Ajustes do sistema de anúncios online permitem irrigar sites
bolsonaristas sem despertar a atenção dos órgãos de controle.
O GOVERNO Jair Bolsonaro entregou mais de R$ 11
milhões ao Google, entre maio de 2019 e julho de 2020, para que o gigante da
internet distribua anúncios do governo de extrema direita pela internet. Parte
considerável desse dinheiro – até
68%, segundo o próprio Google – vai parar no bolso dos editores dos
sites que os veiculam pelo sistema AdSense.
Esse tipo de anúncio é um dos principais meios de
financiamento de sites de fake news de extrema direita que proliferaram e
ganharam musculatura na internet após a eleição de Bolsonaro. A CPMI das fake
news já identificou dois milhões de anúncios publicitários do governo que foram
parar em site de “conteúdo inadequado” por meio do
AdSense. Dezenas de sites de fake news foram beneficiados com esse dinheiro.
Mesmo antes de chegar a essa conclusão, a comissão
já havia convidado, em 2019, executivos do Google a prestar
esclarecimentos – o que ainda não ocorreu, porque os trabalhos estão parados
por causa da pandemia de coronavírus.
Agora, fica claro que o bolsonarismo foi ainda mais
generoso. Numa conta simplista, o Planalto colocou R$ 7,5 milhões (já excluída
do montante a fatia abocanhada pelo próprio Google) à disposição de todo tipo
de site, inclusive propagadores de mentiras como o Jornal da Cidade Online e o
Conexão Política, primeiros alvos do movimento Sleeping Giants Brasil.
Os dados foram compilados pelo Intercept a
partir de um pacote de contratos, termos aditivos e relatórios de despesas com
publicidade oficial enviado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria, em
resposta a requerimento feito pelo deputado federal David Miranda, do Psol
fluminense.
Com os mais de R$ 11 milhões que recebeu, o Google só fica
atrás de dois outros veículos de comunicação, a Record e o SBT, aliados de
primeira hora do bolsonarismo, e de uma empresa que fornece mídia out
of home, jargão do mercado publicitário para todo tipo de anúncio em
ambiente externo, de painéis eletrônicos em grandes avenidas a anúncios em
pontos de ônibus.
A rede de televisão da Igreja Universal do Reino de Deus
embolsou mais de R$ 17,3 milhões para propagandear o governo Bolsonaro. O canal
de Sílvio Santos, segundo colocado, outros R$ 15,4 milhões. Em seguida, está
uma fornecedora de mídia outdoor a quem o bolsonarismo entregou quase R$ 11,2
milhões, R$ 70 mil a mais do que recebeu o Google.
Fabio Wajngarten, responsável pela comunicação do governo
Bolsonaro: ele prometeu ajudar sites de fakes news a manterem anúncios e está
na mira do Ministério Público Federal. Foto: Anderson Riedel/PR
Driblando a lei
Em maio, o Sleeping Giants Brasil alertou que o Banco do
Brasil era um dos anunciantes que usava o Google AdSense para patrocinar sites
de fake news. “É realmente triste assistir o aparelho governamental interferir
e fazer uso do dinheiro do povo para empregá-lo em discursos odiosos e na
disseminação de notícia falsas”, disse à revista Veja o criador do movimento, que prefere
permanecer anônimo por temer represálias.
O relatório de despesas de publicidade oficial permite ver
quanto dinheiro o bolsonarismo colocou à disposição dos sites de fake news. Os
R$ 11 milhões pagos ao Google representam 6,5% do total gasto no período
coberto pelo relatório – R$ 168,5 milhões, pulverizados entre mais de
1.600 fornecedores de todo tipo, de grandes emissoras de televisão e redes
sociais a jornais e emissoras de rádio dos rincões do país.
Mas o Google alega sigilo comercial para não revelar os
destinatários finais do dinheiro. Num leilão, a empresa distribui os anúncios
com base no público que acessa os sites. A remuneração é por cliques: se o
usuário clicar no anúncio, o Google e o site dividem a grana. A audiência é uma
das variáveis que torna sites mais lucrativos, assim como a afinidade do
público com os anúncios.
O Google não revela quais são os anunciantes de sites
específicos. Mas nós já mostramos que, desde 2016, a extrema direita criou uma
rede de sites lucrativa para receber esse dinheiro, e recebeu inclusive treinamento do próprio Google para
bombar a audiência e lucrar mais com anúncios.
É uma corrida, portanto: quem atrair mais gente ganha mais
dinheiro. E, para atrair a audiência da extrema direita, vale mentir e inventar
– e falar bem de Bolsonaro, claro. Afinal, é bastante provável que um fã do
presidente que chegou a um site de fake news atrás de matérias que confirmem
sua fé no presidente clique num anúncio que fala bem de seu governo. É uma
relação em que todos saem ganhando – a não ser os fatos e a democracia.
Concentrando parte considerável de sua verba publicitária
nesse sistema, o governo escapa das críticas (e possíveis processos por
improbidade) de que seria alvo se escolhesse entregar diretamente dinheiro
público a sites que defendem o presidente, a cura da covid-19 pela cloroquina
(descartada pela ciência), culpam adversários de Bolsonaro pelas mortes
causadas pelo coronavírus ou simplesmente negam que ele seja a causa.
Em português claro, Bolsonaro encontrou no sistema de
anúncios do Google uma maneira de entregar dinheiro público a seu exército de
difusores de mentiras e teorias da conspiração sem ser alvo dos órgãos que
controlam os gastos do governo. Já admitiu isso publicamente e passou recibo quando sua tropa de choque esperneou em reação ao surgimento do
Sleeping Giants Brasil.
O movimento, que conseguiu retirar os anúncios do Google de
dois dos principais sites de fake news, foi alvo de ataques do secretário-executivo do Ministério
das Comunicações, Fabio Wajngarten, e dos filhos 02 e 03 do presidente, Carlos
e Eduardo Bolsonaro.
Wajngarten falou, inclusive, que iria “contornar a
situação”. Em seguida, o Banco do Brasil, um dos grandes anunciantes do
governo, retomou a veiculação de propaganda via Google AdSense em um dos sites
de fake news – até ser proibido de fazê-lo por decisão do Tribunal de Contas da União.
Para se defender, o governo tenta jogar a culpa no Google.
“Não há, nem é possível, qualquer direcionamento para sites ou blogs impróprios
porque a Secom não compra, não investe. Não existe nem blacklist nem
whitelist”, tentou se esquivar o secretário de Publicidade de Bolsonaro, Glen
Valente, numa entrevista à imprensa concedida em junho.
Só que não é assim. O sistema de anúncios do Google permite
que o cliente (no caso, o próprio governo, representado pelas agências de
publicidade que contrata) direcione seus anúncios a partir de um cardápio de
180 filtros disponíveis diretamente no sistema. Por eles, o anunciante pode
escolher o perfil do público (incluir ou não crianças, aparecer ou não em sites
que veiculam conteúdos violentos), segundo uma fonte que conhece profundamente
o sistema e que conversou com o Intercept sob sigilo.
Além dessas opções, ainda há inúmeras possibilidades de
ajustes finos, a partir do que se chama, no jargão do mercado, de listas de
positivação e de exclusão – em que se pode incluir de endereços de sites a
palavras-chave. Por exemplo: é possível pedir ao sistema para não exibir os
anúncios em sites em que apareça a expressão “direito ao aborto” e privilegiar
os que falam em “proteção à família tradicional” e “defesa da vida”. “Isso
sinaliza ao algoritmo que estou disposto a pagar mais para veicular meu anúncio
nesse tipo de site”, disse a fonte.
Em português claro, quem sabe usar esses ajustes pode
multiplicar as chances de um anúncio do governo Bolsonaro ser exibido num site
de fake news e eliminar as de que ele vá parar no de um jornal que critica o
presidente de extrema direita. Tudo isso, claro, deixa rastros, ou logs, nome
de registros de históricos de alterações feitas em sistemas de tecnologia da
informação. O próprio Google confirma a existência dessas opções.
“Nossas plataformas oferecem aos anunciantes e agências
controles robustos que permitem o bloqueio de categorias, palavras-chave e
sites específicos, além de gerarem relatórios em tempo real sobre onde os
anúncios foram exibidos. Isso é importante, pois entendemos que os anunciantes
podem não desejar seus anúncios atrelados a determinados conteúdos, mesmo
quando estes não violam nossas políticas”, disse, em nota enviada como resposta
a perguntas sobre os destinatários finais da verba de publicidade e o controle
exercido pelos anunciantes.
Esses logs podem ser pedidos ao comprador dos anúncios
– o governo – pela CPMI e pelos órgãos de controle – o Tribunal
de Contas da União ou o Ministério Público Federal, por exemplo.
O MPF já está na história. Em maio, foi aberto inquérito para investigar Fabio Wajngarten pela
suspeita de direcionar verba do governo a sites de fake news que apoiam o
governo Bolsonaro. Os procuradores veem “impacto na liberdade de expressão e de
imprensa de uma forma geral, pela potencialidade de inibição de reportagens
investigativas e críticas sobre a atual administração, o que significa censura,
ainda que por outros métodos”.
Correção: 14 de agosto, 11h20
Uma versão anterior desse texto afirmava que executivos
do Google haviam sido convidados a prestar esclarecimentos para a CPMI das fake
news após a descoberta de que R$ 2 milhões de propaganda oficial foram parar em
sites de “conteúdo inadequado”. Na verdade, o convite já havia sido feito antes
disso. O texto foi corrigido.
Fonte: The Intercept Brasil
Programa Fantástico faz um raio X de como funciona a Rede
Fake News de Jair Bolsonaro.