Oficialmente, o Brasil ultrapassou nesta quarta-feira (24/3) a marca trágica de 300 mil mortos por covid-19 durante a pandemia. Mas registros hospitalares brasileiros apontam que o número de pessoas que morreram em decorrência de casos confirmados ou suspeitos da doença no país pode já ter passado de 410 mil.
Essa estimativa aparece em duas análises distintas, uma liderada por Leonardo Bastos, estatístico e pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e outra pelo engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
Ambas se baseiam em dados oficiais de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), um quadro de saúde caracterizado por sintomas como febre e falta de ar.
A legislação brasileira estabelece que todo paciente que é
internado no hospital com SRAG precisa obrigatoriamente ter seus dados
notificados ao Ministério da Saúde por meio do Sistema de Informação de
Vigilância Epidemiológica da Gripe (conhecido como Sivep-Gripe). Esse sistema é
utilizado há anos e permite saber quantos casos de infecções respiratórias
necessitaram de hospitalização e evoluíram para óbito no país.
No primeiro semestre de 2019, foram registrados 3.040 óbitos
por síndrome respiratória aguda grave. No mesmo período em 2020, foram
registrados 86.651. Até o momento, de todas as pessoas com SRAG e resultado
laboratorial para algum vírus na pandemia, mais de 99% acabaram diagnosticadas com
covid.
Esses dados são considerados bons indicadores por não
sofrerem tanto com a escassez de testes ou resultados falsos positivos. Mas há
alguns problemas, entre eles o atraso: pode levar bastante tempo até uma
internação ou uma morte ser contabilizada no sistema.
Então, como saber o número atual mais próximo da realidade?
Como os pesquisadores chegaram à estimativa de 410 mil ou 415 mil mortes por
doença respiratória grave?
Projeção do agora
Bem, os cientistas fazem o que se chama de nowcasting, que grosso
modo é uma projeção não do futuro (forecasting), mas do agora. Isso se faz
ainda mais necessário durante a pandemia por causa dessa demora da entrada dos
registros de hospitalizações e mortes no sistema digitalizado.
É como se os dados disponíveis hoje no sistema oficial
formassem um retrato desatualizado e cheio de buracos. Para preencher e
atualizar essa imagem, é preciso calcular, por exemplo, qual é o tamanho desse
atraso, de uma morte de fato à entrada do registro dela no sistema, a fim de "prever"
o que está acontecendo atualmente.
Bastos lidera análises de nowcasting numa parceria que envolve o Mave, grupo da Fiocruz de Métodos Analíticos em Vigilância Epidemiológica, e o Observatório Covid-19 BR, grupo que reúne cientistas de diversas instituições (como Fiocruz, USP, UFMA, UFSC, MIT e Harvard).
Vamos ao fio dessa semana
— Leo Bastos 📈📉 (@leosbastos) March 25, 2021
Estimativas para os totais até 27/3/2021 (corrigidas pelo atraso)
Óbitos por SRAG-COVID: 320.056
Hospitalizacoes por SRAG-COVID: 1.076.700
Óbitos por SRAG: 415.518
Hospitalizacoes por SRAG: 1.701.879 pic.twitter.com/x5tIykcQ2b
"(O nowcasting) corrige os atrasos do sistema de notificação vigente, isto é, adianta-se as notificações oficiais futuras pelo tempo médio entre a ocorrência dos primeiros sintomas no paciente e a hospitalização, quando há o registro dos seus dados no sistema de vigilância. Esse tempo abrange várias etapas: desde procurar um hospital, coletar o exame, o exame ser realizado e o resultado do teste positivo para covid-19 estar disponível para ser incluído no banco de dados. O tempo acumulado entre essas etapas do processo causa atrasos de vários dias entre o número de casos confirmados no Sivep-Gripe (plataforma oficial de vigilância epidemiológica) e os casos ainda não disponíveis no sistema, que são compensados somando aos casos já confirmados uma estimativa de casos que devem ser confirmados no futuro", detalha o Observatório Covid-19 BR.
A dificuldade de monitorar em "tempo real" o que
acontece durante epidemias é global, e diversos cientistas ao redor do mundo
tentam achar soluções para esse problema.
Os cálculos atuais sobre a pandemia no Brasil liderados por
Bastos foram feitos a partir da adaptação de um modelo estatístico proposto em
2019 por ele e mais oito pesquisadores.
Para apontar um retrato atual mais preciso da pandemia, essa
modelagem estatística (hierárquica bayesiana) corrige os atrasos dos dados
incorporando nos cálculos, por exemplo, a partir do conhecimento prévio da
ciência sobre o que costuma acontecer durante o espalhamento de doenças como
gripe. Mais detalhes no artigo disponível neste link aqui.
Para chegar até o número de 415 mil mortes por SRAG, Bastos
explica à BBC News Brasil que são analisados primeiro os dados da semana atual
e da anterior, a fim de identificar quantos casos e óbitos tiveram uma semana
de atraso.
"Assim, aprendemos a respeito do atraso e usamos isso
para 'prever'/corrigir a semana atual e as últimas 15 semanas. O total de 415
mil mortes por SRAG é a soma dos casos observados acumulados até 15 semanas
atrás com as estimativas mais recentes corrigidas."
Em sua análise, Miguel Buelta, professor da USP, aponta um
número parecido.
Ele explica em seu perfil no Twitter que analisou os dados
de óbitos por covid e SRAG até 14 de março e calculou a subnotificação dos
últimos 60 dias a partir dos dados atrasados que foram entrando no sistema no
período. "Fiz o cálculo para 14/01/2021. Subnotificação = 37% naquela
data. Se este valor fosse mantido até hoje, no lugar dos 300 mil óbitos,
poderíamos ter hoje 410 mil."
Mas Buelta acredita que o valor pode ser ainda maior.
"A situação atual é muito mais emergencial. É uma tragédia. Vamos todos
lutar contra isso. Isolamento social e ajuda emergencial. Fora disso não há
solução." Mais detalhes sobre o modelo estatístico usado por ele
aqui neste
link.
1,7 milhão de internados
Na análise liderada por Bastos, da Fiocruz, estima-se que o
Brasil tenha registrado mais de 1,7 milhão de internações durante a pandemia de
coronavírus por causa de doenças respiratórias graves. Na pandemia de H1N1, em
2009, o total foi de 202 mil hospitalizações.
Ao se debruçar sobre os dados, ele aponta ainda uma
tendência de piora na ocupação de hospitais no Distrito Federal e em nove
Estados: Rondônia, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Rio Grande do Norte,
Espírito Santo, Maranhão, Ceará e Minas Gerais.
Todos eles têm mais de 20 hospitalizações por 100 mil
habitantes. Em Rondônia, essa taxa chega a 49, por exemplo.
Por outro lado, Rio Grande do Sul e Santa Catarina parecem
ter conseguido conter a tendência de alta das hospitalizações. Isso, no
entanto, pode significar tanto que a situação melhorou quanto que não tem mais
como o número piorar dada a superlotação dos hospitais. De todo modo, ambos os
Estados ainda estão em um patamar bastante elevado, acima de 20 hospitalizados
por 100 mil habitantes.
"Hospitalizações e óbitos só vão reduzir quando uma boa
parcela das populações prioritárias, segundo o Programa Nacional de Imunização,
forem imunizadas. Antes disso, sem uma redução efetiva da transmissão, veremos
onda depois de onda", afirma Bastos.
TV JC
Covid-19: Infectologista faz apelo a população e desabafa
sobre a situação dos hospitais
Em coletiva de imprensa nesta quinta-feira (25), em que foi
anunciada a extensão da quarentena mais rígida até o próximo dia 31 de março em
Pernambuco, o médico Demetrius Montenegro, chefe do setor de Infectologia do
Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), frisou o quanto tem se preocupado
com a frequência de adultos jovens que chegam aos hospitais com sintomas de
covid-19. Nesta quinta (25) o Estado ultrapassa a marca de 1.800 pessoas que
recebem atualmente assistência em terapia intensiva (UTI). Entre elas, 1.424 estão
em leitos públicos e 418 em vagas privadas.
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