Quatro meses depois de fazer críticas públicas contra o desmatamento no Brasil, o presidente Joe Biden e membros do alto escalão do novo governo dos EUA receberam nesta semana um longo dossiê que pede o congelamento de acordos, negociações e alianças políticas com o Brasil enquanto Jair Bolsonaro estiver na Presidência.
"A relação especialmente próxima entre os dois
presidentes foi um fator central na legitimação de Bolsonaro e suas tendências
autoritárias", diz o texto, que recomenda que Biden restrinja importações
de madeira, soja e carne do Brasil, "a menos que se possa confirmar que as
importações não estão vinculadas ao desmatamento ou abusos dos direitos
humanos", por meio de ordem executiva ou via Congresso.
A mudança de ares na Casa Branca é o combustível para o
dossiê, escrito por professores de dez universidades (9 delas nos EUA), além de
diretores de ONGs internacionais como Greenpeace EUA e Amazon Watch.
Consultado pela BBC News Brasil, o Palácio do Planalto
informou, via Secretaria de Comunicação, que não comentará o dossiê.
A BBC News Brasil apurou que os gabinetes de pelo menos dois
parlamentares próximos ao gabinete de Biden — a deputada Susan Wild, do comitê
de Relações Internacionais, e Raul Grijalva, presidente do comitê de Recursos
Naturais — revisaram o documento antes do envio.
O texto têm o endosso de mais de 100 acadêmicos de
universidades como Harvard, Brown e Columbia, além de organizações como a
Friends of the Earth, nos EUA, e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB), no Brasil. A iniciativa é da U.S. Network for Democracy in Brazil, uma
rede criada por acadêmicos e ativistas brasileiros no exterior há dois anos que
hoje conta com 1500 membros.
Tanto Biden quanto a vice-presidente Kamala Harris, além de
ministros e diretores de diferentes áreas do novo governo, já criticaram
abertamente o presidente brasileiro, que desde a derrota de Trump na última
eleição assiste a um derretimento em negociações em andamento entre os dois
países.
"O governo Biden-Harris não deve de forma nenhuma
buscar um acordo de livre-comércio com o Brasil", frisa o dossiê,
organizado em 10 grandes eixos: democracia e estado democrático de direito;
direitos indígenas, mudanças climáticas e desmatamento; economia política; base
de Alcântara e apoio militar dos EUA; direitos humanos; violência policial;
saúde pública; coronavírus; liberdade religiosa e trabalho
- Vitória de Biden é
revés para Bolsonaro e exige mudança na política externa brasileira, dizem
analistas
- O que muda
para o Brasil sem Trump na Casa Branca?
O material, segundo a BBC News Brasil apurou, chegou ao
núcleo do governo Biden por meio de Juan Gonzales, recém-nomeado pelo próprio
presidente americano como diretor-sênior para o hemisfério ocidental do
Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca — e conhecido pelas críticas a
políticas ambientais de Bolsonaro.
Assessor de confiança de Biden desde o governo de Barack
Obama, quando atuou como conselheiro especial do então vice-presidente Biden,
Gonzales passou por diversos cargos na Casa Branca e no Departamento de Estado
e hoje tem livre acesso ao salão Oval como o principal responsável por
políticas sobre América Latina no novo governo.
"Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que
achar que pode promover um relacionamento ambicioso com os EUA enquanto ignora
questões importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos,
claramente não tem ouvido Joe Biden durante a campanha", disse Gonzales
recentemente.
Anybody, in Brazil or elsewhere, who thinks they can advance an ambitious relationship with the United States while ignoring important issues like climate change, democracy, and human rights clearly hasn’t been listening to Joe Biden on the campaign trail. https://t.co/SyIGlFMdpx
— Juan S. Gonzalez (@Cartajuanero) October 22, 2020
O dossiê também circula por membros do Conselho de Assessores Econômicos (CEA, na sigla em inglês) do gabinete-executivo de Biden e pelo ministério do Interior - cuja nova chefe, Debra Haaland, também é crítica contumaz de Bolsonaro.
Rede internacional
O documento surge em momento de intensa expectativa sobre os
próximos passos da relação entre Brasil e Estados Unidos sob o governo de Biden
e da vice-presidente Kamala Harris.
Até dezembro do ano passado, os líderes dos dois países
celebravam anúncios conjuntos, como protocolos de comércio e cooperação
econômica, e mostravam intimidade em encontros públicos. Na Assembleia Geral da
ONU de 2019, por exemplo, Bolsonaro chegou a dizer "I love you" (eu
amo você) a Trump, que respondeu "Bom vê-lo outra vez".
Na primeira semana de janeiro, Ivanka Trump, filha do
ex-presidente, foi fotografada carregando no colo a filha de Eduardo Bolsonaro,
que visitava a Casa Branca junto à esposa Heloisa e à recém-nascida Georgia —
nome do Estado que se tornou um dos pivôs da derrota de Trump na eleição.
A declaração gerou uma dura resposta do presidente Jair
Bolsonaro, que classificou o comentário como "lamentável",
"desastroso e gratuito" e quebrou o protocolo presidencial ao
declarar sua torcida pelo hoje derrotado Donald Trump.
Semanas antes, a agora vice-presidente Kamala Harris
escreveu que "o presidente do Brasil Bolsonaro precisa responder pela
devastação" na Amazônia.
"Qualquer destruição afeta a todos nós",
completou.
Brazil's President Bolsonaro must answer for this devastation. The Amazon creates over 20% of the world's oxygen and is home to one million Indigenous people.
— Kamala Harris (@KamalaHarris) August 24, 2019
Any destruction affects us all. pic.twitter.com/rbdtuHMXJ9
Mais recentemente, após ser questionado pela jornalista Raquel Krähenbühl, da GloboNews, sobre quando conversaria com o par brasileiro, Biden apenas riu.
Meio ambiente
Membros do partido democrata ouvidos pela reportagem sob
anonimato descrevem Bolsonaro como uma figura "tóxica" no xadrez
global.
Continuar investindo em uma relação próxima com o líder
brasileiro seria, na avaliação destes críticos, uma contradição com as
bandeiras de sustentabilidade, defesa aos direitos humanos e à diversidade
levantadas pela chapa democrata que venceu as eleições.
Pela primeira vez na história dos EUA, Biden nomeou uma
mulher indígena para chefiar um ministério (Interior) e mulheres transexuais
para cargos importantes nas áreas de defesa e saúde. Negros, latinos e asiáticos
aparecem em número recorde de nomeações.
- Deputado
americano que repreendeu família Bolsonaro diz que presidente põe milhões
de brasileiros em risco
- Ajuda econômica é
bem-vinda, diz embaixador do Brasil nos EUA sobre plano de Biden para
Amazônia
O apoio a estes grupos é o eixo principal do dossiê, que
também defende que Biden retire o apoio atual dos EUA para a adesão do Brasil à
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e questione a
participação do Brasil no G7 e G20 enquanto Bolsonaro for presidente.
"Os EUA têm obrigação moral e interesse prático em se
opor a uma série de iniciativas da atual presidência do Brasil", diz o
texto. "A recente 'relação especial' entre os dois países por meio da
ampliação de relações comerciais e ajuda militar possibilitou violações dos
direitos humanos e ambientais e protegeu Bolsonaro de consequências
internacionais."
O texto não cita diretamente a proposta de um fundo
internacional de 20 bilhões de dólares, sugerida por Biden na campanha
eleitoral, para conter o desmatamento na Amazônia.
No capítulo sobre meio ambiente, no entanto, o texto alerta
que financiar programas de conservação do atual governo brasileiro poderia
significar "jogar dinheiro no problema", a não ser que o país mude a
direção de suas políticas de proteção ambiental.
O remédio, segundo os autores, seria vincular qualquer
financiamento às demandas de representantes da sociedade civil, povos
indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas.
"Um dos valores deste documento é preparar o governo
(Biden) para o fluxo de desinformação vindo do governo Bolsonaro. O problema é
que este governo não é apenas o mais agressivo antagonista do meio ambiente
brasileiro visto até hoje, mas também um grande investidor em relações públicas
divulgando informações deturpadas. Eles investem para encobrir problemas. Então
o grande objetivo é mostrar ao governo quais devem ser as fontes seguras para
informação sobre o Brasil: a sociedade, as organizações que estão em campo, as
comunidades e grupos marginalizados", diz à BBC News Brasil Daniel Brindis,
diretor do Greenpeace nos EUA e um dos autores do dossiê.
"O presidente Biden precisa ter certeza de onde está
investindo o dinheiro, ou corre o risco de jogá-lo fora", afirma.
Alcântara e minorias
Mas o dossiê diz que a atenção do governo dos EUA deve ir
além do financiamento a políticas de conservação no Brasil e também deve mirar
o papel de empresários, investidores e da política externa norte-americana
"na ampliação do desmatamento e permissão de abusos de direitos
humanos".
Depois da China, os EUA são os maiores compradores de
madeira brasileira no mundo. O documento ressalta, no entanto, que a lei Lacey,
aprovada nos EUA em 2008, proíbe o comércio de produtos vegetais vindo de
fontes ilegais nos Estados Unidos e em outros países.
- Por que Bolsonaro
pode sofrer uma 'tempestade perfeita' na política e na economia em 2021
- Sob risco de
demissão, Ernesto Araújo enfrenta tempestade perfeita com China, Índia e
EUA
Em 11 de janeiro deste ano, o Ministério Público Federal
entrou em contato com o governo dos EUA para recuperar cargas de madeira
extraída ilegalmente na Amazônia. Uma operação realizada em dezembro na divisa
do Pará e do Amazonas recolheu mais de 130 mil metros cúbicos de madeira ilegal
— o equivalente a mais de 6 mil caminhões de carga lotados, segundo a polícia
federal.
O texto também lembra que os problemas ambientais
brasileiros não se limitam à Amazônia e também incluem o cerrado, o Pantanal e
a Mata Atlântica.
Além do foco ambiental, boa parte do dossiê se dedica a
políticas sobre grupos historicamente marginalizados no Brasil como indígenas e
quilombolas.
Sobre os últimos, o texto defende que os EUA reverta a
assinatura do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas assinado pelos governos Trump
e Bolsonaro, em 2019, permitindo a exploração comercial da Base Espacial de
Alcântara, no Maranhão.
Como foi assinado, o acordo prevê a remoção de centenas de
famílias de quilombolas que vivem na região há quase dois séculos.
"O governo Biden-Harris deve se colocar de maneira
firme contra qualquer desapropriação de terras quilombolas, enquanto se engaja
em ações pacíficas colaboração com a Agência Espacial Brasileira em
Alcântara", sugere o texto, citando o Tratado do Espaço Sideral, um
instrumento multilateral assinado tanto por EUA quanto pelo Brasil.
Segundo o texto do tratado, criado em meados dos anos 1960,
em meio à Guerra Fria, iniciativas que envolvam exploração no espaço só podem
acontecer a partir de fins pacíficos. "O governo Biden e Harris deve
rejeitar firmemente qualquer envolvimento militar na colaboração espacial no
Brasil. Qualquer colaboração entre os programas espaciais dos EUA e do Brasil
deve eliminar o racismo e o legado ambiental destrutivo de Trump e
Bolsonaro", prossegue o dossiê.
O governo Bolsonaro afirma que o acordo de Alcântara
estimulará o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro e poderá gerar
investimentos de até R$ 1,5 bilhão na economia nacional.
O Brasil diz pretender "tornar o Centro Espacial de
Alcântara, no Maranhão, competitivo mundialmente e um grande atrativo de
recursos para o Brasil no setor espacial".
Outros temas
Ao longo de mais de suas mais de 30 páginas, o texto também
defende que os EUA divulguem documentos secretos sobre a ditadura no Brasil e
que o Departamento de Justiça responda a questionamentos sobre a suposta
participação dos EUA na operação Lava Jato.
Em agosto de 2019, o parlamentar Hank Johnson, junto outros
12 congressistas, pediu esclarecimentos sobre a relação dos norte-americanos
com a operação brasileira, mas não teve resposta.
Em coro com relatórios recentes de organizações globais de
direitos humanos sobre o Brasil, o dossiê também recomenda que o governo
americano se coloque enfaticamente contra a violência policial no Brasil, os
assassinatos de ativistas e trabalhadores rurais no país e a ataques contra
religiões de matriz africana.
O texto também cita extinção do Ministério do Trabalho pelo
governo Bolsonaro e "políticas de desmantelamento de direitos dos
sindicatos, financiamento sindical, negociações coletivas e sistemas de fiscalização
do trabalho" como temas a serem revertidos antes da discussão de qualquer
acordo de livre-comércio com o Brasil.
O dossiê não foi enviado a membros do governo brasileiro.
Longe de Washington, após se tornar o último líder de um
pais democrático a reconhecer a vitória de Biden e Harris, Bolsonaro vem
tentando manobrar para reduzir os danos na relação entre os dois países.
Em janeiro, depois de defender teorias de conspiração
infundadas sobre fraudes na eleição americana, o presidente brasileiro assinou
uma carta de cumprimentos ao novo líder dos EUA.
"A relação Brasil e Estados Unidos é longa, sólida e
baseada em valores elevados, como a defesa da democracia e das liberdades
individuais. Sigo empenhado e pronto para trabalhar pela prosperidade de nossas
nações e o bem-estar de nossos cidadãos", dizia o texto, que não teve
resposta.
À BBC News Brasil, em novembro, o embaixador brasileiro em
Washington, Nestor Forster, disse acreditar que a proximidade entre os dois
países se manteria em um eventual governo Biden. "Acreditamos firmemente
que, independente do resultado das eleições aqui nos EUA, essa agenda vai
continuar e a importância do Brasil não vai mudar porque está esse ou aquele
partido. Temos a melhor relação com os dois partidos políticos, como é natural
em uma democracia."
Dias antes, no entanto, parlamentares democratas haviam
chamado Bolsonaro de "pseudoditador" e classificado acordos entre os
dois países como "tapa na cara do Congresso".
Fonte: BBC News Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário