Agronegócio e transição ecológica no Brasil
Recentemente, um visitante da floresta amazônica narrou
sua surpresa diante
do animal que mais lhe chamou a atenção: não foi a onça pintada, mas “a branca,
lustrosa e corcovada vaca nelore, de orelhas caídas, a conquistadora última da
fronteira”. Nas últimas duas décadas, a economia brasileira transformou-se na
principal fornecedora de carne bovina do capitalismo global. Na medida em que
isso acontecia, a floresta tropical, que abriga em torno de 10% das espécies
animais do mundo, foi incendiada para dar passagem a milhões de vacas.
Estima-se que, na parte brasileira da Amazônia, há hoje duas vezes mais vacas
do que pessoas: cerca de 63
milhões e 28
milhões, respectivamente.
Em 2003, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva
iniciou seu primeiro mandato, o Brasil era o terceiro maior exportador,
em toneladas, de carne bovina congelada do mundo, representando cerca de 11% do
total. Ao final do seu segundo mandato, em 2010, o Brasil era o primeiro
colocado, responsável por 23% de toda a carne bovina congelada exportada
mundialmente. As exportações cresceram de 317 para 781 mil toneladas. A década
seguinte consolidou a supremacia brasileira no mercado de carne bovina: em
2022, o Brasil era a origem de 32% de toda carne bovina congelada
comercializada internacionalmente, exportando quase o dobro do segundo colocado
no ranking, a Índia. A ascensão do Brasil como curral do mundo esteve
estreitamente ligada à ascensão da China como superpotência econômica: as
importações chinesas de carne bovina congelada dispararam, entre 2002 e 2022,
de onze mil para mais de dois milhões de toneladas.1
A história da soja é ainda mais dramática. A participação
brasileira na exportação global do grão cresceu de cerca de 25% em 2003 para
cerca de 50% a partir de 2018. Uma porção substancial dessa commodity é usada
para produzir ração animal para os rebanhos de outros países. As mudanças
recentes nas relações agroalimentares globais vêm sendo descritas como um
emergente “complexo
soja-carne Brasil-China” por pesquisadores da área. As duas commodities—carne
bovina e soja em grãos—se alastraram pelo interior do Brasil como fogo em campo
aberto, e grande parte de sua produção não observa normas ambientais (cf. a
expansão geográfica das duas atividades nas Figuras 1 e 2). Numa pesquisa de
2020 que compila dados de 815.000 propriedades rurais na Amazônia e no Cerrado,
Raoni Rajão e seus coautores concluíram que “cerca de 20% das exportações de
soja e pelo menos 17% das exportações de carne bovina de ambos os biomas para a
União Europeia devem ter sido contaminadas pelo desmatamento ilegal”. As
proporções podem ser até maiores no caso de exportações para outros destinos
com normas menos estritas.
O caminho que leva aos píncaros luminosos do desenvolvimento
não costuma ser sinalizado pelo crescimento explosivo nas exportações de
commodities. Os preços desses produtos são altamente voláteis, sujeitando as
economias que dependem de sua exportação a trajetórias acidentadas em
detrimento do crescimento de longo prazo. E, de modo crucial, a produção
primária raramente proporciona os encadeamentos produtivos para trás e para
frente que incentivam aumentos de produtividade em toda a economia e promovem
mudanças técnicas cumulativas. Na maioria das vezes, a produção primária é um
enclave com repercussões limitadas em outros ramos industriais e no mercado de
trabalho—e com o potencial de derrubar toda a economia, se a queda dos preços
internacionais levar à desvalorização da moeda e à crise econômica. O colapso
da economia brasileira entre 2014 e 2016 teve múltiplas determinantes, mas
inegavelmente esteve relacionado com a queda nos preços das commodities.
Na era da emergência climática, as desvantagens da
especialização em exportações primárias, para o desenvolvimento, são ainda mais
acentuadas. Como argumentaram pesquisadores
da London School of Economics e da Universidade de Oxford, uma “corrida verde
global está em andamento; quem sair na frente será recompensado e quem ficar
para trás correrá o risco de perder competitividade global”. Além das barreiras
à ascensão na cadeia global de valor, o custo econômico de se tornar o curral
do mundo é agravado pelos impactos ambientais, tanto em termos de emissões de
gás carbônico quanto de perda de biodiversidade. O Brasil é o sétimo maior
emissor de gases de efeito estufa. Mas a composição de suas emissões difere
drasticamente da tendência mundial: enquanto agricultura, silvicultura e
alterações no uso do solo respondem por cerca de 18% das emissões globais, no
Brasil, entre 2000 e 2020, representaram mais de três
quartos. Em termos de emissões, no país, os combustíveis fósseis ficam em
segundo plano, ofuscados pela carne bovina e pela soja. Se os mercados globais
de commodities um dia apoiaram uma agenda interna redistributiva, a atual
dependência arraigada da economia brasileira de uma produção primária baseada
em desmatamento não só a impede de oferecer um padrão de vida decente à maioria
de sua população, mas também contribui para a degradação de seus ecossistemas e
para o aquecimento do planeta.
Esperanças verdes
Recentemente, esse quadro sombrio deu lugar a perspectivas
mais positivas para o Brasil na transição verde global. A ascensão eleitoral de
Lula a um terceiro mandato, depois de quatro anos de um governo de extrema
direita negacionista da mudança climática e que promoveu ativamente o
desmatamento, produziu algum otimismo. Lula tem procurado se posicionar no
cenário mundial como forte apoiador da transição ecológica. Marina Silva—a
líder ambiental que ocupou seu gabinete ministerial entre 2003 e 2008 e renunciou
por discordar dos rumos políticos de seus governos de então—está de volta como
ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Na atual gestão, Marina
logrou reduzir o
desmatamento na Amazônia em quase 40% em 2023. Lustrando ainda mais suas
credenciais de ação climática, em 2025 o Brasil sediará a COP30 na cidade
amazônica de Belém. Ao escrever no Financial Times, em
setembro passado, o ministro da fazenda Fernando Haddad emoldurou
a agenda econômica do governo com a linguagem da transformação verde: “uma
transformação abrangente da nossa economia e sociedade através de infraestrutura
mais verde, agricultura sustentável, reflorestamento, economia circular, e uso
cada vez mais intensivo de tecnologia no processo produtivo e na adaptação
climática”.
A perspectiva alvissareira não se restringe aos círculos
governamentais. No último Relatório
sobre clima e desenvolvimento focado no Brasil, o Banco Mundial
argumentou que a “matriz energética relativamente limpa e renovável” do país,
baseada predominantemente em energia hidrelétrica, proporciona-lhe “uma
vantagem importante para a construção de um setor industrial de baixa emissão”.
Dessa perspectiva, a composição singular das emissões brasileiras não põe em
evidência o destrutivo setor do agronegócio, grande emissor de poluentes do
país, mas o setor energético de baixo carbono. Esse último poderia ser
mobilizado para impulsionar a indústria, dando ao país uma vantagem em relação
aos concorrentes que suprem a produção industrial mediante a queima de carvão
ou gás natural e colocando a descarbonização total da economia mais ao alcance
do Brasil do que de outros lugares. Como afirmou Ricardo
Abramovay, o país pode reduzir pela metade suas emissões “sem transformação
estrutural na economia”, visto que a eliminação do desmatamento pode ser
alcançada “sem qualquer modificação no sistema de transportes, na matriz
energética, nos padrões de consumo, no aquecimento ou na refrigeração dos
imóveis”. Ou, como outros formularam,
o país “poderia atingir de forma bem barata” a meta de emissões para 2030.
A estratégia do governo para aproveitar essa oportunidade
gira em torno do Plano
de Transformação Ecológica, lançado na COP28. De acordo com o Ministério da
Fazenda, o plano representa “um
novo modelo de desenvolvimento econômico, inclusivo e sustentável”. Seus
objetivos são “promover o aumento da produtividade por meio da criação e da
difusão de inovações tecnológicas e da construção de uma infraestrutura
sustentável, aproveitando as características geográficas e ambientais
singulares do país, a ampla disponibilidade de fontes renováveis de energia e a
biodiversidade abundante que o Brasil possui”. Em um comunicado de
maio de 2024, anunciando que “o Plano de Transformação Ecológica já começou”, o
governo lista uma série de ações em fase de implementação que assentam as bases
desse novo modelo de desenvolvimento: títulos verdes, crédito subsidiado,
debêntures e tarifas para fomentar o investimento em descarbonização, reflorestamento
e reindustrialização, a elaboração de uma taxonomia verde interna e avanços nas
negociações com o Congresso visando à aprovação do mercado de carbono—citado por
Haddad em 2023 como o “primeiro marco” da transformação verde.
Outra ação nesse âmbito foi o lançamento do plano Nova
Indústria Brasil, um conjunto de políticas industriais que visam
aproveitar a base econômica atual do país para impulsionar o desenvolvimento.
Três das seis missões escolhidas estão relacionadas com a sustentabilidade
ambiental. Uma delas impacta o agronegócio, com a intenção de promover “cadeias
agroindustriais digitais e sustentáveis para a segurança alimentar, nutricional
e energética”. Entre as metas elencadas, figuram as de fortalecer a
participação do setor agroindustrial no PIB do agronegócio, ampliar a
mecanização da agricultura familiar com equipamentos produzidos internamente e
aumentar a sustentabilidade ambiental da produção agroindustrial. De acordo com
Mariana Mazzucato, que ajudou o governo a elaborar a nova política, “dependendo
de como forem implantadas, essas novas missões podem ajudar a promover
coordenação e colaboração público-privada, intersetorial e interministerial
alinhadas ao Plano de Transformação Ecológica e à agenda de crescimento
sustentável e inclusivo em sentido amplo”. Mazzucato também afirmou que, ao
“colocar a transição ecológica no centro da política econômica, o governo do
Brasil está definindo um curso diferente, capaz de transformar desafios sociais
e ambientais em oportunidades”.
O papel do agronegócio na estratégia de transição verde do
país, no entanto, além de servir como uma das bases para um esforço de
reindustrialização, não foi abordado em detalhes. Um estudo recente
sobre o assunto, que examina as mudanças setoriais mínimas necessárias para que
a economia brasileira cumpra suas promessas de descarbonização, simplesmente
desconsidera as emissões relacionadas a mudanças no uso do solo (especialmente
o desmatamento), com o argumento de que “é sabido que elas resultam de
atividades ilegais”. Essa opção problemática tem consequências comprometedoras:
as mudanças setoriais propostas exigiriam que a produção se distanciasse de
atividades industriais de alto carbono e se voltasse à agricultura, pecuária e
produção de carne, bem como às diferentes indústrias de serviços.
Perversamente, a descarbonização brasileira resultaria da expansão do
agronegócio.
O relatório do Banco Mundial, por outro lado, fornece uma
imagem mais precisa da relação entre agronegócio e transição climática. Ele
argumenta que a recente adoção do Plano ABC+, política setorial do governo
voltada à agricultura de baixo carbono que consiste em “crédito rural a juros
baixos para financiar a implementação de práticas ou tecnologias agrícolas que
provavelmente contribuirão para a mitigação e/ou adaptação às mudanças
climáticas”, poderia contribuir para reduzir o desmatamento sem comprometer a
produção agrícola, desde que fosse reforçada, e não sabotada, pelas demais
políticas de crédito rural. O relatório estima que esse esforço não chegaria a
eliminar as emissões oriundas da agricultura e das mudanças no uso do solo,
podendo, contudo, reduzi-las pela metade até 2030. Além disso, destaca a
existência de obstáculos políticos significativos: “grupos de interesse ligados
à produção agrícola (incluindo alguns pecuaristas e afiliados à indústria
pecuária) têm influência notável nos níveis subnacional e federal”. A força
política desses grupos explica por que os subsídios governamentais e as
políticas de crédito rural proveem “incentivos adicionais para desmatar”.
Em 2021, por exemplo, o orçamento do Plano ABC+ representou
apenas 2% do Plano Safra, a principal política rural que, entre outras coisas,
“apoia a criação de gado nos estados menos desenvolvidos da Amazônia Legal”. Em
2023, o primeiro Plano Safra anunciado pelo atual governo destinou parcela
semelhante do valor total à agricultura de baixo carbono: o RenovAgro,
novo nome do Plano ABC+, recebeu 1,9% do montante final.2 O
governo argumenta, no entanto, que outros aspectos da política também estimulam
a sustentabilidade na agricultura, ajustando a taxa de juros cobrada dos
agricultores, por exemplo, com base em sua conformidade com práticas
sustentáveis.
O poder do agronegócio
Planejar a transição verde no Brasil sem enfrentar os
desafios postos pelo predomínio do agronegócio implica ignorar as tensões entre
a estratégia proposta e o padrão de acumulação que se consolidou nas últimas
duas décadas. Nesse período, o agronegócio se tornou um dos segmentos mais poderosos
da vida política e econômica brasileira. No momento em que suas exportações se
tornaram uma peça crucial do quebra-cabeça do capitalismo global, o agronegócio
brasileiro assumiu uma posição de liderança na economia doméstica,
especialmente por garantir o acesso do país a moeda estrangeira.
Nas últimas duas décadas, a participação da soja em grãos no
total das exportações brasileiras cresceu de menos de 5% para mais de 12%.
Atualmente, todos os bens agrícolas combinados (grãos de soja, diferentes tipos
de carne bovina, cana-de-açúcar e milho, entre outros) são responsáveis por
mais de um terço do total de exportações. Somados aos minerais, especialmente
minérios de ferro e petróleo, representam mais que 70% de todas as exportações.
A partir dos anos 2000, o Brasil consolidou sua integração subordinada na
divisão internacional do trabalho como exportador de commodities primárias. Por
ter se industrializado mais do que seus vizinhos, o Brasil costumava ser um
ponto fora da curva em termos de participação de bens manufaturados no total
das exportações, que somavam 55% durante a década de 1990 e início dos anos
2000, em comparação com, no máximo, um terço do total em países como Argentina,
Colômbia e Uruguai. Nas duas últimas décadas, contudo, a composição das
exportações brasileiras foi se assemelhando cada vez mais à dos demais países
da região: a porcentagem das exportações manufaturadas caiu para 25% do total
desde 2020.3
O papel desempenhado pelo agronegócio também pode ser
identificado nas estatísticas referentes à composição da economia doméstica.
Durante o boom de commodities, o agronegócio cresceu menos do que o restante da
economia. A participação de toda a cadeia do agronegócio (que compreende
produção de insumos, agricultura, pecuária, agroindústria e agrosserviços) no
PIB caiu de cerca de 30% para 21% entre 2003 e 2010.4 À
medida que a margem fiscal criada pelo boom nas exportações foi usada para
adotar políticas redistributivas e expandir o investimento público, o consumo
de massa aumentou e os serviços urbanos ultrapassaram o agronegócio. O período,
no entanto, também foi caracterizado pela consolidação das principais
corporações do setor e de seu crescente poder político. A JBS, por
exemplo, tornou-se uma
das maiores empresas de processamento de carne bovina do mundo, comprando
vários dos seus concorrentes brasileiros, bem como grandes empresas nos Estados
Unidos, com o apoio crucial do BNDES.
Durante seus dois mandatos anteriores, Lula tirou vantagem
da bonança das commodities para implementar políticas de redução da pobreza,
sem afrontar a ascensão do agronegócio. Nas políticas agrícolas, o governo
preservou a dualidade
herdada, mantendo a existência de um ministério dominado pela elite do
agronegócio ao lado de outro focado nas demandas dos movimentos sociais
agrários. A ambiguidade também prevaleceu em relação ao meio ambiente. De um
lado, o governo adotou melhorias significativas na legislação ambiental e na
fiscalização, que levaram a uma redução do
desmatamento por um fator de quatro. De outro lado, muitas vezes
priorizou investimentos que poderiam impulsionar o crescimento de curto prazo,
ignorando implicações ambientais problemáticas. A construção da hidrelétrica de
Belo Monte na bacia amazônica é um desses casos. Belo Monte é um dos maiores
exemplos de megaprojetos que resultaram no deslocamento em massa de comunidades
e causaram perda significativa de biodiversidade, ao mesmo tempo em que
contribui para a matriz energética renovável do país.
As classes dominantes agrárias usaram as oportunidades
abertas pelo boom de commodities para consolidar seu poder. Sem nenhuma
lealdade particular ao governo que supervisionou sua ascensão, algumas
facções do lobby do agronegócio logo pressionariam
por um curso político diferente (e perigoso). Como Rodrigo Nunes argumentou,
quando se opôs à sucessora de Lula, a presidenta Dilma Rousseff, em 2015, o
agronegócio “pareceu ter atingido a maioridade política: não mais se contentou
com meramente defender seus interesses econômicos imediatos e, em vez disso,
buscou impor sua agenda ao país inteiro”. Tornou-se um ator político que liderou o
golpe parlamentar que derrubou Rousseff em 2016, fomentando uma guinada
violenta para a direita na política brasileira e lançando as bases para a
vitória eleitoral do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro, em 2018.
Os resultados foram imediatos: o Estado brasileiro foi
efetivamente transformado em
“comitê executivo” da burguesia agrária, desmantelando normas ambientais,
direitos indígenas e o aparato ministerial e institucional que havia sido
penosamente construído desde a democratização e a aprovação da Constituição
Federal de 1988. Um bloco político reacionário foi estabelecido, amalgamando
capitalistas rurais, a facção militante do cristianismo e o aparato de
segurança (compreendendo diferentes ramos da polícia e das forças armadas): o
infame tripé “boi,
bala e bíblia” que alçou Bolsonaro ao palácio presidencial.
Com esse respaldo político, o agronegócio estava pronto para
vicejar. Durante o governo Bolsonaro, enquanto o resto da economia estagnava, a
cadeia do agronegócio explodiu, crescendo em média 7,8% ao ano entre 2019 e
2022, enquanto o PIB se arrastava a uma taxa média anual de 1,4%. Em
consequência, a partir de 2020, a participação do setor no PIB oscilou em torno
de 25%, recuperando parte do terreno perdido nos anos 2000. Houve dois booms
associados ao fenômeno: o da recuperação das taxas de desmatamento e o do
aumento da desigualdade. O crescimento
da parcela da renda apropriada pelo 0,1% e 0,01% mais ricos entre 2017
e 2022 foi acarretado principalmente pela concentração de renda ocorrida
nos estados em que predomina a produção de carne bovina e soja.
O relacionamento entre a extrema direita e o agronegócio não
foi um caso furtivo. André Singer identificou a formação de “uma coalizão com
bases territoriais, econômicas e sociais”—estendendo-se de seus representantes
em Brasília às elites rurais e aos segmentos cada vez maiores de grupos mais
pobres no interior—e observa que, na eleição presidencial de 2022, Bolsonaro
recebeu mais votos do que Lula “nos 265 municípios dos nove estados
amazônicos”. Nunes escreveu sobre
o significado histórico mais amplo desse fato: “a reversão da dominação
política do campo pelas grandes cidades (e pelos setores industrial e de
serviços) que começou com Getúlio Vargas na década de 1930”. O modelo letárgico
de crescimento pautado em exportações do agronegócio, gradualmente implementado
nas últimas duas décadas, finalmente mostrou os dentes: ameaça não só a biodiversidade
brasileira, mas também a democracia.
Desafios candentes
O principal desafio para o novo modelo de desenvolvimento de
Lula é suplantar o predomínio do agronegócio na economia política do país. Os
capitalistas rurais mostraram claramente que não vão depor as armas sem lutar,
resistindo a qualquer mudança que desvincule o crescimento da economia do
“complexo soja-carne”. Após eleger grande quantidade de representantes para o
Congresso no último pleito, o bloco agrário perfaz atualmente cerca de 60% dos
membros do legislativo federal em ambas as casas—detendo poder suficiente para
derrotar o atual governo.5
Nos primeiros meses da nova gestão, enquanto Lula estruturava
seu gabinete, o lobby do agronegócio no Congresso conseguiu
esvaziar pastas do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério do Meio
Ambiente, transferindo alguns de seus encargos para outros departamentos do
governo. Também conseguiu proteger seus múltiplos benefícios fiscais, impondo
uma série de mudanças na abrangente reforma da tributação indireta apoiada pelo
governo, que visava justamente tornar sua incidência mais homogênea entre os
setores. Ainda, alterou o projeto do mercado de carbono—que, segundo o
governo, teria “um escopo universal”—, para excluir os setores de agricultura e
pecuária de seus dispositivos. E, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu
contra o lobby do agronegócio em um caso sobre a demarcação de
territórios indígenas —uma política que
visa à reparação histórica, mas que tem impactos significativos na contenção
do desmatamento—,
o Congresso se apressou a aprovar uma legislação na direção oposta,
efetivamente anulando a decisão do tribunal.
O novo modelo de desenvolvimento prometido pelo governo
teria potencial para mudar o equilíbrio de poder, tornando a economia menos
dependente das fortunas do agronegócio e, assim, enfraquecendo essa facção das
classes dominantes. E a transição verde pode ser usada precisamente como
oportunidade de mobilizar o aparato estatal para transformar a economia
brasileira, reduzindo sua sujeição às exportações primárias e criando empregos
decentes. Até agora, porém, apesar da retórica em torno do Plano de
Transformação Ecológica, o governo parece estar terceirizando a maior parte da
transição climática para o setor privado, devido ao seu espaço fiscal
limitado—espremido entre um compromisso autoimposto com a austeridade e
a erosão da base tributária promovida pelo agronegócio.6 Tanto
é que o ministro da fazenda fez questão de contrastar seus
planos verdes com as políticas recentemente adotadas pelos Estados Unidos,
alegando que um “mosaico de políticas regulatórias e tributárias” guiará a
transição brasileira, relativamente à “vasta quantidade de recursos
orçamentários” mobilizados pelo governo de Joe Biden. A nova política
industrial, por exemplo, terá de se contentar principalmente com crédito
subsidiado do BNDES, tendo sido efetivamente excluída do orçamento do governo.7
A estratégia funcionará? A despeito do progresso do IRA [Inflation
Reduction Act], críticas contundentes já reiteraram, mais
de uma vez, que os desafios da transição climática não podem ser vencidos
apenas mediante a mobilização das forças do mercado, contando com incentivos
que internalizam os custos ambientais. O que se requer, em vez disso, é uma
ação governamental decisiva que discipline o capital em uma estratégia de longo
prazo de transformação estrutural sustentável—uma abordagem que Daniela Gabor
chama de “grande
Estado verde”. O argumento é ainda mais relevante para uma economia como a
brasileira, que sofreu décadas de estagnação e na qual, de acordo com um estudo recente,
a competitividade verde e o potencial de competitividade verde “têm mostrado
uma tendência declinante”. Finalmente, a intervenção governamental é
indispensável, dada a influência avassaladora de uma facção das classes
dominantes que trabalha para sabotar a transição verde e que é responsável pela
maior parte das emissões de carbono do país.
O apoio leal que o governo atual tem entre a metade mais
pobre da população proporciona um ponto de partida para a tarefa de construir
uma forte coalizão política, a fim de disciplinar o capital em uma estratégia
de longo prazo que possa estabelecer um novo modelo de desenvolvimento. Isso
exigiria o que Alice
Amsden chamou de “mecanismos de controle recíproco”: o manejo de apoio
governamental direcionado a setores tecnologicamente sofisticados, condicionado
ao cumprimento regular de padrões de desempenho, para que a participação das
commodities primárias nas exportações possa diminuir à medida que novos atores
econômicos redirecionam a economia e simultaneamente criam uma base eleitoral
para o novo modelo de desenvolvimento. Alguns dos elementos necessários estão
presentes nos planos atuais do governo. Mas eles foram mantidos à margem,
enfraquecendo sua capacidade de desencadear mudanças transformadoras na
economia.
O tempo está acabando. A economia liderada pelo agronegócio,
enquanto não for efetivamente contestada, continuará fortalecendo o bloco de
extrema direita, reforçando ainda mais os capitalistas agrários e alimentando a
desilusão das classes populares. Essa é uma das razões pelas quais a esperança
que floresceu com a eleição de Lula em 2022 já se transformou em uma sensação
generalizada de impasse político. Na medida em que eventos climáticos extremos
arrasam cidades inteiras e alimentam as turbulências—o exemplo mais recente é a
trágica inundação de boa parte do Rio Grande do Sul—, desafiar o predomínio do
agronegócio nunca foi tão urgente. É indispensável não só para desacelerar o
aquecimento global e dar à humanidade uma chance de evitar as piores
consequências das mudanças climáticas, mas também para enfraquecer os ataques
da extrema direita às instituições democráticas e abrir caminho para uma
transformação econômica que restaure a esperança de um padrão de vida melhor
para a maioria de brasileiros que enfrentou uma década de empobrecimento.
Fonte: Phenomenal World
Com a isenção dos impostos de exportação e a hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais sobre nossa econômica, o Brasil está caminhando para trás, se transformando na colônia agrícola do mundo. E o passivo ambiental ficam com todo povo.https://t.co/ZB5VSUPrX9
— João Pedro Stedile (@stedile_mst) August 26, 2024
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