Esta reportagem foi originalmente publicada no livro
“Vaza Jato: os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil”. Compre aqui.
O procurador da República Deltan Dallagnol estava esfuziante
naquele fim de tarde de quarta-feira. Havia alguns dias que ele só pensava em
uma figura de um Cristo agonizante. Era 9 de março de 2016 e, poucos dias
antes, a operação Lava Jato — que ele comandava no Ministério Público Federal
do Paraná — jogara seu lance mais ousado até então: a condução coercitiva do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Evangélicos como o procurador não costumam ter apreço por imagens e figuras de santos ou profetas.
Mas aquele Cristo era diferente: com 1,5 metro de altura, ganhara fama por
aparecer pendurado na parede do gabinete presidencial em
dezenas de fotos tiradas durante a administração de Lula. Além disso, o
procurador acreditava que a peça em madeira de tília havia sido esculpida por
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Com a saída do político da Presidência, o crucifixo também
deixou Brasília. Para Dallagnol, seus colegas procuradores e vários delegados
da Polícia Federal, a conclusão era óbvia: Lula havia roubado o objeto. Aquela
seria a melhor chance de prender o ex-presidente em flagrante. O impacto na
imprensa, os procuradores já comentavam, seria explosivo.
Apesar de não ser o objeto inicial dos pedidos de busca e
apreensão contra Lula, a caça ao crucifixo mobilizou procuradores, policiais
federais e o então juiz Sergio Moro durante a 24ª fase da Lava Jato.
Pomposamente batizada de Aletheia, uma expressão grega para a “verdade”, a ação mobilizou 200 policiais federais e 30 auditores
da Receita Federal para o cumprimento de 33 mandados de busca e apreensão e 11
de condução coercitiva. Um show feito para a televisão: desde muito cedo que
equipes andavam de um lado para o outro enquanto helicópteros sobrevoavam os
endereços do político em São Paulo. Policiais e procuradores vasculharam o
apartamento do ex-presidente, em São Bernardo do Campo, a sede do Instituto
Lula, na capital paulista, e o sítio que ele usava em Atibaia. Casas e empresas
de familiares do petista também foram alvo.
Na operação, em 4 de março, documentos e recibos que
serviriam para acusar e condenar Lula haviam sido encontrados. Um deles fazia
referência a um cofre em uma agência do Banco do Brasil no Centro de São Paulo.
Além da então mulher do ex-presidente, Marisa Letícia, o cofre também estaria
em nome de Fábio Luis, o Lulinha, seu filho mais velho. Policiais
federais foram à agência naquele dia 9 e se depararam com 132
itens acondicionados em 23 caixas lacradas. Os bens eram desejados pela Lava
Jato havia muito tempo, e a caça ao tesouro terminou quando os policiais
federais confirmaram: o cofre guardava o crucifixo.
A Vaza Jato, investigação jornalística sem precedentes na
história do Brasil, agora virou livro. Dividido em duas partes, a primeiraconta com uma extensa reportagem da jornalista Letícia Duarte – que não integraa equipe do Intercept Brasil – sobre os bastidores do trabalho realizado pelo
TIB durante a Vaza Jato
Foi essa a notícia que fez Dallagnol exultar junto aos
colegas no Telegram. Para ele, a conclusão era óbvia: ao meter as mãos no
crucifixo que seria patrimônio da União, Lula havia cometido crime de peculato
(roubo de patrimônio público cometido por servidor público) e ocultação de
bens. Por isso, seria preso em flagrante. Frisson em Curitiba.
“Orlando, parece que acharam o Cristo do alejadinho no cofre
do BB… se for isso, será nosso primeiro respiro”, escreveu Dallagnol pelo
aplicativo de mensagens ao colega Orlando Martello. Eram 16h56.
Martello respondeu vinte minutos depois, com uma pergunta:
A prisão de Lula em flagrante por roubo de um simbólico
Jesus Cristo crucificado seria uma das cenas mais fortes da história da Lava
Jato. Era tudo o que os procuradores precisavam para destruir o ex-presidente.
Igor Romario de Paula, delegado da Polícia Federal. Foto:
Paulo Lisboa/Folhapress
‘Nosssa. Se achar isso’
Durante a operação nos imóveis de Lula, os procuradores
salivavam com os relatos dos policiais enviados pelo celular. O que mais
chamava a atenção dos investigadores, inclusive pelo tamanho, eram as caixas
com o acervo de objetos que Lula trouxera de sua estada no Palácio do Planalto.
Ao ver as caixas, os agentes ficaram ainda mais convictos de que o
ex-presidente surrupiara o patrimônio público e que a OAS bancava a estada dos
bens num depósito usando dinheiro desviado da Petrobras.
Responsável por buscar Lula em casa para levá-lo ao
aeroporto de Congonhas, o delegado Luciano Flores (depois promovido quando Sergio Moro se tornou ministro da
Justiça da extrema direita) mandava mensagens de áudio contando como Lula o
recebera e orientava os colegas sobre as buscas que viriam a seguir.
Clique no play para ouvir os áudios:
Os agentes de campo já estavam familiarizados com o desejo
dos procuradores pelo Cristo. A primeira menção ao objeto havia aparecido em
uma conversa no Telegram um mês antes da abertura do cofre custodiado no Banco
do Brasil. Em fevereiro de 2016, uma foto foi compartilhada pelo procurador
Januário Paludo, um dos veteranos da Lava Jato. Pela reação do delegado Márcio
Anselmo — um sujeito que serviu de inspiração a um dos personagens centrais do
filme Polícia Federal — A lei é para todos —, a notícia de
que Lula havia roubado a obra já corria solta entre os investigadores.
Em outro grupo, no dia seguinte, o procurador Carlos
Fernando dos Santos Lima também estava interessado na história do crucifixo.
Ele pedia a colegas e policiais que iriam conduzir Lula coercitivamente e
realizar buscas para que ficassem de olho na peça.
No dia da operação, já em São Bernardo do Campo, o delegado
Igor Romário de Paula mandava fotos do resultado da busca enquanto seu colega
Márcio Anselmo pedia prisão em flagrante com base em fotos de caixas de
papelão.
Empolgados, os agentes se depararam com um problema: não
havia mandado judicial para recolher aquilo tudo. Seguiu-se, então, um debate
sobre o que fazer. Aqui aparecem novos personagens, entre eles o delegado
Maurício Moscardi, que um ano depois iria comandar uma outra operação famosa
que se revelou um fiasco: a Carne Fraca. Nela, Moscardi diria a jornalistas que
frigoríficos misturavam carne estragada com produtos químicos para mascarar o
aspecto do produto e vendê-lo normalmente, o que não foi comprovado.
Mas Moro negou a apreensão dos bens — o ex-juiz alegou que
seria desproporcional apreender todo o acervo e que, se os investigadores
tivessem suspeitas específicas, fizessem pedidos específicos para cada caixa.
No dia seguinte, a solução viria pelas mãos do procurador Januário Paludo,
amigo pessoal de Sergio Moro e muito respeitado pelos jovens da Lava Jato — é a
ele que os vários grupos intitulados Filhos do Januario fazem referência.
O museu a que Paludo se refere é uma ala do Museu Oscar
Niemeyer, mais conhecido como Museu do Olho, em Curitiba, cedida à Lava Jato
para exibição de obras de arte usadas para lavar dinheiro apreendidas pela
operação. À época, o Paraná era governado por Beto Richa, do PSDB. Anos depois,
Richa seria ele mesmo alvo da operação e acabaria preso.
A conversa terminou assim:
A solução veio na forma de uma nova ordem de busca e
apreensão, dessa vez no Banco do Brasil, cumprida quatro dias depois.
O procurador Deltan Dallagnol, que fazia a ponte da
força-tarefa da Lava Jato com o então juiz Sergio Moro. Foto: Rodolfo Buhrer/La
Imagem/Fotoarena/Folhapress
‘Seria top… duas repercussões’
As centenas de caixas de papelão encontradas no sindicato
guardavam, como a força-tarefa viria a descobrir, muitos documentos e fotos,
além de objetos como obras de arte, maquetes, um gongo e até duas esculturas de
urso polar do Canadá. Mas foi só no dia 9 de março, do meio para o fim da
tarde, que a Lava Jato finalmente recebeu a notícia que esperava, pelo teclado
do celular do delegado Igor Romário de Paula. Às 16h34, ele disparou uma
mensagem: “Jesus Cristo encontrado no BB em São Paulo”.
A mensagem causou um pico de ansiedade nos grupos da Lava
Jato. A sonhada prisão em flagrante de Lula, afinal, parecia à vista.
Enquanto o papo corria no grupo, Dallagnol, ansioso,
comunicava Sergio Moro a respeito da descoberta.
De pronto, o procurador-chefe da Lava Jato também acionou
diretamente o delegado Romário de Paula atrás da confirmação. Preocupado em
convencer a população de que a Lava Jato fazia avanços, ele queria planejar a
repercussão midiática da impressionante descoberta sobre o crime do “9” :
A alegria do procurador não durou uma hora.
A Lava Jato, que havia focado todas as atenções no Cristo
depois de receber uma fotomontagem que sugeria que a obra de arte estaria no
Palácio do Planalto desde os tempos do ex-presidente Itamar Franco, não tinha
se dado ao trabalho de procurar a história no Google. Cinco anos antes, a
revista Época já desmentira a história do roubo.
Claudio Soares, diretor da documentação histórica da
Presidência, reafirmou que o crucifixo “foi presente pessoal de um amigo ao
Presidente Lula” e disse que a imagem de Itamar que circula na internet
“trata-se de edição grosseira”, publicou a revista ainda em 2011. A própria reportagem aponta que a foto é real, porém foi feita
em outro contexto: durante uma visita de Itamar ao Planalto em 2006. O Cristo
também não havia sido esculpido por Aleijadinho. A autointitulada maior
operação anticorrupção de todos os tempos estava perseguindo uma fake news.
Frustrado, Dallagnol lamentou em uma conversa privada com o
procurador Orlando Martello. Ele chegou a proferir um raro palavrão:
Dallagnol também foi se explicar a Moro, que lhe deu um
pito.
A inacreditável e grotesca comédia de erros da força-tarefa
teria, ainda, mais um capítulo. Foi só na noite daquela quarta-feira, cinco
dias após ter pedido a apreensão de bens levados de Brasília por Lula e julgar
que havia encontrado ali o motivo para uma prisão em flagrante, que a Lava Jato
resolveu espiar o que diz a legislação a respeito de bens de ex-presidentes da
República:
Enquanto o procurador Galvão fazia observações tardias sobre
o que diz a lei a respeito de presentes a ex-presidentes, a revista Época já
exibia em seu site uma reportagem sobre os bens apreendidos do ex-presidente.
Santos Lima se penitenciou com Deltan — e acusou a Polícia Federal pela
divulgação com tom de vazamento. “Já está na época. Foi a PF. Ilusão ficar
cheio de dedos. Poderíamos ter capitalizado melhor”, escreveu Santos Lima.
A estratégia funcionou. Mesmo sendo legais, os presentes de
Lula foram vistos pela população como uma espécie de benefício imoral do ex-presidente.
Dias depois, um grampo ilegal de uma conversa entre Lula e a então presidente
Dilma Rousseff — sugerindo a ideia de ambos de que Lula poderia assumir um
ministério e, assim, garantir foro especial — seria divulgado pela GloboNews
depois do levantamento de sigilo feito por Sergio Moro.
O caldo acabou impedindo Lula de assumir o Ministério da
Casa Civil por uma decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal
Federal. Em 2019, uma reportagem da Vaza Jato em parceria com a Folha de
S.Paulo revelou que, além de dar publicidade apenas ao grampo ilegal, Moro
ainda escondera da população outros 21 áudios. As conversas gravadas pela
Polícia Federal em 2016 enfraquecem a tese usada por Moro para justificar a
decisão de publicar o áudio.
Sergio Moro absolveria Lula e Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, da acusação feita pela Lava Jato de que a guarda dos bens presidenciais se tratou de “contraprestação” de contratos da empreiteira com a Petrobras.
Já o acervo no Banco do Brasil, aquele que a Lava Jato acreditou ser a chave para prender Lula em flagrante e proceder uma via sacra de humilhações ao petista, nunca foi usado para embasar denúncias à justiça.
Outro lado
Lava Jato
É importante registrar que o Intercept, distante das melhores práticas de jornalismo, não encaminhou as supostas mensagens em que se baseia a reportagem, o que prejudica a compreensão das questões enviadas, o direito de resposta e a qualidade das informações a que o leitor tem acesso.
Registra-se ainda que tais mensagens, obtidas de forma criminosa, foram descontextualizadas ou alteradas ao longo dos últimos meses para produzir falsas acusações, que não correspondem à realidade, no contexto de um jornalismo de militância ou de teses que busca atacar a operação e seus integrantes.
De todo modo, em relação aos questionamentos apresentados, cumpre informar que o ex-presidente Lula está sendo investigado pelos crimes de peculato e lavagem de ativos, em razão da apropriação e ocultação de diversos bens públicos da Presidência da República que foram encontrados em cofre particular em banco, mantido em nome de Fabio Luis Lula da Silva e Marisa Letícia Lula da Silva, dentre os quais se encontravam, por exemplo, coroa, espadas e esculturas.
Em consequência da busca e apreensão e subsequente ação da Justiça e órgãos oficiais, 21 itens mantidos no cofre foram incorporados ao Patrimônio da Presidência da República.
A apuração é objeto dos autos 1.25.000.000119/2017-12 (convertido em procedimento eletrônico sob o nº: 1.25.000.001206/2020-84), que se encontram sob responsabilidade da Procuradoria da República em São Paulo, à qual devem ser direcionados os questionamentos.
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