É compreensível considerar uma vitória como "mal menor", mas é sensato admitir que Harris será "mais do mesmo"
A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, é o
grande assunto em destaque desde o último domingo (21/07) quando o presidente
Joe Biden anunciou que estava desistindo de concorrer à reeleição.
Biden e outros líderes democratas imediatamente anunciaram
seu apoio a Kamala, agora vista como favorita para encabeçar a campanha do
partido à Casa Branca.
No Brasil, o anúncio gerou entusiasmo em grande parte da
esquerda. De parlamentares e ministras a jornalistas e influenciadores, não
faltaram elogios e declarações celebrando a possibilidade de se eleger “a
primeira mulher presidente dos Estados Unidos”, “uma mulher negra”, “filha de
imigrantes”, que poderia inspirar o Brasil e o mundo a “promover a igualdade
racial e de gênero”. Mas uma análise mais detida sobre a atuação pregressa de
Kamala recomendaria substituir a comoção pela cautela.
Nascida em Oakland, Califórnia, em 1964, Kamala Harris é
filha de uma cientista indiana e de um economista jamaicano. Ela estudou
ciência política e economia na Universidade Howard, em Washington, e
posteriormente se graduou em direito pela Universidade da Califórnia. Serviu
como procuradora-adjunta do condado de Alameda entre 1990 e 1998 e depois
gerenciou a Unidade de Criminosos Reincidentes.
Já filiada ao Partido Democrata, Kamala tornou-se
procuradora de São Francisco em 2003, tomando posse no ano seguinte. Em 2011,
assumiu o cargo de procuradora-geral da Califórnia, no qual permaneceu até
2017.
A atuação de Kamala como procuradora rendeu diversas
críticas dos movimentos sociais, organizações de defesa dos direitos das
minorias e de militantes do próprio Partido Democrata. Sua gestão foi marcada
pelo punitivismo e pelo perfilamento de minorias étnicas e de imigrantes — algo
especialmente pernicioso e preocupante diante da natureza do sistema penal
norte-americano.
Os Estados Unidos possuem a maior população carcerária do
mundo, com 2,3 milhões de presidiários. A nação que se autodenomina “Terra dos
Livres” responde por apenas 5% da população mundial, mas concentra 25% de todos
os prisioneiros do planeta. A taxa de encarceramento dos Estados Unidos —
aproximadamente 700 presos para cada 100.000 habitantes — é quase seis vezes
maior do que a da China, país frequentemente rotulado como uma “ditadura” pelas
autoridades norte-americanas.
A seletividade da justiça penal se reflete no perfil étnico
dos encarcerados. Negros e latinos perfazem 29% da população dos Estados
Unidos, mas representam 60% da população carcerária. Em vários estados, os
prisioneiros são obrigados a realizar trabalho compulsório — uma medida que,
somada à privatização dos presídios, tem contribuído para transformar o
encarceramento em massa em um negócio extremamente lucrativo.
O mercado das prisões movimenta mais de 200 bilhões de
dólares por ano nos Estados Unidos e os empresários do setor possuem lobistas
poderosos financiando campanhas de parlamentares e cooptando apoio de
procuradores. Megacorporações do porte da IBM, McDonald’s, Intel, Wal-Mart,
Microsoft, Nike, AT&T e várias outras se beneficiam enormemente da mão de
obra barata dos prisioneiros.
Os interesses financeiros frequentemente se misturam-se ao
populismo penal e à competição eleitoreira dos procuradores e juízes para
descobrir quem é mais “duro no combate ao crime”, com resultados desastrosos. A
atuação de Kamala Harris é um exemplo disso.
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Durante sua eleição à procuradoria-geral, Kamala se
posicionou à direita de seu adversário republicano em relação à “Three Strikes
Law” — uma lei que determinava que qualquer pessoa que fosse condenada por três
delitos, incluindo crimes não violentos e de menor potencial ofensivo, seria
automaticamente sentenciada à prisão perpétua.
A lei foi desastrosa. Pessoas eram condenadas a passar o
resto da vida na cadeia por motivos banais, como fumar maconha ou furtar uma
fatia de pizza. Mesmo assim, Kamala foi contra a reforma da lei e encorajou os
eleitores a rejeitarem a proposta 66, que previa aplicar a regra somente a
crimes graves.
Para deleite do negócio de encarceramentos privados, Kamala
não se deu por satisfeita apenas com a aplicação indiscriminada da prisão
perpétua contra delitos banais. Ela apoiou uma medida do condado de São
Francisco que obrigava as escolas a entregarem crianças imigrantes não
documentadas para serem detidas por autoridades policiais. A procuradora se
esforçou também em enviar para a cadeia pais de alunos que faltassem ou
cabulassem às aulas, medida prevista em um projeto de “combate à vadiagem” em
2011.
Ao ser questionada pela imprensa sobre um caso específico de
uma mãe que foi presa após a filha, paciente oncológica, faltar às aulas por
vários dias por estar debilitada, Kamala respondeu com risadas e ironias.
Buscando consolidar a imagem de “intolerante contra o
crime”, Kamala ajudou a implementar uma série de medidas que levaram milhares
de jovens negros e latinos para a cadeia por motivos fúteis. A procuradora
também se tornou conhecida por perseguir trabalhadoras do sexo e forçar
mulheres transexuais a serem encarceradas em prisões masculinas.
E, embora tenha sido a primeira mulher negra a ocupar o
cargo de procuradora na Califórnia, Kamala foi muito criticada pelo movimento
negro por ter acobertado e livrado de punição vários policiais envolvidos em
atos de racismo ou de execução extrajudicial de jovens negros.
Kamala também resistiu às pressões pelo desencarceramento.
Alarmada com o gigantesco aumento da população prisional e com as denúncias de
superlotação, tortura e abusos no sistema penal, a Suprema Corte dos Estados
Unidos determinou a criação de novos programas de liberdade condicional na
Califórnia e ordenou a soltura dos prisioneiros que tivessem cometido delitos
de menor gravidade.
Não obstante, Kamala se recusou a cumprir a decisão do
tribunal, conduzindo uma verdadeira campanha de obstrução que quase gerou uma
crise constitucional. A procuradora chegou a justificar sua postura dizendo
que, caso fosse obrigada a libertar os detentos, as prisões “perderiam
importante contingente de mão-de-obra”. Ela também se recusou a apoiar um
projeto de lei criado por iniciativa popular que visava diminuir a taxa de
encarceramento através da reforma dos códigos penais e do sistema de sentenças.
Um dos casos mais emblemáticos da intransigência punitivista
da procuradora ocorreu em 2012. Um homem chamado Daniel Larsen, reincidente do
sistema prisional, foi condenado a 28 anos de prisão em 1999 por ameaçar uma
pessoa com uma faca. Ele foi declarado inocente por um juiz federal, que
ordenou sua soltura. A decisão foi tomada com base nas declarações do ex-chefe
da polícia envolvido na denúncia e no depoimento do próprio dono da faca, que inocentou
o réu. Mesmo assim, Kamala recorreu da decisão e se negou a libertar Larsen.
Organizações humanitárias alegaram que a sentença de 28 anos era
desproporcional, mas Kamala seguiu se opondo à libertação com base em uma
tecnicalidade burocrática — o fato de que o habeas corpus fora pedido por seu
advogado fora do prazo legal.
Diversos outros exemplos de excessos de Kamala foram
divulgados no período, incluindo casos de manipulação de evidências e
impetração de recursos para impedir a realização de testes de DNA — inclusive
em casos que poderiam inocentar pessoas que aguardavam execuções no corredor da
morte.
O rigor punitivista e a “linha dura” demonstrada pela
procuradora contra jovens negros, latinos, pobres e imigrantes contrastava
bastante com o tratamento dispensado aos réus de maior poder aquisitivo. Em
2013, por exemplo, Kamala se recusou a denunciar o Banco OneWest, de
propriedade de Steven Mnuchin, mesmo com várias evidências sugestivas de
“ilegalidades generalizadas”, conforme um memorando vazado do Departamento de
Justiça. Coincidentemente ou não, o banqueiro Steve Mnuchin doou milhares de
dólares para a campanha de Kamala.
A procuradora também se envolveu em um escândalo em 2015,
quando a imprensa revelou que uma equipe de procuradores que ela chefiava havia
falsificado confissões, alterado transcrições de interrogatórios, cometido
perjúrio e outras formas de manipulação de evidências para influenciar nos
vereditos.
Eleita para o Senado em 2016 e para a vice-Presidência dos
Estados Unidos em 2020, Kamala segue perfilada às alas mais conservadoras do
Partido Democrata, mas tem flexibilizado suas posições em temas como pena de
morte e legalização da maconha. No plano externo, ela é próxima da facção dos
“Hawks”, defensores de uma política externa agressiva e intervencionista.
Ela foi uma das principais apoiadoras da proposta de
intervenção dos Estados Unidos na Síria. Defendeu igualmente a imposição de
sanções contra a China, acusando o país de possuir “níveis abismais” de
desrespeito aos direitos humanos, atacou o governo venezuelano e manifestou-se
a favor da continuidade do embargo a Cuba. Contemplada com mais de 5 milhões de
dólares pela AIPAC, principal agência do lobby sionista, Kamala é uma apoiadora
incondicional do Estado de Israel e defendeu o envio de mais 38 bilhões de
dólares para financiar o genocídio na Faixa de Gaza.
Diante do exposto, o entusiasmo de alguns com a possibilidade de vitória de Kamala parece extremamente equivocado — e perigosamente despolitizante. É compreensível que a esquerda brasileira considere a vitória da democrata como “um mal menor”, uma vez que a alternativa é o retorno de Donald Trump e o provável fortalecimento do bolsonarismo. Mas é preciso ter a sensatez e a honestidade intelectual de admitir que, no melhor dos cenários, Kamala Harris será “mais do mesmo” — e esse “mesmo” já é muito ruim. Guardemos a exaltação para quem merece.
Conhecida defensora do encarceramento em massa, contra jovens pretos, quando era procuradora na Califórnia, o que importa Kamala Harris ser mulher e negra se for continuar, entre outros crimes, a mesma cumplicidade com o Estado colonial de Israel no genocídio do povo palestino?
— Breno Altman (@brealt) July 22, 2024
Fonte: Opera Mundi
AIPAC Tracker
A vice-presidente Kamala Harris recebeu > $ 5 milhões em
apoio do lobby pró-Israel. Esse total inclui seu tempo no Senado e nas
campanhas presidenciais Biden-Harris.
Vice President Kamala Harris has received >$5 million in support from the pro-Israel lobby.
— AIPAC Tracker (@TrackAIPAC) June 28, 2024
This total includes her time in the Senate and the Biden-Harris presidential campaigns. pic.twitter.com/luWG7kjngK
Patti Politics
Deixe-me ser claro. Não esquecerei a Palestina! #JoinJill #VoteGreen2024
Let me be clear.. I will not forget about Palestine! #JoinJill #VoteGreen2024 @KamalaHarris @DrJillStein pic.twitter.com/owbb1P8wIc
— Patti Politics 🇵🇸 (@impattipolitics) July 23, 2024
FEPAL - Federação Árabe Palestina do Brasil
- "Kamala, o que você acha de Israel bombardear o campo de refugiados mais populoso de Gaza duas vezes em dois dias?"
- Kamala: "Ah, meio chato né... Mas Israel sabe o que
está fazendo e vamos continuar enviado bilhões de dólares em armas para
exterminar crianças palestinas"
- "Kamala, o que você acha de Israel bombardear o campo de refugiados mais populoso de Gaza duas vezes em dois dias?"
— FEPAL - Federação Árabe Palestina do Brasil (@FepalB) July 22, 2024
- Kamala: "Ah, meio chato né... Mas Israel sabe o que está fazendo e vamos continuar enviado bilhões de dólares em armas para exterminar crianças palestinas" pic.twitter.com/OTTRYKkXkF