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terça-feira, 27 de agosto de 2024

O curral do mundo


Agronegócio e transição ecológica no Brasil


Pecuária
 

Recentemente, um visitante da floresta amazônica narrou sua surpresa diante do animal que mais lhe chamou a atenção: não foi a onça pintada, mas “a branca, lustrosa e corcovada vaca nelore, de orelhas caídas, a conquistadora última da fronteira”. Nas últimas duas décadas, a economia brasileira transformou-se na principal fornecedora de carne bovina do capitalismo global. Na medida em que isso acontecia, a floresta tropical, que abriga em torno de 10% das espécies animais do mundo, foi incendiada para dar passagem a milhões de vacas. Estima-se que, na parte brasileira da Amazônia, há hoje duas vezes mais vacas do que pessoas: cerca de 63 milhões e 28 milhões, respectivamente. 

Em 2003, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva iniciou seu primeiro mandato,  o Brasil era o terceiro maior exportador, em toneladas, de carne bovina congelada do mundo, representando cerca de 11% do total. Ao final do seu segundo mandato, em 2010, o Brasil era o primeiro colocado, responsável por 23% de toda a carne bovina congelada exportada mundialmente. As exportações cresceram de 317 para 781 mil toneladas. A década seguinte consolidou a supremacia brasileira no mercado de carne bovina: em 2022, o Brasil era a origem de 32% de toda carne bovina congelada comercializada internacionalmente, exportando quase o dobro do segundo colocado no ranking, a Índia. A ascensão do Brasil como curral do mundo esteve estreitamente ligada à ascensão da China como superpotência econômica: as importações chinesas de carne bovina congelada dispararam, entre 2002 e 2022, de onze mil para mais de dois milhões de toneladas.1

A história da soja é ainda mais dramática. A participação brasileira na exportação global do grão cresceu de cerca de 25% em 2003 para cerca de 50% a partir de 2018. Uma porção substancial dessa commodity é usada para produzir ração animal para os rebanhos de outros países. As mudanças recentes nas relações agroalimentares globais vêm sendo descritas como um emergente “complexo soja-carne Brasil-China” por pesquisadores da área. As duas commodities—carne bovina e soja em grãos—se alastraram pelo interior do Brasil como fogo em campo aberto, e grande parte de sua produção não observa normas ambientais (cf. a expansão geográfica das duas atividades nas Figuras 1 e 2). Numa pesquisa de 2020 que compila dados de 815.000 propriedades rurais na Amazônia e no Cerrado, Raoni Rajão e seus coautores concluíram que “cerca de 20% das exportações de soja e pelo menos 17% das exportações de carne bovina de ambos os biomas para a União Europeia devem ter sido contaminadas pelo desmatamento ilegal”. As proporções podem ser até maiores no caso de exportações para outros destinos com normas menos estritas.





O caminho que leva aos píncaros luminosos do desenvolvimento não costuma ser sinalizado pelo crescimento explosivo nas exportações de commodities. Os preços desses produtos são altamente voláteis, sujeitando as economias que dependem de sua exportação a trajetórias acidentadas em detrimento do crescimento de longo prazo. E, de modo crucial, a produção primária raramente proporciona os encadeamentos produtivos para trás e para frente que incentivam aumentos de produtividade em toda a economia e promovem mudanças técnicas cumulativas. Na maioria das vezes, a produção primária é um enclave com repercussões limitadas em outros ramos industriais e no mercado de trabalho—e com o potencial de derrubar toda a economia, se a queda dos preços internacionais levar à desvalorização da moeda e à crise econômica. O colapso da economia brasileira entre 2014 e 2016 teve múltiplas determinantes, mas inegavelmente esteve relacionado com a queda nos preços das commodities.

Na era da emergência climática, as desvantagens da especialização em exportações primárias, para o desenvolvimento, são ainda mais acentuadas. Como argumentaram pesquisadores da London School of Economics e da Universidade de Oxford, uma “corrida verde global está em andamento; quem sair na frente será recompensado e quem ficar para trás correrá o risco de perder competitividade global”. Além das barreiras à ascensão na cadeia global de valor, o custo econômico de se tornar o curral do mundo é agravado pelos impactos ambientais, tanto em termos de emissões de gás carbônico quanto de perda de biodiversidade. O Brasil é o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa. Mas a composição de suas emissões difere drasticamente da tendência mundial: enquanto agricultura, silvicultura e alterações no uso do solo respondem por cerca de 18% das emissões globais, no Brasil, entre 2000 e 2020, representaram mais de três quartos. Em termos de emissões, no país, os combustíveis fósseis ficam em segundo plano, ofuscados pela carne bovina e pela soja. Se os mercados globais de commodities um dia apoiaram uma agenda interna redistributiva, a atual dependência arraigada da economia brasileira de uma produção primária baseada em desmatamento não só a impede de oferecer um padrão de vida decente à maioria de sua população, mas também contribui para a degradação de seus ecossistemas e para o aquecimento do planeta.


Esperanças verdes


Recentemente, esse quadro sombrio deu lugar a perspectivas mais positivas para o Brasil na transição verde global. A ascensão eleitoral de Lula a um terceiro mandato, depois de quatro anos de um governo de extrema direita negacionista da mudança climática e que promoveu ativamente o desmatamento, produziu algum otimismo. Lula tem procurado se posicionar no cenário mundial como forte apoiador da transição ecológica. Marina Silva—a líder ambiental que ocupou seu gabinete ministerial entre 2003 e 2008 e renunciou por discordar dos rumos políticos de seus governos de então—está de volta como ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Na atual gestão, Marina logrou reduzir o desmatamento na Amazônia em quase 40% em 2023. Lustrando ainda mais suas credenciais de ação climática, em 2025 o Brasil sediará a COP30 na cidade amazônica de Belém. Ao escrever no Financial Times, em setembro passado, o ministro da fazenda Fernando Haddad emoldurou a agenda econômica do governo com a linguagem da transformação verde: “uma transformação abrangente da nossa economia e sociedade através de infraestrutura mais verde, agricultura sustentável, reflorestamento, economia circular, e uso cada vez mais intensivo de tecnologia no processo produtivo e na adaptação climática”.

A perspectiva alvissareira não se restringe aos círculos governamentais. No último Relatório sobre clima e desenvolvimento focado no Brasil, o Banco Mundial argumentou que a “matriz energética relativamente limpa e renovável” do país, baseada predominantemente em energia hidrelétrica, proporciona-lhe “uma vantagem importante para a construção de um setor industrial de baixa emissão”. Dessa perspectiva, a composição singular das emissões brasileiras não põe em evidência o destrutivo setor do agronegócio, grande emissor de poluentes do país, mas o setor energético de baixo carbono. Esse último poderia ser mobilizado para impulsionar a indústria, dando ao país uma vantagem em relação aos concorrentes que suprem a produção industrial mediante a queima de carvão ou gás natural e colocando a descarbonização total da economia mais ao alcance do Brasil do que de outros lugares. Como afirmou Ricardo Abramovay, o país pode reduzir pela metade suas emissões “sem transformação estrutural na economia”, visto que a eliminação do desmatamento pode ser alcançada “sem qualquer modificação no sistema de transportes, na matriz energética, nos padrões de consumo, no aquecimento ou na refrigeração dos imóveis”. Ou, como outros formularam, o país “poderia atingir de forma bem barata” a meta de emissões para 2030.

A estratégia do governo para aproveitar essa oportunidade gira em torno do Plano de Transformação Ecológica, lançado na COP28. De acordo com o Ministério da Fazenda, o plano representa “um novo modelo de desenvolvimento econômico, inclusivo e sustentável”. Seus objetivos são “promover o aumento da produtividade por meio da criação e da difusão de inovações tecnológicas e da construção de uma infraestrutura sustentável, aproveitando as características geográficas e ambientais singulares do país, a ampla disponibilidade de fontes renováveis de energia e a biodiversidade abundante que o Brasil possui”. Em um comunicado de maio de 2024, anunciando que “o Plano de Transformação Ecológica já começou”, o governo lista uma série de ações em fase de implementação que assentam as bases desse novo modelo de desenvolvimento: títulos verdes, crédito subsidiado, debêntures e tarifas para fomentar o investimento em descarbonização, reflorestamento e reindustrialização, a elaboração de uma taxonomia verde interna e avanços nas negociações com o Congresso visando à aprovação do mercado de carbono—citado por Haddad em 2023 como o “primeiro marco” da transformação verde.

Outra ação nesse âmbito foi o lançamento do plano Nova Indústria Brasil, um conjunto de políticas industriais que visam aproveitar a base econômica atual do país para impulsionar o desenvolvimento. Três das seis missões escolhidas estão relacionadas com a sustentabilidade ambiental. Uma delas impacta o agronegócio, com a intenção de promover “cadeias agroindustriais digitais e sustentáveis para a segurança alimentar, nutricional e energética”. Entre as metas elencadas, figuram as de fortalecer a participação do setor agroindustrial no PIB do agronegócio, ampliar a mecanização da agricultura familiar com equipamentos produzidos internamente e aumentar a sustentabilidade ambiental da produção agroindustrial. De acordo com Mariana Mazzucato, que ajudou o governo a elaborar a nova política, “dependendo de como forem implantadas, essas novas missões podem ajudar a promover coordenação e colaboração público-privada, intersetorial e interministerial alinhadas ao Plano de Transformação Ecológica e à agenda de crescimento sustentável e inclusivo em sentido amplo”. Mazzucato também afirmou que, ao “colocar a transição ecológica no centro da política econômica, o governo do Brasil está definindo um curso diferente, capaz de transformar desafios sociais e ambientais em oportunidades”.

O papel do agronegócio na estratégia de transição verde do país, no entanto, além de servir como uma das bases para um esforço de reindustrialização, não foi abordado em detalhes. Um estudo recente sobre o assunto, que examina as mudanças setoriais mínimas necessárias para que a economia brasileira cumpra suas promessas de descarbonização, simplesmente desconsidera as emissões relacionadas a mudanças no uso do solo (especialmente o desmatamento), com o argumento de que “é sabido que elas resultam de atividades ilegais”. Essa opção problemática tem consequências comprometedoras: as mudanças setoriais propostas exigiriam que a produção se distanciasse de atividades industriais de alto carbono e se voltasse à agricultura, pecuária e produção de carne, bem como às diferentes indústrias de serviços. Perversamente, a descarbonização brasileira resultaria da expansão do agronegócio.

O relatório do Banco Mundial, por outro lado, fornece uma imagem mais precisa da relação entre agronegócio e transição climática. Ele argumenta que a recente adoção do Plano ABC+, política setorial do governo voltada à agricultura de baixo carbono que consiste em “crédito rural a juros baixos para financiar a implementação de práticas ou tecnologias agrícolas que provavelmente contribuirão para a mitigação e/ou adaptação às mudanças climáticas”, poderia contribuir para reduzir o desmatamento sem comprometer a produção agrícola, desde que fosse reforçada, e não sabotada, pelas demais políticas de crédito rural. O relatório estima que esse esforço não chegaria a eliminar as emissões oriundas da agricultura e das mudanças no uso do solo, podendo, contudo, reduzi-las pela metade até 2030. Além disso, destaca a existência de obstáculos políticos significativos: “grupos de interesse ligados à produção agrícola (incluindo alguns pecuaristas e afiliados à indústria pecuária) têm influência notável nos níveis subnacional e federal”. A força política desses grupos explica por que os subsídios governamentais e as políticas de crédito rural proveem “incentivos adicionais para desmatar”.

Em 2021, por exemplo, o orçamento do Plano ABC+ representou apenas 2% do Plano Safra, a principal política rural que, entre outras coisas, “apoia a criação de gado nos estados menos desenvolvidos da Amazônia Legal”. Em 2023, o primeiro Plano Safra anunciado pelo atual governo destinou parcela semelhante do valor total à agricultura de baixo carbono: o RenovAgro, novo nome do Plano ABC+, recebeu 1,9% do montante final.2 O governo argumenta, no entanto, que outros aspectos da política também estimulam a sustentabilidade na agricultura, ajustando a taxa de juros cobrada dos agricultores, por exemplo, com base em sua conformidade com práticas sustentáveis.


O poder do agronegócio


Planejar a transição verde no Brasil sem enfrentar os desafios postos pelo predomínio do agronegócio implica ignorar as tensões entre a estratégia proposta e o padrão de acumulação que se consolidou nas últimas duas décadas. Nesse período, o agronegócio se tornou um dos segmentos mais poderosos da vida política e econômica brasileira. No momento em que suas exportações se tornaram uma peça crucial do quebra-cabeça do capitalismo global, o agronegócio brasileiro assumiu uma posição de liderança na economia doméstica, especialmente por garantir o acesso do país a moeda estrangeira. 

Nas últimas duas décadas, a participação da soja em grãos no total das exportações brasileiras cresceu de menos de 5% para mais de 12%. Atualmente, todos os bens agrícolas combinados (grãos de soja, diferentes tipos de carne bovina, cana-de-açúcar e milho, entre outros) são responsáveis por mais de um terço do total de exportações. Somados aos minerais, especialmente minérios de ferro e petróleo, representam mais que 70% de todas as exportações. A partir dos anos 2000, o Brasil consolidou sua integração subordinada na divisão internacional do trabalho como exportador de commodities primárias. Por ter se industrializado mais do que seus vizinhos, o Brasil costumava ser um ponto fora da curva em termos de participação de bens manufaturados no total das exportações, que somavam 55% durante a década de 1990 e início dos anos 2000, em comparação com, no máximo, um terço do total em países como Argentina, Colômbia e Uruguai. Nas duas últimas décadas, contudo, a composição das exportações brasileiras foi se assemelhando cada vez mais à dos demais países da região: a porcentagem das exportações manufaturadas caiu para 25% do total desde 2020.3

O papel desempenhado pelo agronegócio também pode ser identificado nas estatísticas referentes à composição da economia doméstica. Durante o boom de commodities, o agronegócio cresceu menos do que o restante da economia. A participação de toda a cadeia do agronegócio (que compreende produção de insumos, agricultura, pecuária, agroindústria e agrosserviços) no PIB caiu de cerca de 30% para 21% entre 2003 e 2010.4 À medida que a margem fiscal criada pelo boom nas exportações foi usada para adotar políticas redistributivas e expandir o investimento público, o consumo de massa aumentou e os serviços urbanos ultrapassaram o agronegócio. O período, no entanto, também foi caracterizado pela consolidação das principais corporações do setor e de seu crescente poder político. A JBS, por exemplo, tornou-se uma das maiores empresas de processamento de carne bovina do mundo, comprando vários dos seus concorrentes brasileiros, bem como grandes empresas nos Estados Unidos, com o apoio crucial do BNDES.

Durante seus dois mandatos anteriores, Lula tirou vantagem da bonança das commodities para implementar políticas de redução da pobreza, sem afrontar a ascensão do agronegócio. Nas políticas agrícolas, o governo preservou a dualidade herdada, mantendo a existência de um ministério dominado pela elite do agronegócio ao lado de outro focado nas demandas dos movimentos sociais agrários. A ambiguidade também prevaleceu em relação ao meio ambiente. De um lado, o governo adotou melhorias significativas na legislação ambiental e na fiscalização, que levaram a uma redução do desmatamento por um fator de quatro. De outro lado, muitas vezes priorizou investimentos que poderiam impulsionar o crescimento de curto prazo, ignorando implicações ambientais problemáticas. A construção da hidrelétrica de Belo Monte na bacia amazônica é um desses casos. Belo Monte é um dos maiores exemplos de megaprojetos que resultaram no deslocamento em massa de comunidades e causaram perda significativa de biodiversidade, ao mesmo tempo em que contribui para a matriz energética renovável do país.

As classes dominantes agrárias usaram as oportunidades abertas pelo boom de commodities para consolidar seu poder. Sem nenhuma lealdade particular ao governo que supervisionou sua ascensão, algumas facções do lobby do agronegócio logo pressionariam por um curso político diferente (e perigoso). Como Rodrigo Nunes argumentou, quando se opôs à sucessora de Lula, a presidenta Dilma Rousseff, em 2015, o agronegócio “pareceu ter atingido a maioridade política: não mais se contentou com meramente defender seus interesses econômicos imediatos e, em vez disso, buscou impor sua agenda ao país inteiro”. Tornou-se um ator político que liderou o golpe parlamentar que derrubou Rousseff em 2016, fomentando uma guinada violenta para a direita na política brasileira e lançando as bases para a vitória eleitoral do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro, em 2018.

Os resultados foram imediatos: o Estado brasileiro foi efetivamente transformado em “comitê executivo” da burguesia agrária, desmantelando normas ambientais, direitos indígenas e o aparato ministerial e institucional que havia sido penosamente construído desde a democratização e a aprovação da Constituição Federal de 1988. Um bloco político reacionário foi estabelecido, amalgamando capitalistas rurais, a facção militante do cristianismo e o aparato de segurança (compreendendo diferentes ramos da polícia e das forças armadas): o infame tripé “boi, bala e bíblia” que alçou Bolsonaro ao palácio presidencial.

Com esse respaldo político, o agronegócio estava pronto para vicejar. Durante o governo Bolsonaro, enquanto o resto da economia estagnava, a cadeia do agronegócio explodiu, crescendo em média 7,8% ao ano entre 2019 e 2022, enquanto o PIB se arrastava a uma taxa média anual de 1,4%. Em consequência, a partir de 2020, a participação do setor no PIB oscilou em torno de 25%, recuperando parte do terreno perdido nos anos 2000. Houve dois booms associados ao fenômeno: o da recuperação das taxas de desmatamento e o do aumento da desigualdade. O crescimento da parcela da renda apropriada pelo 0,1% e 0,01% mais ricos entre 2017 e 2022 foi acarretado principalmente pela concentração de renda ocorrida nos  estados em que predomina a produção de carne bovina e soja.

O relacionamento entre a extrema direita e o agronegócio não foi um caso furtivo. André Singer identificou a formação de “uma coalizão com bases territoriais, econômicas e sociais”—estendendo-se de seus representantes em Brasília às elites rurais e aos segmentos cada vez maiores de grupos mais pobres no interior—e observa que, na eleição presidencial de 2022, Bolsonaro recebeu mais votos do que Lula “nos 265 municípios dos nove estados amazônicos”. Nunes escreveu sobre o significado histórico mais amplo desse fato: “a reversão da dominação política do campo pelas grandes cidades (e pelos setores industrial e de serviços) que começou com Getúlio Vargas na década de 1930”. O modelo letárgico de crescimento pautado em exportações do agronegócio, gradualmente implementado nas últimas duas décadas, finalmente mostrou os dentes: ameaça não só a biodiversidade brasileira, mas também a democracia.


Desafios candentes


O principal desafio para o novo modelo de desenvolvimento de Lula é suplantar o predomínio do agronegócio na economia política do país. Os capitalistas rurais mostraram claramente que não vão depor as armas sem lutar, resistindo a qualquer mudança que desvincule o crescimento da economia do “complexo soja-carne”. Após eleger grande quantidade de representantes para o Congresso no último pleito, o bloco agrário perfaz atualmente cerca de 60% dos membros do legislativo federal em ambas as casas—detendo poder suficiente para derrotar o atual governo.5

Nos primeiros meses da nova gestão, enquanto Lula estruturava seu gabinete, o lobby do agronegócio no Congresso conseguiu esvaziar pastas do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério do Meio Ambiente, transferindo alguns de seus encargos para outros departamentos do governo. Também conseguiu proteger seus múltiplos benefícios fiscais, impondo uma série de mudanças na abrangente reforma da tributação indireta apoiada pelo governo, que visava justamente tornar sua incidência mais homogênea entre os setores. Ainda, alterou o projeto do mercado de carbono—que, segundo o governo, teria “um escopo universal”—, para excluir os setores de agricultura e pecuária de seus dispositivos. E, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu contra o lobby do agronegócio em um caso sobre a demarcação de territórios indígenas —uma política que visa à reparação histórica, mas que tem impactos significativos na contenção do desmatamento—, o Congresso se apressou a aprovar uma legislação na direção oposta, efetivamente anulando a decisão do tribunal.

O novo modelo de desenvolvimento prometido pelo governo teria potencial para mudar o equilíbrio de poder, tornando a economia menos dependente das fortunas do agronegócio e, assim, enfraquecendo essa facção das classes dominantes. E a transição verde pode ser usada precisamente como oportunidade de mobilizar o aparato estatal para transformar a economia brasileira, reduzindo sua sujeição às exportações primárias e criando empregos decentes. Até agora, porém, apesar da retórica em torno do Plano de Transformação Ecológica, o governo parece estar terceirizando a maior parte da transição climática para o setor privado, devido ao seu espaço fiscal limitado—espremido entre um compromisso autoimposto com a austeridade e a erosão da base tributária promovida pelo agronegócio.6 Tanto é que o ministro da fazenda fez questão de contrastar seus planos verdes com as políticas recentemente adotadas pelos Estados Unidos, alegando que um “mosaico de políticas regulatórias e tributárias” guiará a transição brasileira, relativamente à “vasta quantidade de recursos orçamentários” mobilizados pelo governo de Joe Biden. A nova política industrial, por exemplo, terá de se contentar principalmente com crédito subsidiado do BNDES, tendo sido efetivamente excluída do orçamento do governo.7

A estratégia funcionará? A despeito do progresso do IRA [Inflation Reduction Act], críticas contundentes já reiterarammais de uma vez, que os desafios da transição climática não podem ser vencidos apenas mediante a mobilização das forças do mercado, contando com incentivos que internalizam os custos ambientais. O que se requer, em vez disso, é uma ação governamental decisiva que discipline o capital em uma estratégia de longo prazo de transformação estrutural sustentável—uma abordagem que Daniela Gabor chama de “grande Estado verde”. O argumento é ainda mais relevante para uma economia como a brasileira, que sofreu décadas de estagnação e na qual, de acordo com um estudo recente, a competitividade verde e o potencial de competitividade verde “têm mostrado uma tendência declinante”. Finalmente, a intervenção governamental é indispensável, dada a influência avassaladora de uma facção das classes dominantes que trabalha para sabotar a transição verde e que é responsável pela maior parte das emissões de carbono do país.

O apoio leal que o governo atual tem entre a metade mais pobre da população proporciona um ponto de partida para a tarefa de construir uma forte coalizão política, a fim de disciplinar o capital em uma estratégia de longo prazo que possa estabelecer um novo modelo de desenvolvimento. Isso exigiria o que Alice Amsden chamou de “mecanismos de controle recíproco”: o manejo de apoio governamental direcionado a setores tecnologicamente sofisticados, condicionado ao cumprimento regular de padrões de desempenho, para que a participação das commodities primárias nas exportações possa diminuir à medida que novos atores econômicos redirecionam a economia e simultaneamente criam uma base eleitoral para o novo modelo de desenvolvimento. Alguns dos elementos necessários estão presentes nos planos atuais do governo. Mas eles foram mantidos à margem, enfraquecendo sua capacidade de desencadear mudanças transformadoras na economia.

O tempo está acabando. A economia liderada pelo agronegócio, enquanto não for efetivamente contestada, continuará fortalecendo o bloco de extrema direita, reforçando ainda mais os capitalistas agrários e alimentando a desilusão das classes populares. Essa é uma das razões pelas quais a esperança que floresceu com a eleição de Lula em 2022 já se transformou em uma sensação generalizada de impasse político. Na medida em que eventos climáticos extremos arrasam cidades inteiras e alimentam as turbulências—o exemplo mais recente é a trágica inundação de boa parte do Rio Grande do Sul—, desafiar o predomínio do agronegócio nunca foi tão urgente. É indispensável não só para desacelerar o aquecimento global e dar à humanidade uma chance de evitar as piores consequências das mudanças climáticas, mas também para enfraquecer os ataques da extrema direita às instituições democráticas e abrir caminho para uma transformação econômica que restaure a esperança de um padrão de vida melhor para a maioria de brasileiros que enfrentou uma década de empobrecimento.

Por: Fernando Rugitsky

Fonte: Phenomenal World



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