Povos indígenas apresentam neste mês ao TPI nova denúncia contra presidente que inclui ecocídio, crime recentemente tipificado. Ofensiva soma-se à pedido apresentado em 2019 que está sob análise da Procuradoria do tribunal. Nunca antes uma acusação contra um mandatário brasileiro tinha chegado a essa fase
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
apresentará em julho uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro por
genocídio e ecocídio perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). “A
APIB reuniu e analisou todos os atos praticados por Bolsonaro contra os povos
originários desde o início de seu Governo e consideramos que existem elementos
concretos para deflagrar uma investigação por parte do TPI”, afirma ao EL PAÍS
Luiz Eloy Terena, advogado e coordenador jurídico da APIB. Na última
quarta-feira, 23 de junho, uma comissão internacional de 12 juristas
impulsionados pela sociedade civil tipificou o ecocídio como um crime
contra o conjunto da humanidade, mas sobretudo contra o planeta e
pretende incorporá-lo ao TPI.
Terena argumenta que Bolsonaro descumpre a Constituição de
1988, que garante a proteção dessas comunidades e o direito aos seus
territórios. “Ele não só inviabiliza a demarcação de nossas terras como também
a proteção das comunidades com áreas já garantidas por lei, ao incentivar
a presença de grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais.”
O especialista acrescenta que o direito ao território e a política de proteção
ambiental são aspectos fundamentais para formalizar a denúncia por ecocídio, um crime no qual o Brasil se
enquadra, segundo ele: “Não há como falar de proteção aos povos indígenas sem
garantir o território. É isso que inviabiliza a sobrevivência física e cultural
dos nossos povos. E não são apenas os indígenas os sujeitos de direito, mas os
rios, os lagos, a fauna e a flora de nossos territórios e, na nossa cosmovisão,
até os espíritos encantados que habitam esses espaços”, explica.
A denúncia da APIB se somará a outra feita em 2019 pelo
Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) e pela Comissão Arns, formada
por ex-ministros de vários governos e intelectuais brasileiros para atuar em
defesa dos direitos humanos, que relataram à instituição estabelecida em Haia,
nos Países Baixos, indícios de crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas praticados por
Bolsonaro. Na ocasião, o avanço do desmatamento e os incêndios na Amazônia foram centrais para a elaboração
do caso. Em dezembro de 2020, a Procuradoria do TPI informou que essa denúncia
está formalmente sob avaliação preliminar de jurisdição, sendo a primeira vez
que um caso desse tipo contra um presidente brasileiro avança no órgão e não é
arquivada. “O cenário atual já é histórico e inédito. Na hipótese de a
investigação ser aberta, seria uma revolução, porque não estamos falando de
responsabilidade do Estado, mas da responsabilização de indivíduos, que podem
sofrer condenação pela prática desses crimes”, comenta Eloísa Machado, advogada
do CADHu.
O TPI permite que denúncias já apresentadas sejam
atualizadas ao longo do processo, e é isso que o CADHu e a Comissão Arns
pretendem fazer, anexando fatos referentes à “negligência na gestão da pandemia
de covid-19″, doença que ameaça até os indígenas isolados, e
os recentes ataques de garimpeiros a comunidades dos povos
Yanomami e Munduruku, que, segundo ambas entidades, são apoiados pelo
Governo Federal. “É juridicamente confortável falar em crimes contra a
humanidade e genocídio da comunidade indígena quando temos esse cenário”,
ressalta Eloísa Machado. De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena
do Ministério da Saúde, 728 indígenas faleceram por covid-19, sem considerar os
casos e óbitos entre os indígenas que vivem em zonas urbanas. Já a APIB
registra 1.126 óbitos entre os povos originários.
Ainda que o processo continue avançando e que Bolsonaro
tenha um julgamento e venha a ser condenado por crimes previstos no Estatuto de
Roma (que institui a Corte Internacional de Justiça), isso dificilmente seria
concluído durante o exercício de seu mandato na Presidência: pelo histórico do
TPI, a responsabilização de chefes ou ex-chefes de Estado nessa jurisdição
costuma demorar cerca de uma década. Prisão por até 30 anos, o confisco de bens
e reparações, como pedidos de desculpa e indenizações estão entre as possíveis
penas na hipótese de condenação.
Em julho do ano passado, uma coalizão de mais de 60
sindicatos e movimentos sociais ―a maioria deles de profissionais de saúde, sob
a liderança da Rede Sindical UniSaúde― levou outra denúncia ao Tribunal de Haia, pedindo a
condenação do presidente brasileiro por genocídio.
Para além do TPI, as denúncias contra Jair Bolsonaro ganham, cada vez mais, a atenção da comunidade internacional. Alice Wairimu Nderitu, assessora do secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas) para a prevenção de genocídio, citou o Brasil pela primeira vez ao falar do assunto na segunda-feira, em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da organização, em Genebra. “Na região das Américas, estou particularmente preocupada com a situação dos povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, peço aos governos que protejam as comunidades em risco e garantam a responsabilização pelos crimes cometidos”, disse Nderitu. Essa foi a primeira vez que o país foi citado na ONU atrelando-o a genocídio.
“Nunca vivemos uma situação como esta, de chegar ao triste ponto de precisar denunciar um presidente brasileiro à Justiça internacional. Sabemos que o processo no TPI é longo, mas nosso objetivo justamente era trazer o olhar da comunidade internacional para o que está acontecendo aqui”, comenta Juliana Vieira dos Santos, advogada da Comissão Arns. Ela acredita que o Governo Bolsonaro sistematizou uma “política anti-indigenista” no país.
Jurisdição
Denúncias como as apresentadas contra Bolsonaro podem ser levadas à Justiça internacional quando se considera que as autoridades jurídicas do próprio país não têm capacidade de apurar ou julgar tais irregularidades. Para o TPI, as organizações denunciantes alegaram que “não há sinalização de responsabilização por parte dos tribunais nacionais”. A advogada Juliana Vieira dos Santos, no entanto, é mais enfática: “Acionar a jurisdição internacional porque as autoridades competentes no país não quiseram fazer seu papel. O próprio Supremo [Tribunal Federal] não tem conseguido proteger as populações indígenas, porque se tem toda a máquina do Executivo se movimentando contra elas.”
Santos lembra que qualquer denúncia contra um presidente da República deve ser encaminhada pela Procuradoria Geral da República —atualmente nas mãos de Augusto Aras, alinhado com Bolsonaro. “Há essa armadilha do presidencialismo de coalizão que contamina outras instituições. É por isso que o Congresso não consegue abrir um processo de impeachment, por exemplo”, continua a advogada.
É por isso que ela e outros denunciantes consideram que o TPI tem um desafio à frente caso decida levar adiante o caso de genocídio contra Bolsonaro: terá que voltar seu olhar para um país de renda média, com uma Constituição em vigor e sem um conflito deflagrado, quando está acostumado a investigar situações em países pobres e em guerra ou sob regimes ditatoriais. “O TPI é acusado de ser seletivo e de não investigar países grandes ou poderosos, mas essa é uma oportunidade de mostrar que não é assim”, diz Eloísa Machado. Como precedente, ela cita a decisão em 2020 de investigar a atuação de tropas dos Estados Unidos no Afeganistão. “No caso do Brasil, o ataque sistemático aos povos indígenas tem chamado a atenção”, conclui ela, esperançosa.
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Fonte: EL PAÍS Brasil
Rede TVT
Os povos indígenas protestaram em frente ao STF contra o
chamado "Marco Temporal" para demarcações, defendido por
ruralistas. O grupo cantou e tocou
canções tradicionais e fez um apelo aos ministros do STF.
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"Estamos aqui mais uma vez fazendo esse chamado para o ‘agosto indígena’. Voltaremos para para lutar contra esses retrocessos... que tramitam no âmbito dos três poderes da União”. Sonia Guajajara coordenadora da Apib. Saiba mais:https://t.co/Y10mMiTFF1 pic.twitter.com/9C5zixn014
— Apib Oficial (@ApibOficial) July 1, 2021