Uma enorme coleção de materiais nunca revelados fornece um olhar sem precedentes sobre as operações da força-tarefa anticorrupção que transformou a política brasileira e conquistou a atenção do mundo.
O doleiro Dario Messer mudou sua versão sobre o alegado pagamento de propina ao procurador Januário Paludo, ex-integrante da força-tarefa da Lava Jato no Paraná, após conseguir uma delação premiada que o livrou temporariamente da cadeia e lhe garantiu ao menos R$ 10 milhões em bens, segundo conta do próprio Ministério Público Federal.
A suspeita de que Paludo recebeu propina para proteger
Messer a partir de 2005, no caso Banestado, está na primeira proposta de
delação premiada do doleiro. A colaboração dele foi assinada pela Lava Jato e
homologada pela justiça – mas sem o trecho que levanta suspeitas contra um dos
principais integrantes da força-tarefa paranaense.
O caso Banestado investigou o envio de dinheiro do Brasil
para contas no exterior usando contas no hoje extinto banco estatal paranaense.
Como na Lava Jato, uma força-tarefa foi criada no MPF do Paraná para apurar e
processar envolvidos. Paludo fez parte do grupo, assim como Deltan Dallagnol.
Messer foi um dos investigados, mas nunca foi punido. Na
primeira versão de sua delação, ele disse que escapou dos investigadores graças
a propinas. Depois, com os benefícios do acordo de delação garantidos, disse
ter se enganado a respeito de Paludo.
Graças à delação, Messer manteve R$ 3,5 milhões que tinha
numa conta nas Bahamas, um apartamento avaliado em R$ 3 milhões no Rio,
desbloqueou a herança da mãe e ainda deixou a prisão. Atualmente, ele cumpre
prisão domiciliar em Copacabana, bairro nobre da capital fluminense.
Já a suspeita contra Paludo jamais foi investigada pelos
colegas dele no MPF. Para a cúpula do órgão, bastou a explicação do procurador.
Mas ela contradiz o que o próprio Paludo disse à justiça, anos antes, e em
conversas mantidas com colegas pelo Telegram, a respeito do doleiro.
A equipe da Lava Jato na Procuradoria Geral da República, a
PGR, arquivou o relato de Messer sobre os alegados pagamentos a Paludo sem
investigá-lo, por considerá-lo inconsistente. Já a segunda versão contada pelo
doleiro sobre o caso, tomada como verdade pelos procuradores, baseou uma
denúncia encaminhada pela força-tarefa da Lava Jato do Rio à justiça em
dezembro passado.
Em vez de pagador de propinas, a denúncia transformou Messer
em vítima de um esquema de extorsão criado por seu ex-advogado e seu ex-sócio,
que vendiam ao doleiro uma “proteção” que jamais existiu quando disseram pagar
propina a Paludo. O advogado é Antonio Figueiredo Basto, negociador de várias
delações com Curitiba – entre elas, a do também doleiro Alberto Youssef,
crucial para o desenrolar da Lava Jato.
Na mira desde os anos 1980, Messer só foi preso em 2019
Messer atualmente é conhecido como o “doleiro dos doleiros”,
graças à Lava Jato do Rio. Ele é acusado pela força-tarefa de liderar uma rede
ilegal de câmbio que movimentou mais de 1,6 bilhão de dólares entre 2011 e 2017
– R$ 8,5 bilhões, na cotação atual. Trata-se, segundo a força-tarefa, de
uma quantia inédita.
Mas a atuação dele é mapeada pelas autoridades desde 1980,
quando já era investigado pela suspeita de atuar em
esquemas de lavagem de dinheiro. Primeiro, para bicheiros ligados a escolas de
samba. Depois, no caso Banestado, que teve como personagens o então juiz Sergio
Moro, Paludo e outros procuradores da Lava Jato. Mais tarde, ele apareceu no
mensalão petista e foi citado até em documentos do Swissleaks, que revelou uma
rede de evasão fiscal existente numa agência do HSBC na Suíça em 2006 e 2007.
Messer, no entanto, jamais havia sido preso até julho de
2019. Não que as autoridades não tenham tentado. Ao menos duas vezes, a justiça
brasileira decretou sua prisão. Mas o “doleiro dos doleiros” sempre arrumou um
jeito de escapar antes que a polícia tivesse tempo de encontrá-lo.
Na cadeia – e tentando sair dela o quanto antes –,
Messer resolveu confessar crimes. Na proposta de delação, ele assumiu a
investigadores da Lava Jato que só não foi detido por ordem da operação, em
2018, porque soube com antecedência da ação policial para pegá-lo.
Também confessou ter cometido os crimes investigados no caso Banestado, pelos
quais não havia sido punido. E, num relato específico, explicou como acredita
ter se livrado de suspeitas que pairavam sobre ele desde 2005.
É justamente nesse relato que Messer conta que nada disso
foi por acaso. “Dario sempre acreditou na efetividade da compra da ‘proteção’”,
resumiram seus defensores na primeira proposta de delação. Em outras palavras,
ele afirmou ter comprado proteção do Ministério Público Federal do Paraná, e
que parte dos pagamentos eram feitos a Paludo, um dos procuradores do caso
Banestado.
Messer relatou que, de 2005 a 2013, pagou 50 mil dólares
todo mês para que fosse blindado em investigações. Disse que entregava o
dinheiro ao ex-sócio Enrico Machado e a Figueiredo Basto, na época seu advogado.
Segundo o relato redigido pela defesa de Messer, Machado e
Basto diziam que parte desse dinheiro era entregue a Paludo. Messer admitiu que
nunca esteve com o procurador, mas afirmou acreditar que contava com a ajuda
dele. E apontou dois fatos que o fizeram acreditar em tal proteção.
Em 2005, Paludo trabalhou no acordo de delação premiada do
doleiro Clark Setton, conhecido como Kiko, sócio de Messer investigado no caso
Banestado. Kiko também era defendido por Figueiredo Basto. Confessou crimes,
mas não envolveu Messer em nenhum deles. O relato seletivo, ainda assim, lhe
garantiu benefícios penais.
Já em 2011, Paludo testemunhou a pedido de Figueiredo Basto
em um processo criminal contra Messer, relacionado ao caso Banestado. O
procurador disse à justiça que investigou Messer, mas não encontrou nenhuma
prova que o ligasse às irregularidades que, anos mais tarde, o próprio doleiro
viria a confessar.
Messer já havia dito que pagava propina a Paludo. Foi em agosto de
2018, em mensagens trocadas por celular com a namorada – um ambiente mais
privativo e confortável que a cadeira de candidato a delator premiado. “Sendo
que esse Paludo é destinatário de pelo menos parte da propina paga pelos
meninos todo mês”, ele escreveu, em conversa interceptada pela Polícia Federal.
Por citar Paludo, que tem direito a foro privilegiado por
ser procurador, esse trecho do depoimento do candidato a delator foi remetido a
Brasília, para ser avaliado pela equipe da Lava Jato da PGR. E a PGR descartou
investigar um colega. O órgão entendeu que o relato de Messer não tinha provas
para que fosse incluído em seu acordo de colaboração e baseasse uma apuração.
Enquanto isso, a delação de Messer – sem a parte que
complicava Paludo – andava. Foi homologada, em agosto de 2020, por duas
varas judiciais de primeira instância do Rio. Uma delas, a sétima, a do juiz
Marcelo Bretas.
O acordo garantiu que Messer cumprirá pena máxima de 18 anos
e nove meses de prisão, não importa quantas vezes seja condenado em processos
da Lava Jato. Em troca, os procuradores afirmam que o doleiro abriu mão de
cerca de 99% de seu patrimônio, que estimam – sem explicar como chegaram
ao valor – em R$ 1 bilhão. O que significa que, se o cálculo da Lava Jato
estiver correto, Messer manteve R$ 10 milhões no bolso. Nada mau.
Foi nesse ponto que a Lava Jato do Rio chamou Messer para
depor novamente sobre a alegada taxa de proteção paga a Paludo. Aí, o doleiro
– que já tivera a delação aprovada e seguia milionário – contou uma outra
história.
Ao contrário do que havia afirmado antes, Messer dessa vez
falou não acreditar que fosse protegido. Disse mais: que acreditava ter sido enganado por Figueiredo Basto e o ex-sócio
Machado, que embolsavam, nessa nova versão, os 50 mil dólares mensais que
ele enviava para comprar autoridades.
“[Messer afirmou] Que Enrico falava em proteção junto à
Procuradoria da República e à Polícia Federal; que Enrico [Machado] falava no
nome do Dr. (sic) Januário Paludo e pessoas na Polícia Federal; que hoje tem a
percepção de que Figueiredo [Basto] e Enrico ficavam com esse dinheiro”, lê-se
no novo depoimento.
Foi essa nova versão a usada pela Lava Jato do Rio de
Janeiro para denunciar Figueiredo Basto, Enrico Machado e um outro advogado
pelos crimes de exploração de prestígio qualificada, tráfico de influência
qualificado e associação criminosa.
O novo depoimento de Messer fundamenta a tese segundo a qual
os três réus venderam um falso esquema de proteção ao doleiro. Sobre Paludo,
tudo que a Lava Jato do Rio diz é que ele teve o nome indevidamente usado na
falsa venda de proteção.
As versões conflitantes de Paludo
A decisão da PGR de arquivar o trecho da delação de Messer
que citava Paludo, no segundo semestre de 2020, não foi a primeira. Antes, em
novembro de 2019, a cúpula do Ministério Público Federal em Brasília já havia
sido provocada a investigar a alegada proteção ao doleiro.
Meses após a prisão de Messer, a Polícia Federal encontrou
no celular dele a mensagem na qual ele conversava com a namorada sobre o
“esquema com Januário Paludo e Figueiredo”.
Essa mensagem foi encaminhada à PGR, que chegou a convocar
Messer a dar explicações. Na época, ele ainda não era delator premiado. Assim,
se calou sobre o caso.
A PGR, então, pediu informações a Paludo. O procurador da
República enviou um documento ao órgão informando que era inocente e que
não fazia sentido pensar que teria protegido Messer.
Primeiro, argumentou Paludo, porque ele deixou a
força-tarefa do caso Banestado em 2005. Àquela época de 2019, as investigações
apontavam que os pagamentos da suposta proteção teriam começado em 2006
– ainda que Messer tenha dito que que começaram em 2005.
Segundo, porque as investigações contra Messer corriam no
Rio. Paludo, a partir de 2014, trabalhava na Lava Jato do Paraná. Antes, havia
atuado no Rio Grande do Sul.
Por último, o procurador argumentou que relatou indícios de
que Messer usou contas de titulares ocultos no exterior (conhecidas como contas
offshore) quando foi chamado a testemunhar a favor do doleiro pela defesa dele,
em 2011. Ou seja, Paludo nega tê-lo protegido.
Foi o bastante para a PGR, que arquivou o caso sem
aprofundar a investigação.
Acontece que, quando testemunhou para a defesa de Messer, em
2011, Paludo disse outra coisa à justiça. Na ocasião, o procurador afirmou que
não encontrou nenhuma ligação de Messer ou de membro da família dele com contas
offshore. “Até a parte onde eu fui, nós não identificamos, em princípio,
nenhuma ligação da família Messer”, disse, em documento que é público.
Paludo foi além. Afirmou que as investigações apontaram que
Clark Setton, o Kiko, aparecia como o responsável por contas investigadas. E
que a apuração não revelou nenhuma relação da família Messer com ele. “Na parte
que eu investiguei, a conclusão que eu tive, na época, é que haveria apenas
[indícios] em relação ao Clark Setton [sobre] a administração dessas contas”,
falou.
Já nos diálogos que manteve com colegas procuradores pelo
Telegram, Paludo dá mostras de estar bem informado sobre Messer e sua relação
com Setton. A outros procuradores, Paludo chega a dizer que Setton era uma
espécie de laranja, de “boi de piranha” dos Messer.
Paludo fez o comentário quando surgiram as primeiras
notícias de que Messer poderia ter sido protegido graças ao pagamento de
propina. Um dia antes, ele já falava da relação antiga entre o doleiro e
Figueiredo Basto.
Nos chats, também fica claro que Paludo é tido por colegas
de Lava Jato no Paraná como alguém bem informado sobre o que envolve Messer. Em
2017, quando o doleiro ainda não era um alvo oficial da força-tarefa do Rio de
Janeiro, um repórter procurou o então procurador Carlos Fernando dos Santos
Lima para tratar de suspeitas envolvendo o doleiro. Lima encaminhou as
mensagens e buscou informações com Paludo.
Ouviu, do colega, que a Lava Jato havia acessado uma
investigação sobre Messer que estava a cargo do procurador da República
Alexandre Nardes, do Paraná. Mas, curiosamente, a força-tarefa paranaense
resolveu mandar o caso para o Rio de Janeiro. Segundo o chat, a remessa da
investigação aos colegas fluminenses se deu em 2014, logo no início da operação
no Paraná. No Rio, uma força-tarefa da Lava Jato só seria criada em junho de
2016.
Paludo respondeu horas depois:
Membros da Lava Jato, aliás, assumiram nos diálogos privados
que nunca priorizaram investigações sobre doleiros envolvidos em casos de
corrupção apurados na operação. Procuradores do Rio chegaram a perguntar por
que eles nunca “deram bola” para isso.
Deltan Dallagnol, à época o coordenador da força-tarefa,
entrou na conversa pouco depois:
Procurado, Januário Paludo respondeu que não reconhece a
autenticidade das mensagens e não quis comentá-las. Em nota, o procurador
afirmou apenas que a força-tarefa da Lava Jato do Paraná sempre investigou
crimes relacionados à Petrobras, “estando as conexões de doleiros sendo
investigadas em outros órgãos e unidades”.
“Investigações que não tem conexão com os fatos investigados
na Lava Jato são declinadas para outras unidades do MP por decisão própria ou
judicial, como ocorreram em inúmeros casos”, complementou, quando questionado
por que enviou a investigação sobre Messer ao Rio, em 2014.
Paludo disse que não teve acesso às duas versões do doleiro
Dario Messer a respeito do pagamento da taxa de proteção e, por isso, não tem
como falar a respeito delas. Ressaltou que “se a PGR arquivou uma notícia de
fato que não tinha qualquer fundamento para abrir uma investigação, o fez por
livre convicção”.
“Investigações para serem instauradas têm que ter elementos
indiciários mínimos, não bastando a mera opinião, achismos, suspeitas ou
conjecturas. A instauração de uma ação penal para ser viável exige, além da
competência do juízo, prova da materialidade do delito e elementos suficientes
de autoria (acima de qualquer dúvida razoável), sob pena de ser temerária e
sujeitar indevidamente alguém a processo penal”, declarou.
Cobertura Completa
As mensagens secretas da Lava Jato
Ele não respondeu a questionamentos sobre a ligação de
Messer com Clark Setton.
Dario Messer também foi perguntado sobre as duas versões a
respeito da taxa de proteção apresentadas às autoridades. O advogado Átila
Machado, que hoje representa o doleiro, disse que o procedimento de colaboração
premiada é sigiloso. Por isso, “Dario Messer está impedido de falar sobre o
conteúdo da matéria”.
O advogado Antonio Figueiredo Basto não quis se pronunciar.
Em entrevistas concedidas a outros veículos de imprensa, ele sempre negou ter
recebido qualquer pagamento para garantir a Messer ou a outros clientes
proteção em investigações.
A força-tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro, que usou a
segunda versão de Messer sobre a taxa de proteção em denúncia contra Figueiredo
Basto, disse que o doleiro não alterou seu relato sobre os fatos. Segundo ela,
Messer soube do arquivamento das investigações contra Paludo na PGR e de
transações financeiras que Basto teria realizado para embolsar ele próprio a
tal taxa. Isso mudou sua percepção.
A PGR disse que a apuração preliminar sobre as suspeitas
contra Paludo e a negociação do acordo de delação premiada de Dario Messer são
sigilosos.
Fonte: The Intercept Brasil
DCM TV
Doleiro dos doleiros muda delação para inocentar procurador
da Lava Jato e Lula com sangue nozóio