a cifra é
23%.
Segundo os dados coletados pelo grupo de Piketty, os
milionários brasileiros ficaram à frente dos milionários do Oriente Médio, que
aparecem com 26,3% da renda da região. Na comparação entre países, o segundo
colocado em concentração de renda no 1% mais rico é a Turquia, com 21,5% em
2015 — no dado de 2016, que poucos países têm, a concentração turca subiu para
23,4%, de acordo com o levantamento.
O Brasil também se destaca no recorte dos 10% mais ricos,
mas não de forma tão intensa quanto se observa na comparação do 1% mais rico.
Os dados mostram o Oriente Médio com 61% da renda nas mãos de seus 10% mais
ricos, seguido por Brasil e Índia, ambos com 55%, e a África Subsaariana, com
54%.
A região em que os 10% mais ricos detêm menor fatia da
riqueza é a Europa, com 37%. O continente europeu é tido pelos pesquisadores
como exemplo a ser seguido no combate à desigualdade, já que a evolução das
disparidades na região foi a menor entre as medidas desde 1980. Eles propõem,
de maneira geral, a implementação de regimes de tributação progressivos e o
aumento dos impostos sobre herança, além de mais rigidez no controle de evasão
fiscal.
Gráfico do banco de dados. O Brasil
aparece com a maior
concentração,
em verde claro.
O grupo de economistas reconhece que existe "grandes
limitações para nossa capacidade de medir a evolução da desigualdade".
Muitos países não divulgam ou sequer produzem dados detalhados sobre renda ou
desigualdade econômica. A pesquisa se baseia, portanto, em múltiplas fontes,
como contas públicas, renda familiar, declaração de imposto de renda, heranças,
informações de pesquisas locais, dados fiscais e rankings de patrimônio. O
brasileiro Pedro Ferreira de Souza concorda: "Na minha tese, do ano
passado, o Brasil também aparece em primeiro na concentração de renda no topo,
mas não gosto de falar em campeão mundial porque há muito ruído e
incompatibilidade nos dados. Prefiro dizer que está sem dúvida entre os
piores", diz o pesquisador, cujo trabalho se tornará livro no ano que vem
por ter recebido o Prêmio Anpocs de Tese em Ciências Sociais.
Investimentos
Os pesquisadores que trabalham sob a grife de Piketty, que
se tornou mundialmente famoso com a publicação em inglês de O Capital no SéculoXXI, em 2014, destacam ainda a importância de investimento público em áreas
como educação, saúde e proteção
ambienta. Mas chamam atenção para a perda de poder de influência dos governos
dos países mais ricos do mundo.
"Desde os anos 1980, ocorreram grandes transferências
de patrimônio público para privado em quase todos os países, ricos ou
emergentes. Enquanto a riqueza nacional aumentou substancialmente, o patrimônio
público hoje é negativo ou próximo de zero nos países ricos", diz a
pesquisa. Segundo os autores, isso obviamente limita a capacidade dos governos
de combater a desigualdade.
Para os pesquisadores, o combate à desigualdade econômica
pode contribuir inclusive para o combate à pobreza — que caiu no mundo nosúltimos anos, inclusive no Brasil. "A pobreza é essencialmente uma forma
de desigualdade. Não acho possível separar as duas", diz Marc Morgan Milá,
responsável pela parte do Brasil na pesquisa. Para ele, a meta deveria ser
promover um crescimento mais balanceado, em vez do cenário de livre mercado em
que os mais pobres se beneficiam de forma modesta dos ganhos dos mais ricos.
Sputink Brasil - Sofrendo uma avalanche de críticas sobre estar censurando
imprensa, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu dar permissão para que Luiz
Inácio Lula da Silva dê entrevistas da cadeia. Tem muita gente comemorando
decisão e até dizendo que o ex-presidente trará muita coisa à mesa.
A decisão do STF foi recebida de braços abertos por muitos
internautas que estão mostrando todo apoio e estão ansiosos para conferir o que
Lula falará nas entrevistas para veículos como Folha de S. Paulo e El País.
Entre os assuntos mais comentados no Twitter nesta
sexta-feira (19), a hashtag #FalaLula, criada inicialmente em prol da
permissão, ganhou grandes proporções e está até mesmo contando com opositores
ao ex-presidente, que desde abril de 2018 está preso.
Há muita gente ansiosa pelas entrevistas que Lula, "o
mais perseguido operário do século XXI", dará.
Vem aí entrevista com o candidato ao Prêmio Nobel da Paz 2019: O mais perseguido operário do século XXI vai falar.#FalaLula
Já o político Xico Graziano não gostou da ideia de permitir
que Lula dê entrevistas.
Alexandre de Moraes viu que fez uma enorme cagada, e recuou da censura. Toffoli ficou embirrado e pensou: tá bom, então vou liberar também a entrevista com Lula. Misturou liberdade de imprensa com liberalidade à criminosos condenados e presos. Típico de Justiça engajada.
A colunista da Folha de S. Paulo, Mônica Bergamo, trouxe um
lado do Antagonista, que até mesmo o Antagonista esqueceu.
O Antagonista @o_antagonista , hoje censurado, aplaudiu a censura à Folha em 2018, qdo. o ministro Fux proibiu o jornal de entrevistar Lula. E de publicar a conversa, se já tivesse ocorrido. O Antagonista dizia que o magistrado deveria ser HOMENAGEADO.https://t.co/r1sp777eBY
EL PAÍS - A vida no Brasil de Bolsonaro: um Governo que faz oposição a
si mesmo como estratégia para se manter no poder, sequestra o debate nacional,
transforma um país inteiro em refém e estimula a matança dos mais frágeis
Os 100 dias do Governo Bolsonaro fizeram do Brasil o
principal laboratório de uma experiência cujas consequências podem ser mais
destruidoras do que mesmo os mais críticos previam. Não há precedentes
históricos para a operação de poder de Jair Bolsonaro (PSL). Ao inventar a
antipresidência, Bolsonaro forjou também um governo que simula a sua própria
oposição. Ao fazer a sua própria oposição, neutraliza a oposição de fato. Ao
lançar declarações polêmicas para o público, o governo também domina a pauta do
debate nacional, bloqueando qualquer possibilidade de debate real. O
bolsonarismo ocupa todos os papéis, inclusive o de simular oposição e crítica,
destruindo a política e interditando a democracia. Ao ditar o ritmo e o
conteúdo dos dias, converteu um país inteiro em refém.
A violência de agentes das forças de segurança do Estado nos
primeiros 100 dias do ano, como a execução de 11 suspeitos em Guararema (SP),
pela polícia militar, e os 80 tiros disparados contra o carro de uma famíliapor militares no Rio de Janeiro, pode apontar a ampliação do que já era
evidente no Brasil: a licença para matar. Mais frágeis entre os frágeis, os
ataques a moradores de rua podem demonstrar uma sociedade adoecida pelo ódio:
em apenas três meses e 10 dias, pelo menos oito mendigos foram queimados vivos
no Brasil. Bolsonaro não puxou o gatilho nem ateou fogo, mas é legítimo afirmar
que um Governo que estimula a guerra entre brasileiros, elogia policiais que
matam suspeitos e promove o armamento da população tem responsabilidade sobre a
violência.
Este artigo é dividido em três partes: perversão, barbárie e
resistência.
1) A Perversão
Tanto a oposição quanto a imprensa quanto a sociedade civil organizada e até mesmo grande parte da população estão vivendo no ritmo dos espasmos calculados que o bolsonarismo injeta nos dias. É por essa razão que me refiro à “perversão” no título deste artigo. Estamos sob o jugo de perversos, que corrompem o poder que receberam pelo voto para impedir o exercício da democracia.
Como tem a máquina do Estado nas mãos, podem controlar a pauta. Não só a do país, mas também o tema das conversas cotidianas dos brasileiros, no horário do almoço ou junto à máquina do café ou mesmo na mesa do bar. O que Bolsonaro aprontará hoje? O que os bolsojuniores dirão nas redes sociais? Qual será o novo delírio do bolsochanceler? Quem o bolsoguru vai detonar dessa vez? Qual será a bolsopolêmica do dia? Essa tem sido a agenda do país.
Mas essa é apenas parte da operação. Para ela, Bolsonaro teve como mentor seu ídolo Donald Trump. O bolsonarismo, porém, vai muito mais longe. Ele simula também a oposição. Assim, a sociedade compra a falsa premissa de que há uma disputa. A disputa, porém, não é real. Toda a disputa está sendo neutralizada. Quando chamo Bolsonaro de “antipresidente”, não estou fazendo uma graça. Ser antipresidente é conceito.
O bolsonarismo simula a sua própria oposição, neutralizando
a oposição real e silenciando o debate
Quem é o principal opositor da reforma da Previdência do
ultraliberal Paulo Guedes, ministro da Economia? Não é o PT ou o PSOL ou a CUT
ou associações de aposentados. O principal crítico da reforma do
“superministro” é aquele que nomeou o superministro exatamente para fazer a
reforma da Previdência. O principal crítico é Bolsonaro, o antipresidente.
Como quando diz que, “no fundo, eu não gostaria de fazer a
reforma da Previdência”. Ou quando diz que a proposta de capitalização da
Previdência “não é essencial” nesse momento. Ou quando afirmou que poderia
diminuir a idade mínima para mulheres se aposentarem. É Bolsonaro o maior
boicotador da reforma do seu próprio Governo.
Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não
sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi
levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com
ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não
há oposição de fato. Quem ouve falar da oposição? Alguém conhece as ideias da
oposição, caso elas existam? Quais são os debates do país que não sejam os
colocados pelo próprio Bolsonaro e sua corte em doses diárias calculadas?
É pelo mesmo mecanismo que o bolsonarismo controla as
oposições internas do Governo. Os exemplos são constantes e numerosos. Mas o
uso mais impressionante foi a recente ofensiva contra a memória da ditaduramilitar. Bolsonaro mandou seu porta-voz, justamente um general, dizer que ele
havia ordenado que o golpe de 1964, que completou 55 anos em 31 de março,
recebesse as “comemorações devidas” pelas Forças Armadas. Era ordem de
Bolsonaro, mas quem estava dizendo era um general da ativa, o que potencializa
a imagem que interessa a Bolsonaro infiltrar na cabeça dos brasileiros.
Ao mandar comemorar o golpe de 1964, Bolsonaro deu um golpe
na ala militar do seu próprio governo
Aparentemente, Bolsonaro estava, mais uma vez, enaltecendo
os militares e dando seguimento ao seu compromisso de fraudar a história,apagando os crimes do regime de exceção. Na prática, porém, Bolsonaro deu
também um golpe na ala militar do seu próprio Governo. Como é notório e escrevi
aqui já em janeiro, os militares estão assumindo – e se esforçando para assumir
– a posição de adultos da sala ou controladores do caos criado por Bolsonaro e
sua corte barulhenta. Estão assumindo a imagem de equilíbrio num Governo de
desequilibrados.
Esse papel é bem calculado. A desenvoltura do vice general
Hamilton Mourão, porém, tem incomodado a bolsomonarquia. O que pode então ser
mais efetivo do que, num momento em que mesmo pessoas da esquerda têm se
deixado seduzir pelo “equilíbrio” e “carisma” de Mourão, lembrar ao país que a
ditadura dos generais sequestrou, torturou e assassinou civis?
Bolsonaro promoveu a memória dos crimes da ditadura pelo
avesso, negando-os e elogiando-os. Poucas vezes a violência do regime
autoritário foi tão lembrada e descrita quanto neste 31 de março. Foi Bolsonaro
quem menos deixou esquecer os mais de 400 opositores mortos e 8 mil indígenasassassinados, assim como as dezenas de milhares de civis torturados. Para
manter os generais no cabresto, Bolsonaro os jogou na fogueira da opinião
pública fingindo que os defendia.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro lembrou aos generais que são ele e
sua corte aparentemente tresloucada quem faz o serviço sujo de enaltecer
torturadores e impedir que pleitos como o da revisão da lei de anistia, que até
hoje impediu os agentes do Estado de serem julgados pelos crimes cometidos
durante a ditadura, vão adiante. Como berrou o guru do bolsonarismo, o escritor
Olavo de Carvalho, em um de seus ataques recentes contra o general da reserva
Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da
presidência: “Sem mim, Santos Cruz, você estaria levando cusparadas na porta do
Clube Militar e baixando a cabeça como tantos de seus colegas de farda”.
A ditadura deixou marcas tão fundas na sociedade brasileira
que mesmo perseguidos pelo regime se referem a generais com um respeito
temeroso. Nenhum “esquerdista” ousou dizer publicamente o que Olavo de Carvalho
disse, ao chamar os generais de “bando de cagões”. Mais uma vez, o ataque, a
réplica e a tréplica se passaram dentro do próprio Governo, enquanto a
sociedade se mobilizava para impedir “as comemorações devidas”.
A exaltação do golpe militar de 1964 serviu também como
balão de ensaio para testar a capacidade das instituições de fazer a lei valer.
Mais uma vez, Bolsonaro pôde constatar o quanto as instituições brasileiras são
fracas. E alguns de seus personagens, particularmente no judiciário,
tremendamente covardes. Não fosse a Defensoria Pública da União, que entrou com
uma ação na justiça para impedir as comemorações de crimes contra a humanidade,
nada além de “recomendações” para que o Governo não celebrasse o sequestro, a
tortura e o assassinato de brasileiros. Patético.
Bolsonaro finge que não nomeou o ministro que demitiu
Outro exemplo é a demissão do ministro da Educação RicardoVélez Rodríguez para colocar em seu lugar outro que pode ser ainda pior.
Bolsonaro fritou o ministro que ele mesmo nomeou e o demitiu pelo Twitter. Ao
fazê-lo, agiu como se outra pessoa o tivesse nomeado – e não ele mesmo.
Chamou-o de “pessoa simpática, amável e competente”, mas sem capacidade de
“gestão” e sem “expertise”. Mas quem foi o gestor que nomeou alguém sem
capacidade de gestão e expertise para um ministério estratégico para o país? E
como classificar um gestor que faz isso? Mais uma vez, Bolsonaro age como se
estivesse fora e dentro ao mesmo tempo, fosse governo e opositor do governo
simultaneamente.
Mesmo as minorias que promoveram alguns dos melhores
exemplos de ativismo dos últimos anos passaram a assistir à disputa do Governo
contra o Governo como espectadores passivos. Quem lutou pela ampliação dos
instrumentos da democracia parece estar se iludindo que berrar nas redessociais, também dominadas pelo bolsonarismo, é algum tipo de ação. A
participação democrática nunca esteve tão nula.
A estratégia bem sucedida, neste caso, é a falsa disputa da
“nova política” contra a “velha política”. O bate-boca entre Jair Bolsonaro e o
presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), é só rebaixamento da política, de
qualquer política. Se a oposição ao Governo é Maia, parlamentar de um partido
fisiológico de direita, qual é a oposição? Bolsonaro e Maia estão no mesmo
campo ideológico. Não há nenhuma disputa de fundo estrutural entre os dois,
seja sobre a Previdência ou sobre qualquer outro assunto de interesse do país.
O mecanismo se reproduz também na imprensa. Aparentemente,
parte da mídia é crítica ao Governo Bolsonaro. E, sob certo aspecto, é
comprovadamente crítica. Mas a qual Governo Bolsonaro? Se Bolsonaro é mostrado
como o irresponsável que é, o contraponto de responsabilidade, especialmente na
economia, seriam outros núcleos de seu próprio Governo, conforme apresentado
por parte da imprensa. Quando o insensato Bolsonaro atrapalha Guedes, o projeto
neoliberal ganha um verniz de sensatez que jamais teria de outro modo.
Diante do populismo de extrema direita de Bolsonaro e seus
companheiros de outros países, o neoliberalismo é apresentado como a melhor
saída para a crise que ele mesmo criou. Mas Bolsonaro e seus semelhantes são os
produtos mais recentes do neoliberalismo – e não algo fora dele. Onde então
está o contraditório de fato? Qual é o espaço para um outro projeto de Brasil?
Cadê as alternativas reais? Quais são as ideias? Onde elas estão sendo
discutidas com ressonância, já que sem ressonância não adianta?
Bolsonaro governa contra o governo para manter a
popularidade entre suas milícias
A imprensa ao mesmo tempo reflete e alimenta a paralisia da
sociedade. Os cem dias mostraram que o Governo Bolsonaro é ainda pior do que o
fenômeno Bolsonaro. Bolsonaro não se tornará presidente, “não vestirá a
liturgia do cargo”, como esperam alguns. Não porque é incapaz, mas porque não
quer. Bolsonaro sabe que só se mantém no poder como antipresidente, como enfatizei
em artigo anterior. Bolsonaro só pode manter o poder mantendo a guerra ativa.
Recente pesquisa do Datafolha mostrou que ele é o presidente
pior avaliado num início de governo desde a redemocratização do país. Mas
Bolsonaro aposta que é suficiente manter a popularidade entre suas milícias e
age para elas. Bolsonaro está dentro, mas ao mesmo tempo está fora, governando
com sua corte e seus súditos. Governando contra o Governo. Essa é a única
estratégia disponível para Bolsonaro continuar sendo Bolsonaro.
A oposição, assim como a maioria da população, foi condenada
à reação, o que bloqueia qualquer possibilidade de ação. Se alguém sempre jogar
a bola na sua direção, você sempre terá que rebater a bola. E quando pegar esta
e liberar as mãos, outra bola é jogada. Assim, você vai estar sempre de mãos
ocupadas, tentando não ser atingido. Todo o seu tempo e energia são gastos em
rebater as bolas que jogam em você. Deste modo, você não consegue tomar nenhuma
decisão ou fazer qualquer outro movimento. Também não consegue planejar sua
vida ou construir um projeto. É uma comparação tosca, mas fácil de entender. É
assim que o governo Bolsonaro tem usado o poder para controlar o conteúdo dos
dias e impedir a disputa política legítima das ideias e projetos.
2) A Barbárie
Mesmo a parcela mais organizada das minorias que tanto
Bolsonaro atacou na eleição parece estar em transe, sem saber como agir diante
dessa operação perversa do poder. Ao reagir, tem adotado o mesmo discurso
daqueles que as oprimem, o que amplia a vitória do bolsonarismo.
Um exemplo. O vídeo divulgado por Bolsonaro no Carnaval,
mostrando uma cena de “golden shower”, foi definido como “pornográfico” por
muitos dos que se opõem a Bolsonaro. Mas este é o conceito de pornografia da
turma do antipresidente. Adotá-lo é comungar de uma visão preconceituosa e
moralista da sexualidade. É questionável que dois homens façam sexo no espaço
público e este é um ponto importante. Não deveriam e não poderiam. Mas não é
questionável o ato de duas pessoas adultas fazerem sexo consentido da forma que
bem entenderem, inclusive um urinando no outro. O ato pornográfico é o de
Bolsonaro, oficialmente presidente da República, divulgar o vídeo nas redes
sociais. É dele a obscenidade. A pornografia não está na cena, mas no ato de
divulgar a cena pelas redes sociais. Diferenciar uma coisa da outra é
fundamental.
O discurso de ódio e de repressão à sexualidade está se
infiltrando no país e sendo reproduzido mesmo pela esquerda
Outro exemplo. Quando a oposição tenta desqualificar o
deputado federal Alexandre Frota (PSL) porque ele é ator pornô está apenas se
igualando ao adversário. Qual é o problema de ser ator pornô? Só os moralistas
do pseudoevangelismo desqualificam pessoas por terem trabalhos ligados ao sexo.
Alexandre Frota deve ser criticado pelas suas péssimas ideias e projetos para o
país, não porque fazia sexo em filmes para ganhar a vida. Criticá-lo por isso é
jogar no campo do bolsonarismo e é também ser intelectualmente desonesto. Cada
vez mais parte da esquerda tem se deixado contaminar, como se fosse possível
deslegitimar o adversário usando o mesmo discurso de ódio.
Na mesma linha, o problema do ministro da Justiça, SergioMoro, não é o fato de ele falar “conge” em vez de “cônjuge”, como fez por duas
vezes durante audiência pública no Senado. Ridicularizar os erros das pessoas
na forma de falar é prática das piores elites, aquelas que se mantêm como elite
também porque detêm o monopólio da linguagem. Poderia se esperar que Moro
falasse a chamada “norma culta da língua portuguesa” de forma correta, já que
teve educação formal tradicional. Mas a disputa política deve se dar no campo
das ideias e projetos.
O problema de Moro é ter, como juiz, interferido no
resultado da eleição. E, em seguida, ser ministro daquele que suas ações como
funcionário público ajudaram a eleger. O problema de Moro é criar um pacoteanticrime que, na prática, pode autorizar os policiais a cometerem crimes. Pela
proposta do ministro da Justiça, os policiais podem invocar “legítima defesa”
ao matar um suspeito, alegando “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Neste caso, a pena pode ser reduzida pela metade ou mesmo anulada. O problema
de Moro que interessa ao país não é, definitivamente, usar “conge” em vez de
“cônjuge”.
Moradores de rua estão sendo incendiados vivos no Brasil:
entre janeiro e o início de abril já foram pelo menos oito
Compreender como o discurso de ódio vai se imiscuindo na
mente de quem acredita estar se contrapondo ao ódio é eticamente obrigatório.
Se o governo de Bolsonaro é também oposição e crítica ao próprio Governo, isso
não significa que ele não tenha um projeto e que este projeto não esteja se
impondo rapidamente ao país. Tem e está. Somos hoje um país muito pior do que
fomos. E somos hoje um povo muito pior do que fomos. Parte do objetivo dos
violentos e dos odiadores é normalizar a violência e o ódio pela repetição. O
bolsonarismo tem conseguido realizar esse projeto com uma velocidade espantosa.
Apenas em 2019 ( e escrevo na primeira quinzena de abril),
pelo menos oito – OITO – moradores de rua foram queimados vivos no Brasil. Este
é apenas um levantamento feito com base no noticiário, pode ser mais. Em 1 de
janeiro, um morador de rua de 27 anos foi incendiado quando dormia em Ponta
Grossa, no Paraná. Alguém passou, jogou álcool e colocou fogo no seu corpo.
Teve mais de 40% do corpo queimado. Em 21 de janeiro, um morador de rua foi
encontrado incendiado e morto numa praça de Curitiba, capital paranaense. Quatro
dias depois, em 25 de janeiro, José Alves de Mello, 56 anos, também morador de
rua, foi agredido e queimado num imóvel abandonado da Grande Curitiba. Em 27 de
fevereiro, uma moradora de rua foi queimada quando dormia embaixo de um
viaduto, no Recife, capital do estado de Pernambuco. Ela sobreviveu. Em 17 de
março, José Augusto Cordeiro da Silva, 27 anos, acordou já em chamas embaixo de
uma marquise na cidade de Arapiraca, no estado de Alagoas. Morreu no hospital.
Em 1 de abril, um homem aparentando 30 e poucos anos morreu carbonizado próximo
à escada rolante de uma estação de trem em Santo André, no ABC Paulista. O caso
foi registrado como “morte suspeita”. Em 3 de abril, Roberto Pedro da Silva, 46
anos, foi incendiado quando dormia numa obra abandonada em Três Lagoas, em Mato
Grosso do Sul. Um homem teria jogado combustível e ateado fogo em seu corpo. Em
7 de abril, um morador de rua aparentando 30 anos foi agredido a pedradas e
incendiado no interior de um ginásio de esportes em Águas Lindas de Goiás, no entorno
do Distrito Federal.
Se fôssemos gente decente de um país decente, pararíamos
exigindo o fim da barbárie.
Em 4 de abril, policiais militares mataram 11 dos 25
suspeitos de assaltar bancos no município de Guararema, na Grande São Paulo. O
governador do estado, João Doria (PSDB), afirmou que vai condecorá-los. Até bem
pouco tempo atrás, um governador não ousaria dar medalhas a policiais que
assassinaram suspeitos. Em nenhum país democrático do mundo matar suspeitos é
considerado um bom desempenho policial. Pelo contrário.
Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos
diante da barbárie representada pelo massacre dos mais frágeis
No Brasil, que oficialmente não tem pena de morte, o
governador do maior estado do país elogia e premia a execução de suspeitos por
agentes da lei. Em março, a polícia paulista matou 64 pessoas. Bem mais do que
em 2018, no mesmo mês, quando houve 43 homicídios por parte de policiais, o que
já era uma enormidade. Autorizada pelas autoridades, a polícia brasileira,
conhecida por ser uma das que mais mata no mundo, mostra que neste ano já
começou a matar mais.
Se fôssemos um país decente de gente decente, pararíamos
diante da barbárie cometida por agentes da lei com autorização e estímulo de
autoridades que não foram eleitas para promover a quebra do Estado de Direito.
No último domingo, 7 de abril, militares dispararam 80 tiros
– OITENTA – contra o carro de Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, um músico negro
que levava a sua família a um chá de bebê em Guadalupe, na zona norte do Rio de
Janeiro. Ele morreu fuzilado. Seu filho de 7 anos viu o pai sangrar e soldados
do Exército de seu país rirem do desespero da mãe. Graças a uma lei sancionada
por Michel Temer, em 2017, os militares que atacaram uma família civil serão
julgados não pela justiça comum, mas pela militar, que comprovadamente é
corporativa e conivente com os crimes.
Se fôssemos um país decente de gente decente pararíamos
diante da barbárie e exigiríamos justiça.
3) A Resistência
O Brasil se espanta muito menos do que há bem pouco tempo
atrás com o cotidiano de exceção. É justamente assim que o totalitarismo se
instala. Pelas frestas do que se chama normalidade. Pelas mentes no senso comum
e nas horas do dia. Depois, é só oficializar. O Brasil já vive sob o horror da
exceção. A falsificação da realidade, a corrupção das palavras e a perversão
dos conceitos são parte da violência que se instalou no Brasil. São parte do
método. Essa violência subjetiva tem resultados bem objetivos – e multiplica,
como os números já começam a apontar, a violência contra os corpos. Não
quaisquer corpos, mas os corpos dos mais frágeis.
É urgente se unir para resgatar o que resta de democracia no
Brasil antes que o autoritarismo se instale por completo
O desafio – urgente, porque já não há mais tempo – é
resgatar o que resta de democracia no Brasil. É pela pressão popular que as
instituições podem se fortalecer ao serem lembradas que não servem aos donos do
poder nem aos interesses de seus membros, mas à sociedade e à Constituição. É
pela pressão por outros diálogos e outras ideias e outras realidades que ainda
respiram no país que a imprensa pode abrir espaço para o pluralismo real. É
pela pressão por justiça e pelo levante contra a barbárie que podemos salvar
nossa própria alma adoecida pelos dias.
O resgate da democracia pelo que ainda resta dela, aqui e
ali, não será tarefa de outros. Como já escrevi antes, só há nós mesmos. Nós,
os que resistimos a entregar o Brasil para os perversos que hoje o governam – e
o governam também pelo controle dos espasmos diários que impõem aos
brasileiros.
Eu gostaria de dizer: “Acordem!”. Mas não é que os
brasileiros estejam dormindo. Parece mais uma paralisia, a paralisia do refém,
daquele que vive o horror de estar entregue ao controle do perverso. Não é mais
desespero, é pavor. Precisamos encontrar caminhos para romper o controle, sair
do jugo dos perversos, tirar a pauta dos dias de suas mãos.
Como?
Essa resposta ninguém vai construir sozinho. A minha é que
precisamos criar o “comum”. O que aqui chamo de comum é o que nos mantêm
amalgamados, o que permite que, ao conversarmos, partimos do consenso de que a
cadeira é cadeira e a laranja é laranja e que nenhum de nós dois sente na
laranja e coma a cadeira (leia aqui). Os perversos corromperam a palavra – e
têm repetido que a cadeira é laranja. Só por isso podem dizer que o Brasil está
ameaçado pelo “comunismo” ou que o nazismo é de “esquerda” ou que o aquecimentoglobal é um “complô marxista”. Essas três afirmações, apenas como exemplo, não
têm lastro na realidade. É o mesmo que dizer que laranja é cadeira. Apenas que
menos gente tem clareza do que foi o nazismo e do que é o comunismo e do que é
o aquecimento global, tornando mais fácil embrulhar as coisas.
Precisamos voltar a encarnar as palavras ou enlouqueceremos
todos
Eles repetem e repetem, assim como tantas outras corrupções
da realidade, porque corromperam o voto que receberam ao usar a estrutura do
Estado para produzir mentiras. É assim que os perversos enlouquecem uma
população inteira – e a submetem: dizendo que laranja é cadeira dia após dia.
As palavras deixam de significar, a linguagem é rompida e corrompida e a
conversa se torna impossível. Como você vai falar com alguém sobre laranjas se
o outro acha que laranja é cadeira? É isso que hoje acontece no Brasil, e este
ataque é desferido diariamente pelas redes sociais dominadas pelo bolsonarismo.
Precisamos voltar a encarnar as palavras. Ou enlouqueceremos
todos. A criação do comum começa pela linguagem (Escrevi sobre isso aqui e aqui). Precisamos também criar comunidade. Não comunidade de internautas que
ficam gritando cada um atrás da sua tela. Mas comunidade real, que exige
presença, exige corpo, exige debate, exige negociação, exige compartilhamento
real. Não há nada que os regimes de exceção temam mais do que pessoas que se
juntam para fazer coisas juntas. É por isso que Bolsonaro tanto critica o
ativismo e os ativistas – e já deu vários passos na direção da criminalização
do ativismo e dos ativistas.
O ativista é aquele que deixa o conforto do seu umbigo e do
seu entorno protegido para exercer a solidariedade. Governos como o de
Bolsonaro agem para que cada um veja o outro como inimigo, e por isso temem o
ativismo. Os bolsonaristas se alimentam da guerra porque a guerra separa as
pessoas e faz com que elas não tenham tempo para criar futuro. A solidariedade
é um gesto temido pelos autoritários. Por que você não está em casa lustrando o
seu umbigo, é o que gostariam de perguntar? Ao corromper as palavras, é também
esse o objetivo. Condenar cada um à prisão do seu silêncio (ou do seu eco),
incapaz de alcançar o outro pela falta de uma linguagem comum.
O governo quer que você fique em casa lustrando o seu
umbigo. Levante-se!
Assim, tentam eliminar a solidariedade à bala. Ou exilá-la.
Mandá-la para fora do país que privatizaram para si. Bolsonaro disse isso com
todas as letras. É o que tem feito com os movimentos sociais e suas lideranças.
É também por isso que é necessário uma polícia com autorização para matar, como
quer Bolsonaro, e como obedece Sergio Moro.
A polícia, cada vez mais, se torna também ela uma milícia
privada dos donos do poder. Deixa de exercer seu dever constitucional de
proteger a população para exercer a guerra contra a população. Durante a intervençãofederal no Rio, policiais civis e militares mataram 1.543 pessoas. Em 2018, um
em cada quatro homicídios no Rio de Janeiro foi cometido por um policial – e
isso segundo os registros das próprias polícias. Ninguém tem qualquer dúvida
que a maioria dos mortos é negra – e é pobre.
Quando vai para as ruas nos protestos, o que a polícia
reprime não é o que chama de “baderneiros” ou “vândalos”, mas a solidariedade.
Ao bater nos corpos, sufocá-los com bombas de gás lacrimogêneo, o que querem é
controlar os corpos, castigá-los porque em vez de ficarem trancados em casa
coçando a barriga foram às ruas lutar pelo coletivo. Como assim você luta pelo
outro e não apenas por si mesmo? Como você ousa ser solidário se a regra do
neoliberalismo é cuidar apenas de si e dos seus?
Resistir ao medo e se juntar para criar futuro é o ato
primeiro de resistência. Se nos encarcerarmos em casa, como o governo quer,
armados também, como o governo quer, atirando uns nos outros, como o governo
quer, a guerra continuará sendo ampliada, porque só assim os perversos nos
mantêm sob controle e se mantêm no poder. Se contarmos apenas como um não
podemos nada. Temos que ser um+ um+ um. E então poderemos muito.
A arte é também um instrumento poderoso. Não foi por outro
motivo que ela foi tachada de “pornográfica” e “pedófila” pelas milícias da
internet nos últimos anos. Não é por outro motivo que o bolsonarismo investe
contra a lei Rouanet e desmonta os mecanismos culturais. A arte não é firula.
Ela tira as pessoas do lugar. Ela faz pensar. Ela questiona o poder. E ela
junta os diferentes.
Precisamos fazer arte. Mais uma vez, vou indicar aqui o
livro da Pussy Riot Nadya Tolokonikova (Pussy Riot, um guia punk para o
ativismo político, Ubu Editora, 2019). A arte é um ato ao alcance de todos nós.
O maior golpe contra o Governo do déspota Vladimir Putin veio de um bando de
garotas que não sabe nem cantar nem tocar direito, mas fazem arte tocando e
cantando o ridículo dos perversos.
Rir. Precisamos rir. Rir junto com o outro, não rir do desespero
do outro. É o perverso que gosta de rir sozinho, é o perverso que goza da dor
do outro, como faz Bolsonaro, como riram os soldados que deram 80 tiros no
carro da família que ia para um chá de bebê. O deles não é riso, é esgar. Já o
riso junto com o outro tem uma enorme potência.
Vamos rir juntos dos perversos que nos governam e começar a
imaginar um futuro onde queremos viver
Vamos rir juntos dos perversos que nos governam. Vamos
responder ao seu ódio com riso. Vamos responder à tentativa de controle dos
nossos corpos exercendo a autonomia com os nossos corpos. Vamos libertar as
palavras fazendo poesia. Como escrevi tantas vezes aqui: vamos rir por
desaforo. E amar livremente.
Rir despudoradamente diante de suas metralhadoras de
perdigotos. O ódio não é para nós, o ódio é para os fracos. Vamos afrontá-los
denunciando o ridículo do que são. Vamos praticar a desobediência às regras que
não criamos. Temos que desobedecer a esse desgoverno. É assim que se quebra o
jugo dos perversos. Levando-os suficientemente a sério para não levá-los a
sério.
E temos que começar a imaginar o futuro. É assim que o
futuro começa, sendo imaginado. Ninguém consegue viver num presente sem futuro.
Mas é impossível controlar quem é capaz de imaginar depois que já começou a
imaginar. A imaginação é a melhor companheira do riso.
Sim, ninguém solta a mão de ninguém. Mas não vamos ficar
segurando as mãos uns dos outros paralisados e em pânico. Vamos rir e criar
futuro. Juntos. Lembrem-se que “a alegria é a prova dos nove”. Nos cem dias que
já dura o domínio oficial dos perversos, foi o Carnaval quem mais desafiou o
exercício autoritário do poder. Pela alegria, pela sátira, pelo riso, pelos
corpos nas ruas.
Não há lei que nos obrigue a obedecer a um Governo de
perversos. Desobedeçam aos senhores do ódio. Os próximos cem dias – e todos os
outros que virão – precisam voltar a nos pertencer.