A mesma PF que se calou quando Bolsonaro disse que “ia fuzilar a petralhada” agora abre inquéritos contra todos os críticos do presidente.
EM MARÇO DE 2016, no auge das investigações da Lava Jato envolvendo os governos petistas, o procurador lavajatista Carlos Fernando Lima afirmou durante uma palestra que os governos investigados do PT permitiram o fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público. Segundo ele, os governos petistas, diferentemente dos anteriores, garantiram a autonomia das instituições de investigação e possibilitaram que muita gente ligada ao partido do governo fosse investigada e até presa. “Nós esperamos que isso [a falta de autonomia dessas instituições] esteja superado”, sonhou o procurador.
O resto da história você já conhece: a Lava Jato ajudou a
arrancar Dilma do poder e a eleger Bolsonaro na eleição seguinte. Isso ficou
ainda mais evidente depois que Sérgio Moro quebrou o sigilo da delação de Palocci às vésperas do
primeiro turno, jogando lenha na fogueira do antipetismo. A divulgação das
acusações do ex-petista — infundadas como a própria Lava Jato atestaria mais tarde — ajudou a garantir a eleição de
Bolsonaro e acabaria por tornar o juiz lavajatista um dos principais ministros
do governo. Mais tarde, depois de prestar serviços pouco republicanos a Bolsonaro e sua família,
Sergio Moro pediu demissão após o presidente tentar interferir na escolha dos
nomes para comandar a Polícia Federal. Esse foi o caminho percorrido para que
chegássemos aqui hoje, assistindo à PF sendo gravemente aparelhada e
atuando como uma guarda particular de Bolsonaro, sua família e seus aliados.
Nesta semana, Guilherme Boulos foi intimado a comparecer na PF para prestar depoimentos por causa deste tweet, considerado ameaçador à vida do presidente da República:
Um lembrete para Bolsonaro: a dinastia de Luís XIV terminou na guilhotina...
— Guilherme Boulos (@GuilhermeBoulos) April 20, 2020
Em um país em que não existe guilhotina nem pena de morte, é constrangedoramente óbvio ter que dizer que não há nenhuma ameaça física ao presidente nem nada próximo disso. A guilhotina simboliza o fim de uma dinastia monárquica, e o tweet foi escrito com o intuito de fazer um alerta ao presidente de que o seu governo também pode ser interrompido.
Quando Bolsonaro prometeu durante as eleições “fuzilar a petralhada”, a PF não se moveu. O mesmo
aconteceu quando o MBL e o Vem pra Rua, em praça pública, atearam fogo em bonecos dos ministros do STF pendurados
pelo pescoço. Como esquecer também de quando manifestantes antipetistas promoveram o enforcamento simbólico dos bonecos de
Lula e da então presidenta Dilma? Nenhum desses eventos foi encarado pelos
órgãos de investigação com a mesma literalidade conferida ao tweet de Boulos.
A investigação contra o psolista tem como base a Lei de
Segurança Nacional, uma excrescência da ditadura militar, criada justamente
para intimidar os adversários políticos do regime. O inquérito contra Boulos se
baseia no artigo 26 da lei, que considera crime “caluniar ou difamar o
Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do
Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato
ofensivo à reputação”. São crimes que já estão no Código Penal, mas o
governo Bolsonaro tem recorrido à LSN, que tem uma pena mais dura.
O inquérito contra Boulos foi aberto no final do ano passado por ordem do então
ministro da Justiça e atual advogado-geral da União, André Mendonça,
empenhadíssimo em agradar Bolsonaro para abocanhar uma nomeação ao STF. Quem
disputa a vaga com ele é o procurador-geral da República, Augusto Aras. Aras já disse que não investigará Bolsonaro por usar a Lei de
Segurança Nacional para perseguir seus adversários políticos por não haver
nenhum indício disso. Está tudo dominado pelos agentes do bolsonarismo.
Boulos não é o primeiro nem o segundo opositor do presidente
a ser vítima dessa interpretação livre da LSN. Já se tornou uma farra. O
pedetista Ciro Gomes virou alvo da PF com base nessa lei por
tê-lo chamado de “ladrão” e citado as “rachadinhas” da sua família. O pedido de
abertura de inquérito foi assinado pelo próprio Bolsonaro através da
Secretaria-Geral da Presidência. O youtuber Felipe Neto também foi enquadrado
pela lei por considerar o presidente um “genocida”. O advogado Marcelo Feller
também virou alvo de investigação da PF por críticas feitas à
atuação de Bolsonaro no combate à pandemia em um debate na CNN. Algumas
verdades incômodas foram ditas pelo advogado, que chamou o presidente de
“genocida, politicamente falando”, “criminoso” e “omisso”. Em março deste
ano, cinco ativistas foram presos com base na LSN depois de
estenderem uma faixa com as palavras “Bolsonaro Genocida”. Em Tocantins, duas
pessoas foram investigadas com base na LSN por espalhar
em outdoors a mensagem de que Bolsonaro “não vale um pequi roído”.
Durante o governo Bolsonaro, o número de inquéritos abertos
pela PF com base na LSN saltou 285% em relação à gestão Dilma/Temer. Entre
2015 e 2016 foram abertos 20 inquéritos, enquanto entre 2019 e 2020 foram
abertos 77. A grande novidade trazida pelo bolsonarismo é a aplicação da lei
principalmente contra quem emite opinião negativa sobre o presidente.
Segundo dados da PF, o número de inquéritos abertos por supostas
ameaças à segurança nacional aumentou mais do que as investigações contra
lavagem de dinheiro e organizações criminosas. É assim que tem atuado a PF sob
intervenção de Bolsonaro: priorizando a intimidação dos críticos do presidente.
O abuso da utilização da LSN pelos bolsonaristas fez nascer
um movimento pela revogação da lei. A Câmara dos Deputados aprovou na última
terça-feira a urgência do projeto de mudança, que inclui, no Código Penal,
crimes contra o estado. Deputados bolsonaristas, capitaneados por Roberto
Jefferson, têm se mobilizado para tentar impedir a inclusão de um
artigo que prevê cinco anos de cadeia para quem disseminar fake news por meio
de disparos em massa durante as eleições. O desejo pela atualização da lei é
bom, mas a pressa dos deputados é ruim, pois se trata de um assunto que requer
um debate maior com a sociedade civil. Corre-se o risco de se mudar para deixar
tudo como está.
Bolsonaro rompeu com o lavajatismo quando Sergio Moro se
posicionou contra o aparelhamento da PF. Ele foi necessário para garantir a
ascensão da extrema direita ao poder, mas se tornou descartável depois que se
tornou um empecilho para o governo. Hoje, a PF e a PGR usam e abusam de uma
lei, criada durante a ditadura militar unicamente para proteger o regime, para
blindar o presidente e perseguir seus opositores. Essa é a democracia
brasileira sob a gestão Bolsonaro.
Fonte: The Intercept Brasil
Guilherme Boulos
Sobre a intimação da PF pela Lei de Segurança Nacional -
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