O artigo discute a complexa situação econômica do estado do
Rio Grande do Sul (RS), destacando a interação entre a dívida pública, a gestão
fiscal e os impactos da recente tragédia ambiental.
Auditoria Cidadã da Dívida
José Menezes Gomes[1] e Osvaldo Coggiola[2]
O governo federal anunciou a suspensão do pagamento do
serviço da dívida do Rio Grande do Sul com a União por um período de três anos.
De acordo com o governo, os fundos não usados para o pagamento deverão compor
um fundo a ser utilizado para a reconstrução pós-enchentes. A suspensão seguiu
para análise do Congresso. O Rio Grande do Sul já faz parte do Regime de
Recuperação Fiscal (RRF), criado em 2017 para ajudar os estados com níveis
altos de endividamento em relação às receitas. A adesão ao RRF dependia de
manifestação de interesse do estado e de homologação pelo governo federal. Em
troca, os governos estaduais devem aprovar um plano de recuperação, adotando
algumas medidas para o equilíbrio fiscal, como a implementação de um teto de
gastos. Segundo o Ministério da Fazenda, a dívida do RS com a União somava R$
95,7 bilhões. Segundo o governo estadual, a dívida cresceu por conta da fórmula
adotada pela União para corrigir os valores devidos, um pleito óbvio em sua
legitimidade. Em 2024, até o momento, foram pagos aproximadamente R$ 1,2
bilhões pelo RS. A estimativa era de um pagamento total de R$ 3 bilhões neste
ano – pagamento suspenso pela medida anunciada.
A dívida interna do Rio Grande do Sul remonta à década de
1990, quando o débito somava R$ 7,7 bilhões (ou seja, houve um incremento da
dívida de quase R$ 90 bilhões em duas décadas, em valores nominais – sem
atualização). Também foram liberadas linhas de crédito de R$ 2,5 bilhões no
âmbito do Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na
Atividade Bancária (Proes), criado em 1996. A iniciativa do governo federal
visa evitar gastos de R$ 11 bilhões (correspondentes ao somatório de 36
parcelas da dívida) e mais R$ 12 bilhões com os juros da dívida, durante um período
de três anos. Se trata de suspensão do pagamento por esse período, já que esse
valor não pago terá de ser desembolsado: a medida apenas suspende
temporariamente os pagamentos. Com isso, apenas se prolonga o drama, pois RS
terá que pagar o atrasado, o que poderá levar ao seu colapso fiscal,
considerando que o estado terá uma grande redução de sua atividade econômica,
como fruto da atual tragédia, que resultará na redução de suas receitas, já que
não pode elevar a carga tributária.
Se trata de um problema geral, agravado pela enchente. No
Brasil, mesmo com a criação Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, de 4 de maio
de 2000, que estabelecia limite de gastos sociais da União, estados, Distrito
Federal e municípios, a dívida pública continuou a crescer. Conforme Arildo B.
Oliveira, presidente em exercício da Federação das Indústrias do Estado do Rio
Grande do Sul (FIERGS), 90% do PIB industrial do RS está alagado, embaixo da
água. Haverá, portanto, uma queda da atividade econômica que levará a uma queda
da arrecadação ainda maior. Todavia, o quadro fiscal do RS se torna mais
delicado quando constatamos que o estado já se encontrava sob o RRF, regime
aplicado para “ajudar” os estados com elevados níveis de endividamento em
relação às suas receitas, sem tocar nas causas da crise fiscal. Os estados que
aderiram ao RRF são: Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Goiás.
De acordo com o governo, os estados devem cerca de R$ 740 bilhões. A maior
parte está concentrada em SP, RJ, RS e MG. O RRF é um plano de recuperação
financeira, com medidas de austeridade visando o equilíbrio fiscal,
introduzindo um teto de gastos, previdência complementar e privatizações. Com o
programa, a dívida contraída pelos estados junto à União é parcelada e paga de
forma escalonada. O plano do RS prevê parcelamento até 2030, quando o estado
deveria, segundo se diz, ter condições de quitar os débitos. Na essência temos
uma nova dimensão de teto de gastos, já que o limite dos gastos foi exigência
nas várias etapas de renegociação, seja em 1997, quando a dívida foi
federalizada pela Lei 9496/97 e rolada por 30 anos, ou pela Lei Complementar
156, que em 2016 rolou essa dívida por mais 20 anos.
A dívida pública do Rio Grande do Sul segue a mesma
trajetória daquela dos demais estados brasileiros. Replicou a política do Banco
Mundial de combate à pobreza, justamente depois de tê-la incentivado através de
medidas que geraram amplificação das desigualdades regionais e sociais. A
dívida atual teve sua origem no endividamento externo, especialmente depois do
golpe cívico militar de 1964. Esse endividamento, conforme o Banco Central,
teve início em 1952; se encerrou em 2000 (consideramos o período de 1948 a
2003) e teve várias fases. No primeiro momento foi baseado, como dito, em
empréstimos externos; só no final dos anos 1980 teve início o processo de
internalização da dívida estadual. A partir de 1997, com a Lei 9496/97, a
dívida foi federalizada. Seus empréstimos ocorreram na área de eletrificação,
usinas térmicas, telecomunicações, portos, contenção de enchentes, sistema
rodoviário, companhia estatal de energia, refinanciamento da dívida externa,
constituição do SIVAM, combate à pobreza e ao êxodo rural. Essa dívida foi
marcada por profunda ilegitimidade, como demonstrou a CPI da dívida pública de
2009 a 2010. Em boa parte, esses empréstimos serviram para a implantação de
infraestrutura necessária para a acumulação de capital, processo que tentava
legitimar governos apoiadores da ditadura militar.
Como se tratava de empréstimos, principalmente, junto ao
“euromercado” de moedas, que praticavam juros flutuantes, essas dívidas
explodiram quando os EUA elevaram a taxa de juros de 5% para 20%, em 1979, em
momentos em que se tentava estabilizar a moeda estadunidense e revalorizar o
dólar. Tal iniciativa exigiu, naquele momento, ajuste fiscal para pagar um
volume maior de juros, o que acabou contribuindo para a crise financeira dos
estados no Brasil, o que acabou levando ao surgimento da Lei 9496/97 que
federalizou as dívidas dos estados. No gráfico abaixo podemos ver a trajetória
da dívida do Rio Grande do Sul:
Auditoria Cidadã da Dívida
O crescimento da dívida dos países tomadores tornou-se ainda
mais acelerado a partir de 1994, com a política de juros altos usada para
garantir a estabilidade do Plano Real. A crise mexicana de 1995, a asiática de
1997 e a russa de 1998, acabaram levando a uma elevação da taxa básica de juros
no Brasil. O elemento mais marcante da elevação da dívida dos estados
brasileiros foram as regras impostas a cada um para rolar essa dívida por 30
anos. No caso do RS (e da maioria dos estados) a União cobrou uma taxa de 7,5%
ao ano mais IGP – DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna) e a
obrigação de pagar 13% da receita corrente líquida todo ano. A União adotou a
prática de cobrança de juros sobre juros entre entes estatais, chamada de
anatocismo. Esse mecanismo acabou por acelerar ainda mais o crescimento da
dívida. Depois de vinte anos, já tendo pago três vezes o volume inicial de
empréstimos, o RS ainda devia quase quatro vezes esse volume. Parte
considerável dessa dívida pública tem sua origem na dívida do Banrisul, via
Proes, assumida pelo governo estadual quando este converteu dívidas privadas do
empresariado gaúcho junto a esse banco em dívida pública. Em 2016, quando
ocorreu nova renegociação da dívida via Lei Complementar 156, a dívida vinda do
Proes – Banrisul era de R$ 11 bilhões. Dívida pública originada na conversão de
dívida privada contraída pelas empresas, não honrada por estas, é mecanismo
ilegal.
Vale lembrar que os estados tiveram a possibilidade de
redução do saldo devedor junto à União: a Súmula 121 do STF declarava ilegal a
dívida ou saldo devedor que resultasse da pratica de anatocismo. Onze
estados ganharam liminar junto ao STF com base na súmula, o que poderia reduzir
drasticamente a dívida ou, em alguns casos, até transformar o estado em credor
junto à União, se fosse retirada a forma ilegal de cobrança de juros do cálculo
do saldo devedor. Entretanto, os governadores preferiram renegociar como o
governo federal uma nova rolagem da dívida e redução de índices. Com isso,
surgiu a Lei Complementar 148, seguida da Lei Complementar 156, que rolou a dívida
por mais 20 anos, ao mesmo tempo que permitiu uma nova etapa de endividamento,
externo ou interno, dos estados, desde que privatizassem as empresas estatais
que restavam e se implementassem políticas de teto de gastos. Em outras
palavras, o governo federal rolou a dívida dos estados por 30 anos; 20 anos
depois os estados se declaravam em calamidade fiscal e abriram mão de fazer
cumprir a Súmula 121, o que levou o Rio Grande do Sul ao Regime de Recuperação
Fiscal, que antecedeu à tragédia; antes dela, o estado já estava hiper
endividado.
Outro fator de grande repercussão sobre a situação dos
estados resultou das crescentes renúncias fiscais dentro da guerra entre os
estados para atrair empresas. Essas renúncias, mais a Lei Kandir, originaram
uma grande perda de arrecadação, que comprometeu as despesas de cada ente
estatal. A Lei, de 1996, que dispõe sobre o imposto dos estados nas operações
relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS), isenta do ICMS os
produtos primários e semielaborados destinados à exportação. No Rio Grande do
Sul em particular, a Lei teve um efeito devastador, já que os estados
exportadores foram penalizados pela desoneração não compensada pela União. As
perdas do RS por ação dessa Lei chegaram a R$ 38 bilhões em 2023, valor que
representa quase um terço da dívida atual. Os estados querem flexibilizar
algumas determinações do RRF, como o teto de gastos, devido à perda de
arrecadação em 2022, por conta da limitação das alíquotas de ICMS sobre alguns
produtos, como energia elétrica e combustíveis. A outra demanda dos estados é a
mudança nos contratos da dívida, uma redução dos juros do patamar atual —
inflação + 4% — para um valor fixo de 3%.
Em outras palavras, o modelo de desenvolvimento em vigor no
país, em grande destaque no RS, priorizando a exportação, é a base fundamental
de perdas dos estados e compromete suas receitas, o que acaba levando ao um
cenário que conduz ao Regime de Recuperação Fiscal. Nos 28 anos de vigência da
Lei Kandir temos um dos principais motivos da crise fiscal. Por outro lado, o
agronegócio, que recebe todas atenções das três esferas do poder público, é o
grande responsável pela queda na arrecadação do Estado e o principal
responsável pelas mudanças climáticas que estão no centro da atual tragédia das
enchentes, que foi antecedida por uma grande seca na região.
Auditoria Cidadã da Dívida
O gráfico acima evidencia que o quadro se servidores do RS
teve uma grande redução entre 1991 e 2017 e não pode ser responsabilizado pelo
aumento das despesas do Estado. A redução de servidores é um obstáculo para o
bom funcionamento dos serviços públicos, fundamentais num momento de
calamidade. Os problemas do RS, em síntese, são: elevada dívida pública junto
ao União, grande renúncia fiscal, produto da guerra fiscal ou da Lei Kandir,
desmonte da máquina pública com intenso processo de privatização. O RS foi um
grande laboratório de políticas neoliberais e antissociais, com uma bancada
parlamentar na sua maioria alinhada no bloco BBBB (boi, bíblia, bala e bancos),
sempre atuante nas pautas políticas mais conservadoras. A realização de uma
auditoria cidadã da dívida do RS é tarefa fundamental para revelar o caráter ilegal
e de classe dessas dividas, demonstrando que foram contraídas para impulsionar
a acumulação privada de capital, inviabilizando políticas sociais, prevenção
dos desastres ambientais e atenção à população danificada quando eles
acontecem. O vínculo entre a dinâmica predadora e espoliadora do capital, as
mudanças climáticas e os desastres ambientais foi e continua sendo analisado e
demonstrado por muitos pesquisadores. Falta evidenciar o efeito das catástrofes
climáticas na crise e decomposição do capitalismo, das quais o “sistema da
dívida” é prova mor, que conduzem a tragédias sociais e humanitárias, como no
RS, fazendo dessa evidência programa e bandeira de luta do movimento dos
trabalhadores. Suspensão dos pagamentos e auditoria das dívidas: essa é a bandeira.
[1] Professor de
Economia na Universidade Federal de Alagoas; coordenador do núcleo alagoano
pela auditoria da dívida e membro do Observatório de Políticas Públicas e Lutas
Sociais da UFAL e membro da Rede de Cátedras – RICDP.
[2] Professor
Titular do Departamento de História (FFLCH) da Universidade de São Paulo.
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Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
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