Dilma e Biden em foto de 2015; na época, governo americano se aproximou de países latino-americanos com abertura de documentos históricos sobre violações de direitos humanos
Se havia alguma dúvida de que o presidente brasileiro
Jair Bolsonaro e o presidenciável democrata Joe Biden estão em lados políticos
opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na última semana tratou de
dissipá-las. Na ocasião, Biden, favorito para vencer o pleito de 3 de novembro
pelas atuais pesquisas, criticou a devastação da Amazônia e aventou até sanções
econômicas ao país.
O meio ambiente, no entanto, está longe de ser o único tema
de discordância entre Biden e Bolsonaro. O
ex-vice-presidente americano está no centro de uma das empreitadas pelas quais
o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resistência: a
apuração, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), de crimes e violações cometidos
por agentes públicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
Em 17 de junho de 2014, Biden, o então vice-presidente na
gestão Barack Obama, desembarcou em Brasília com um objeto especial na bagagem:
um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de
1967 e 1977. A partir de informações passadas não só por vítimas, mas por
informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão, os
relatórios americanos detalhavam informações sobre censura, tortura e assassinatos
cometidos pelo regime militar do Brasil.
Até aquele momento, a maior parte dos documentos era
considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou e colaborou com
a ditadura durante boa parte do período em que os militares estiveram no poder.
Biden sabia bem do que se tratava. E sabia também que
produziria impacto real ao passar a mídia para as mãos da então presidente
brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas torturadas nos porões
da ditadura.
É certo que o governo americano poderia ter enviado o
material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos.
Mas a gestão Obama-Biden queria gravar seu nome no ato de
abertura dos documentos, como um manifesto pela transparência e pelos direitos
humanos.
Mais do que isso, queria melhorar relações diplomáticas com
base na troca de informações altamente relevantes para a história de países
como Brasil, Argentina e Chile.
No caso do Brasil, isso era ainda mais estratégico já que a
revelação, meses antes, de que a Agência Nacional de Segurança americana (NSA,
na sigla em inglês) havia espionado conversas da mandatária brasileira abalou o
alicerce das relações entre os dois países.
"Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos
iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comissão
Nacional da Verdade documentos que podem lançar luz sobre essa ditadura de 21
anos, o que é, obviamente, de grande interesse da presidente", afirmou
Biden, sorridente, ao lado de Dilma.
Sem ditadura
A própria definição dada por Biden do regime militar é hoje
refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no país.
"Espero que olhando documentos do nosso passado
possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu Biden.
Cinco anos após esse encontro entre Dilma e Biden, o
presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por completo as revelações
feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por Biden são peça
fundamental.
"A questão de 64 não existem documentos se matou ou não
matou, isso aí é balela, está certo?", disse Bolsonaro.
O presidente respondia à imprensa, que questionava uma
declaração sua dada no dia anterior para atingir o presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra Santa Cruz
que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.
De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, Fernando
Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, foi visto pela última
vez em fevereiro de 1974, quando foi preso no Rio de Janeiro por agentes do
DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser visto. Ele morreu nas mãos dos agentes.
"Comissão da Verdade? Você acredita em Comissão da
Verdade? Você quer documento para isso, meu Deus do céu? Documento é quando
você casa, quando você se divorcia. Eles têm documento dizendo o contrário? Acrescentou
Bolsonaro.
Mas, afinal, o que há nos documentos trazidos por Biden?
Documento enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro
descreve padrão de tortura
"O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela
completamente escura ou refrigerada por várias horas. Na cela há alto-falantes,
que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis. Então, o detido é
interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam que a
pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere. Nesse
ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui
informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental
até confessar."
"Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um
chão metálico, que conduz correntes elétricas. Os choques elétricos, embora
alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente se tornam
insuportáveis. O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas. O resultado é
extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida nesse
tratamento por dois ou três dias. Em todo esse período, ele não recebe comida
nem água."
O texto acima é um trecho de um documento de sete páginas
enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado,
em 1973, e trazido por Biden em sua visita.
A comunicação diplomática informa que 126 pessoas teriam
passado por tratamento parecido ao relatado, além de outras formas de sevícias,
como o "pau de arara". O informe é feito não só com base em
depoimentos de vítimas, mas de informantes militares, cuja identidade aparece
protegida por trechos apagados no documento.
Detalhes
"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre
técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos",
afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação
Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.
Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos
ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime).
Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos
pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que
preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaros e
aqueles que realmente cometeram esses crimes".
Mas nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido
violações aos direitos humanos. Em julho de 2016, em uma entrevista à rádio
Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi torturar e não
matar".
E dois anos mais tarde, em meados de 2018, quando já estava
em pré-campanha presidencial, confrontado com a informação de um relatório da
CIA, aberto em 2015 no escopo do mesmo projeto de desclassificação de Biden,
que o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a execução sumária de
adversários do regime, o atual presidente disse à rádio Super Notícia:
"Errar, até na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum
do filho e depois se arrependeu? Acontece."
Tortura e morte
Um dos outros documentos trazidos por Biden evidencia que a
máquina repressiva da ditadura brasileira não só torturou como matou. Nele, o
cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin, afirma que ouviu o relato
de "um informante e interrogador profissional trabalhando para o Centro de
Inteligência Militar de Osasco", em São Paulo.
Telegrama de 1973 descreve a tortura de um policial e de uma
amiga dele que, inicialmente, se recusou a colaborar
Em um telegrama de maio de 1973, Chapin escreve o seguinte:
"Ele (o informante) explicou como havia quebrado uma célula 'comunista'
envolvendo um agente da polícia civil. O policial foi forçado a falar depois de
ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou sua conexão com uma amiga,
que foi imediatamente detida. Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi
deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem alimentos ou água."
"Isso a quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma
forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios em Osasco. Ele também nos
deu um relato em primeira mão do assassinato de um subversivo suspeito, o que
chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com
uma arma automática."
O termo "costurar" seria referência a um método
para desfigurar o cadáver e evitar sua futura identificação.
Assassinatos cometidos pela repressão
O cônsul Chapin relata ainda que "vários agentes de
segurança nos informaram que suspeitos de terrorismo são mortos como prática
padrão. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na região de São Paulo
no ano passado (1972)".
Ao registrar as mortes em São Paulo, Chapin aponta para a
atuação do coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do
DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos de repressão do país, entre 1970 e
1974. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado civilmente pela
Justiça pelos crimes de tortura. Ele é também considerado um herói e uma
referência por Bolsonaro, que já afirmou ter como livro de cabeceira a obra de
Ustra, A verdade sufocada.
"Sou capitão do Exército, conhecia e era amigo do
coronel, sou amigo da viúva. (...) o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra
recebeu a mais alta comenda do Exército, a Medalha do Pacificador, é um herói
brasileiro", afirmou Bolsonaro em 2016.
Enquanto era deputado, no dia da votação da abertura de
processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, naquele mesmo ano,
Bolsonaro citou o militar em seu voto: "Perderam em 1964, perderam em
2016. (...) Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo
Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e
por Deus acima de todos, o meu voto é sim".
"Só terroristas"
Outro documento da leva de Biden desafia um argumento
central de Bolsonaro sobre o período: o de que o regime militar só prendeu,
torturou e matou "terroristas".
Em dezembro de 2008, quando o Ato Institucional número 5,
instrumento da ditadura que cassou liberdades individuais, completava 40 anos,
o então deputado federal Bolsonaro ocupou o plenário da Câmara para dizer:
"Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram o AI-5 para conter o terror
em nosso País, (...) Mas eu louvo o AI-5 porque, pela segunda vez, colocou um
freio naqueles da esquerda que pegavam em armas, sequestravam, torturavam,
assassinavam e praticavam atos de terror em nosso País".
Serviço diplomático americano no Brasil mandou uma
comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidadão
americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no
DEOPS
Mas em outubro de 1970, o serviço diplomático americano no
Brasil mandou uma comunicação ao Departamento de Estado registrando os relatos
de um cidadão americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um
extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia política paulista.
Horth não era um comunista subversivo e afirmou aos
diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas celas eram
absolutamente inocentes da acusação de subversão política".
Outro documento, de dezembro de 1969, dá força ao
questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repressão ao
informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em
Ribeirão Preto.
"Mais do que trazer novos fatos, os documentos
americanos foram cruciais porque comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte
insuspeita. Estamos, afinal, falando de relatórios da diplomacia dos Estados
Unidos, que não tinham qualquer simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que
apoiavam os militares", afirmou à BBC News Brasil Pedro Dallari, relator
da CNV.
Prova de que o governo americano era, naquele período,
abertamente a favor do regime está em uma comunicação do embaixador americano
William Rountree de julho de 1972. Na carta, ele alerta ao Departamento de Estado
que qualquer tentativa de fazer críticas públicas contra o que qualifica como
"excessos" cometidos contra os direitos humanos poderia
"prejudicar nossas relações gerais".
CNV
Os documentos americanos tornaram-se especialmente
importantes para a CNV diante da negativa das Forças Armadas Brasileiras de
oferecer evidências que corroborassem os depoimentos de vítimas de tortura em
dependências militares.
"Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos
americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas sindicâncias não
localizaram nada", afirma Dallari.
Kornbluh concorda que, enquanto muito da documentação
brasileira do período pode já ter se perdido, os arquivos americanos são fonte
importante para acessar a história brasileira.
"Parte dos militares brasileiros esconderam com sucesso
a maioria de seus próprios documentos e mantiveram isso fora do escrutínio
público. E conseguiram escapar de qualquer tipo de responsabilidade legal por
seus crimes contra os direitos humanos. E então os documentos americanos
fornecem um histórico fidedigno de pelo menos alguns casos. E se as coisas
mudarem no Brasil, essas são evidências de crimes que ainda podem ser
litigados", afirma o especialista, que menciona a lei da Anistia, de 1979,
que impediu a responsabilização criminal de agentes e oposicionistas por crimes
cometidos durante a ditadura.
Em 2014, durante os trabalhos da CNV, o Exército brasileiro
afirmou que não opinaria sobre o reconhecimento do Estado Brasileiro em relação
às torturas, enquanto a Força Aérea e a Marinha disseram não ter provas para
reconhecer, tampouco refutar as acusações de violações de direitos humanos nas
décadas de 60 e 70.
Embaixador escreveu sobre não condenar excessos publicamente
O que o histórico diz sobre relação Brasil-EUA em possível governo Biden?
Para Dallari, apesar de o golpe de 1964 ter recebido o apoio
do governo americano, então sob a batuta do democrata Lyndon Johnson, nas
últimas décadas, os democratas deixaram claro ter interesse em colaborar com
processos de investigação sobre atrocidades cometidas pelos governos na região
e o papel dos Estados Unidos nelas.
"Eu não tenho porque duvidar que Obama e Biden tivessem
real interesse em abrir essas informações. E o primeiro presidente americano a
se opor a violações dos direitos humanos na região foi outro democrata, o
presidente Jimmy Carter", diz ele, em referência ao presidente americano
entre 1977 e 1981.
Na verdade, desde a administração Clinton, nos anos 1990,
documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas têm se tornado públicos.
Mas foi na gestão Obama que essa abertura dos arquivos ganhou tons de política
de relações exteriores, em algo que Kornbluh batizou de "diplomacia da
abertura".
Além do Brasil, Argentina e Chile também receberam acesso a
documentos, em um esforço americano para melhorar sua imagem e seu
relacionamento na região.
E com Biden e Dilma, o especialista afirma que esse tipo de
diplomacia alcançou um de seus pontos mais altos, já que as relações foram
reconectadas depois da visita de Biden em 2014.
"Tenho certeza de que ele foi informado sobre o teor
dos documentos. E é uma tarefa importante a de carregar esses documentos que
descrevem violações graves dos direitos humanos durante a era militar.
Certamente foi uma experiência de aprendizado para o vice-presidente Biden e um
lembrete pungente para ele dos horrores cometidos", diz Kornbluh.
Em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha
de Biden têm dito que o tema dos direitos humanos é central para o candidato,
especialmente na América Latina.
Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a
história da ditadura do Brasil, especialmente de informações dos órgãos de
inteligência como FBI e CIA, é improvável que Biden faça qualquer nova abertura
se vencer as eleições.
Isso porque documentos secretos americanos sobre outros
países só podem se tornar públicos se os governos dessas nações requisitarem
acesso aos americanos. E hoje não há interesse no governo brasileiro por esse
tipo de informação.
"Naquele momento, a abertura foi importante e ajudou os
dois países a se reaproximarem. Agora, em um possível governo Biden, com
Bolsonaro no Brasil, é um contexto completamente diferente. Mas se Bolsonaro
cometer violações de direitos humanos, a administração Biden agiria de modo
muito mais rápido e negativo do que Trump e pressionaria Bolsonaro a
parar", diz Kornbluh.
Trechos de uma entrevista que o Bolsonaro deu no programa "Câmera Aberta", em 1999. Assista ao Vídeo
Opera Mundi
Militante torturada no DOI-Codi de São Paulo, Amelinha Teles conta como mulheres sofriam violência sexual por agentes da repressão e afirma que estupro era política de Estado no regime militar brasileiro
“Eu passei por várias situações. Eu nem gosto muito de falar, porque...eu não sei porque. Eu não gosto muito de falar”. Presa pelo regime militar em 1972, com 28 anos, Amelinha relata em entrevista exclusiva como sofreu violência sexual nas celas do DOI-Codi de São Paulo e garante que estupros eram mais uma das armas utilizadas pela ditadura para torturar as mulheres consideradas inimigas do Estado.
“Eu estava sentada em uma cadeira do dragão, nua, amarrada,
levando choque no corpo inteiro, ânus, vagina. Enquanto isso, o Gaeta, que era
um torturador, estava se masturbando e jogando esperma em cima de mim”, relata
Amelinha. “A hora que eu caio no chão, ele me põe em uma cama de lona que tinha
ali do lado e começa a esfregar meus seios, apertar minha bunda. Isso é uma
violência. E assim foram várias vezes, com vários outros torturadores. Mas
existem os casos de ter penetração vaginal que as mulheres contam. E são muitos
casos, não um ou dois”, completa a militante. Assista ao VÍDEO.
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