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sexta-feira, 29 de março de 2024

'ENTRE O MARTELO E A BIGORNA' O New York Times sustentou que o Hamas usou o estupro como arma contra Israel – mas há erros absurdos nessa reportagem


Parceria de Nat Schwartz com o New York Times gera questionamentos à narrativa apresentada sobre violência sexual relacionada ao Hamas. “Ela foi informada de que não havia nenhuma queixa de agressão sexual”, reconheceu o porta-voz do jornal. Entenda:


Grafite marcando o ataque surpresa de combatentes do Hamas a um festival de música e a um kibutz perto da fronteira com Gaza, em Tel Aviv, Israel. Foto: Alexi J. Rosenfeld/Getty Images

A nat Schwartz tinha um problema. A cineasta e ex-funcionária do setor de inteligência da Força Aérea israelense havia sido designada pelo New York Times para trabalhar com seu sobrinho, Adam Sella, e com o repórter veterano do jornal, Jeffrey Gettleman, numa investigação sobre a violência sexual do Hamas no 7 de Outubro – isso poderia alterar a forma como o mundo entendia os ataques de Israel na Faixa de Gaza. 

 

Em novembro, aumentava a oposição global à operação militar de Israel, que já tinha matado milhares de crianças, mulheres e idosos. Em suas redes sociais, que desde então o Times disse estar analisando, Schwartz curtiu um tuíte que afirmava que Israel precisava “transformar a faixa num matadouro”.

“Violem qualquer norma, rumo à vitória”, lia-se na postagem. “Aqueles diante de nós são animais humanos que não hesitam em violar regras mínimas”.

O New York Times, no entanto, tem regras e normas. Schwartz não tinha nenhuma experiência jornalística anterior. Gettleman, seu parceiro de reportagem, lhe explicou noções básicas, disse a própria Schwartz a um podcast produzido pelo Canal 12 de Israel, numa entrevista feita em hebraico, em 3 de janeiro.

Segundo ela, Gettleman estava preocupado que eles “conseguissem pelo menos duas fontes para cada detalhe que colocassem no artigo, comparando as informações”. Temos provas periciais? Temos provas visuais? Além de contar ao nosso leitor que ‘isso aconteceu’, o que podemos dizer? Podemos contar o que aconteceu com quem?”

Schwartz disse que, a princípio, estava relutante em aceitar a tarefa porque não queria ver imagens de possíveis agressões e, também, não era uma especialista em investigações do tipo. 

“Vítimas de agressão sexual são mulheres que vivenciaram algo. Eu chegar e sentar diante de uma mulher dessas… Quem sou eu, afinal?”, disse. “Não tenho os requisitos”.

Mesmo assim, ela começou a trabalhar com Gettleman na reportagem, conforme explicou na entrevista ao podcast. Repórter ganhador do Prêmio Pulitzer, Gettleman é correspondente internacional e, ao ser enviado a uma sucursal, trabalha com assistentes de reportagem e freelancers. Nesse caso, de acordo com diversas fontes da redação do jornal que conheciam o processo, Schwartz e Sella cuidavam da maior parte da reportagem de campo, enquanto Gettleman se concentrava no enquadramento e na escrita.

A reportagem resultante, publicada no fim de dezembro, foi intitulada ‘Gritos sem palavras’: como o Hamas transformou a violência sexual em arma no 7 de Outubro”. 

O relato chocante galvanizou o esforço de guerra israelense num momento em que até mesmo alguns aliados de Israel estavam expressando preocupação com a matança em larga escala de civis em Gaza. Na redação do Times, o texto foi elogiado pela chefia editorial, mas recebido com ceticismo por outros jornalistas. O principal podcast do jornal, “The Daily”, tentou transformar a matéria num episódio, mas não conseguiu aprovação da checagem de fatos, conforme o Intercept americano revelou.

O temor entre integrantes da equipe do Times críticos à cobertura do jornal sobre Gaza é que Schwartz se transforme em bode expiatório de uma falha muito mais profunda. Ela pode guardar animosidade em relação aos palestinos, não ter experiência com jornalismo investigativo e sentir pressões conflitantes entre ser uma apoiadora do esforço de guerra de Israel e uma repórter do Times, mas Schwartz não contratou a si mesma e a seu sobrinho para relatar uma das histórias mais relevantes da guerra. A chefia do New York Times contratou.

Schwartz afirmou exatamente isso numa entrevista à Rádio do Exército israelense em 31 de dezembro. “O New York Times disse: ‘Vamos fazer uma investigação sobre violência sexual’. Foi mais um caso de eles terem que me convencer”, declarou. O apresentador a interrompeu: “Era uma proposta do New York Times, a coisa toda?”

“Sem nenhuma dúvida. Sem nenhuma dúvida. Obviamente. Claro”, disse ela. “O jornal nos apoiou 200% e nos deu o tempo, o investimento e os recursos para aprofundar essa investigação o quanto fosse preciso”.

Pouco depois que a guerra irrompeu, alguns editores e repórteres reclamaram que as normas do Times os impediam de se referir ao Hamas como “terroristas”. A justificativa do departamento de padronização, dirigido por 14 anos por Philip Corbett, era que o Hamas era o governante de fato de um território específico, em vez de um grupo terrorista apátrida.



 Matar civis deliberadamente, prosseguia o argumento, não era suficiente para rotular um grupo como terrorista, pois esse rótulo poderia ser aplicado de forma bastante ampla.

Depois do 7 de Outubro, Corbett defendeu a orientação frente às pressões, mas perdeu, de acordo com fontes da redação do Times. Em 19 de outubro, um e-mail foi disparado em nome do editor-executivo Joe Kahn, dizendo que Corbett havia pedido para se afastar do cargo

Três fontes da redação disseram que a mudança estava ligada à pressão sofrida por ele para suavizar a cobertura em prol de Israel. Uma das postagens que Schwartz curtiu numa rede social, desencadeando análise do Times, defendia que, para fins de propaganda israelense, o Hamas deveria ser o tempo todo comparado ao Estado Islâmico. 

Um porta-voz do jornal disse ao Intercept: “Sua percepção sobre Phil Corbett é totalmente inverídica”.

Desde as revelações sobre a atividade recente de Schwartz em redes sociais, sua assinatura não apareceu no jornal e ela não participou de reuniões editoriais. O jornal afirmou que uma análise de suas “curtidas” nas redes está em curso. “Essas ‘curtidas’ são violações inaceitáveis das políticas de nossa empresa”, declarou o porta-voz.

O escândalo maior pode ser a reportagem em si, além do impacto determinante que teve para milhares de palestinos, cujas mortes foram justificadas pela suposta violência sexual sistemática orquestrada pelo Hamas – ao qual o jornal alegou ter denunciado.

Outro repórter do Times, que também trabalhou como editor no jornal, afirmou: “É compreensível e legítimo que bastante atenção seja direcionada a Schwartz, mas se trata muito claramente de uma decisão editorial ruim que prejudica todos os outros ótimos trabalhos sendo feitos incessantemente no jornal — tanto os relacionados quanto os sem nenhuma relação com a guerra — que conseguem provocar nossos leitores e atendem aos nossos padrões”. 

A entrevista de Schwartz ao podcast do Canal 12, traduzida pelo Intercept do hebraico, abre uma janela para questionar o processo da matéria e sugere que a missão do New York Times era reforçar uma narrativa predeterminada.

Em resposta às perguntas do Intercept sobre a entrevista, o porta-voz do New York Times voltou atrás em relação ao enquadramento do impactante artigo, que mencionava provas de que o Hamas havia usado de violência sexual como arma. De forma mais branda, ele alegou que “pode ter havido uso sistemático de agressões sexuais”.

O editor de internacional do Times, Phil Pan, afirmou em um comunicado que defende o trabalho. “Schwartz era parte de um processo rigoroso de reportagem e edição”, disse. “Ela deu contribuições valiosas e não vimos nenhuma evidência de parcialidade em seu trabalho. Continuamos confiantes na precisão de nossas reportagens e apoiamos a investigação da equipe. Mas, como dissemos, suas ‘curtidas’ em publicações ofensivas e opinativas nas redes sociais, anteriores ao seu trabalho conosco, são inaceitáveis.”

Depois da publicação desta matéria, Schwartz — que não respondeu a um pedido de entrevista — tuitou agradecendo ao Times por “apoiar as histórias importantes que publicamos”. 

E acrescentou: “Os recentes ataques contra mim não me impedirão de continuar meu trabalho”. Referindo-se à sua atividade nas redes sociais, Schwartz disse: “Entendo por que as pessoas que não me conhecem ficaram ofendidas com o ‘curtir’ involuntário que pressionei em 7/10 e peço desculpas por isso”. Pelo menos três de suas “curtidas” foram objeto de escrutínio público.

Na entrevista ao podcast, Schwartz detalha seu enorme esforço para obter confirmações de hospitais, centros de apoio a vítimas de estupro, unidades de recuperação de traumas e linhas diretas de combate a agressões sexuais em Israel, assim como sua incapacidade de conseguir uma única confirmação de qualquer um deles. 

“Ela foi informada de que não havia nenhuma queixa de agressão sexual”, reconheceu o porta-voz do Times depois que o Intercept chamou a atenção do jornal para o episódio do podcast. “No entanto, esse foi apenas o primeiro passo de sua pesquisa. Ela detalha as etapas de sua pesquisa e enfatiza os padrões rigorosos do Times para confirmar evidências”, assegurou o porta-voz do jornal.

A questão nunca foi se atos individuais de agressão sexual podem ter ocorrido no 7 de Outubro. O estupro não é incomum em guerras. 

A questão central é se o New York Times apresentou evidências sólidas para sustentar sua alegação de que havia novas informações “estabelecendo que os ataques contra mulheres não eram eventos isolados, mas parte de um padrão mais amplo de violência baseada em gênero no 7 de Outubro” — uma alegação, destacada na manchete, de que o Hamas deliberadamente empregou de violência sexual como arma de guerra.


Reservistas israelenses procuram evidências e restos humanos no Kibutz Be’eri, em Israel, no dia 21 de fevereiro de 2024. Foto: Ohad Zwigenberg/AP

A repórter acreditou em fonte que já havia sido desmentida

Schwartz começou seu trabalho sobre a violência do 7 de Outubro como seria de se esperar, ligando para as unidades chamadas de “Sala 4” nos 11 hospitais israelenses que examinam e tratam de possíveis vítimas de violência sexual, inclusive estupro. 

“A primeira coisa que fiz foi ligar para todas, e me disseram: ‘Não, nenhuma queixa de agressão sexual foi recebida’”, lembrou na entrevista ao podcast. “Fiz muitas entrevistas que não levaram a lugar algum. Eu ia a todos os hospitais psiquiátricos, sentava na frente da equipe, todo mundo totalmente comprometido com a missão e ninguém tinha encontrado uma vítima de agressão sexual”.

A etapa seguinte foi ligar para o gerente da linha direta de combate a agressões sexuais no sul de Israel, o que se mostrou igualmente infrutífero. O gerente lhe disse que não havia relatos de violência sexual. Ela descreveu a ligação como uma “conversa extremamente minuciosa”, na qual insistiu em casos específicos. “Alguém ligou para você? Você ouviu alguma coisa?”, ela lembrou de ter perguntado. “Como é possível não ter ouvido?”

Quando Schwartz deu início a seus próprios esforços para encontrar provas de agressão sexual, começaram a surgir as primeiras alegações específicas de estupro. Uma pessoa, identificada em entrevistas anônimas como paramédico da unidade médica 669 da Força Aérea Israelense, alegou ter visto evidências de que duas adolescentes do kibutz Nahal Oz tinham sido estupradas e assassinadas em seu quarto. 


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No entanto, o homem fez outras afirmações chocantes que colocaram seu relato em dúvida. Ele declarou que outro socorrista “tirou do lixo” um bebê que havia sido esfaqueado várias vezes. Também disse ter visto “frases em árabe que foram escritas nas entradas das casas (…) com sangue das pessoas que moravam nelas”. 

Nenhuma dessas mensagens existe e a história do bebê na lata de lixo foi desmascarada. O maior problema era que não havia duas garotas no kibutz que se encaixavam na descrição da fonte. Em entrevistas posteriores, ele mudou o local para o kibutz Be’eri. Mas nenhuma vítima assassinada lá correspondia à descrição, informou o site Mondoweiss.

Depois de ver essas entrevistas, Schwartz começou a ligar para pessoas no kibutz Be’eri e em outros que foram atingidos no 7 de Outubro, numa tentativa de encontrar rastros da história. “Nada. Não havia nada”, disse.

“Ninguém viu ou ouviu nada”. Ela, então, entrou em contato com o paramédico da unidade 669, que repetiu a Schwartz a mesma história contada por ele a outros veículos de comunicação, o que, segundo ela, a convenceu de que havia uma natureza sistemática na violência sexual. 

“Eu pensei ‘Ok, então aconteceu, uma pessoa viu acontecer em Be’eri, então não pode ser só uma pessoa, porque são duas garotas. Irmãs. É evidente. Algo nisso é sistemático, algo nisso me parece não ser aleatório’”, concluiu na entrevista ao podcast.

Schwartz disse que então deu início a uma série de longas conversas com funcionários israelenses da Zaka, uma organização privada de resgate ultraortodoxa que, de acordo com documentos, manipulou provas e espalhou várias histórias falsas sobre os eventos do 7 de Outubro – inclusive alegações desmentidas de que agentes do Hamas decapitaram bebês e arrancaram o feto do corpo de uma mulher grávida. 




Os trabalhadores da organização não são peritos criminais formados ou especialistas em criminalística. “Quando entramos em uma casa, usamos nossa imaginação”, disse Yossi Landau, um funcionário sênior da Zaka, ao descrever o trabalho do grupo nos locais dos ataques do 7 de Outubro. 

“Os corpos estavam nos dizendo o que aconteceu, [então] foi o que aconteceu”. Landau aparece na reportagem do Times, embora sem nenhuma menção a seu histórico bem documentado de disseminação de histórias sensacionalistas de atrocidades, que mais tarde se provaram falsas. 

Schwartz afirmou que, em suas primeiras entrevistas, os membros da Zaka não fizeram nenhuma alegação específica de estupro, mas descreveram a condição geral dos corpos que disseram ter visto. “Eles me falaram: ‘Sim, vimos mulheres nuas’ ou ‘vimos uma mulher sem roupas íntimas’. Ambas nuas, sem roupas íntimas, amarradas com abraçadeiras de plástico”.

Schwartz continuou a procurar provas em vários locais do ataque e não encontrou nenhuma testemunha que confirmasse as histórias de estupro. “Então procurei muito nos kibutzim [plural de kibutz em hebraico] e, tirando esse testemunho [do paramédico militar israelense] e uma ou outra pessoa da Zaka, as histórias não vinham de lá”, disse.

Enquanto continuava a telefonar para socorristas, Schwartz viu que canais internacionais de notícias começaram a levar ao ar entrevistas com Shari Mendes, uma arquiteta americana que trabalha numa unidade do serviço de assistência religiosa das Forças de Defesa de Israel. Enviada a um necrotério para preparar corpos para sepultamento após os ataques do 7 de Outubro, Mendes afirmou ter visto inúmeras evidências de agressões sexuais.

“Vimos evidências de estupro. As pélvis estavam quebradas, e provavelmente é preciso muito esforço para quebrar uma pélvis. E isso também ocorreu com avós e até crianças pequenas. Vimos esses corpos com nossos próprios olhos”, declarou Mendes numa entrevista. 

Mendes se tornou uma figura onipresente nas narrativas do governo israelense e da grande mídia sobre a violência sexual no 7 de Outubro, apesar de não ter credenciais médicas ou como perita para legalmente determinar um estupro. 

Ela também falou sobre outras agressões no 7 de Outubro, afirmando ao Daily Mail em outubro passado que “um bebê foi arrancado de uma grávida e decapitado, e depois a mãe foi decapitada”. 

Nenhuma mulher grávida morreu naquele dia, de acordo com a lista oficial israelense de mortos nos ataques, e o coletivo independente de verificação de informações October 7 Fact Check declarou que a história de Mendes era falsa.

Depois de ter visto entrevistas com Mendes, Schwartz ficou ainda mais convencida de que a narrativa dos estupros sistemáticos era verdadeira. 

“Fiquei tipo assim: uau, o que é isso?”, lembrou. “Para mim, parece que está começando a se multiplicar, mesmo que ainda não saibamos quais números apontar.”

Ao mesmo tempo, Schwartz disse que, às vezes, se sentia dividida, perguntando-se se estava ficando convencida da veracidade da história como um todo justamente porque procurava evidências para sustentar a tese. “Eu me perguntava o tempo todo se, ao só ouvir falar de estupro, enxergar estupro e pensar em estupro, era porque eu estava inclinada a isso”, disse. Ela deixou as dúvidas de lado. 

Na época em que Schwartz entrevistou Mendes, a história da reservista das Forças de Defesa de Israel já havia repercutido mundialmente e sido conclusivamente desmentida: nenhum bebê foi arrancado da mãe e decapitado. Entretanto, Schwartz e o New York Times continuariam a confiar no depoimento de Mendes, assim como nos de outras testemunhas com histórico de afirmações duvidosas e sem credenciais como peritos. Nenhuma questão sobre a credibilidade de Mendes foi levantada.

Shari Mendes durante um encontro realizado em 4 de dezembro de 2023 na sede da ONU, em Nova York, sobre a violência sexual nos ataques terroristas do Hamas no 7 de Outubro.


Soldados israelenses no local do festival de música Nova, no dia 21 de dezembro de 2023, em Re’im, Israel. Foto: Maja Hitij/Getty Images

Mais especulações do que provas durante a apuração

Ao podcast, Schwartz disse que seu passo seguinte foi ir a um novo centro de terapia holística criado para tratar traumas das vítimas do 7 de Outubro, especialmente as do massacre do festival de música. 

Aberta uma semana depois dos ataques, a unidade começou a receber centenas de sobreviventes que podiam buscar atendimento psicológico, fazer ioga e se tratar com medicina alternativa, acupuntura, terapias sonoras e reflexologia. O lugar foi chamado de Merhav Marpe em hebraico, ou Espaço de Cura.

Ainda na entrevista ao podcast, Schwartz disse que, em diversas visitas ao Merhav Marpe, não encontrou nenhuma evidência direta de estupros ou violência sexual. A repórter demonstrou frustração com os terapeutas e psicólogos da instituição, dizendo que eles participavam de “uma conspiração do silêncio”. “Todas as pessoas, mesmo as que ouviam esse tipo de coisa, estavam muito comprometidas com os pacientes, ou somente com quem auxiliava os pacientes, a não revelar as coisas”, disse. 

No fim, Schwartz foi embora apenas com insinuações e declarações gerais dos terapeutas sobre como as pessoas processam traumas, inclusive a violência sexual e o estupro. Ela disse que vítimas em potencial talvez estivessem com vergonha de falar, afetadas pela “síndrome do sobrevivente”, ou ainda estavam em choque. 

“Talvez também pelo fato de a sociedade israelense ser conservadora, houve uma certa tendência a manter silêncio sobre essa questão do abuso sexual”, especulou. “Eram muitas e muitas camadas que faziam com que eles não falassem”.

De acordo com a matéria publicada no Times, “dois terapeutas afirmaram estar atendendo uma mulher que sofreu estupro coletivo na rave, e não estava em condições de falar com investigadores ou repórteres”.

Schwartz disse que se concentrou nos kibutzim porque inicialmente havia considerado improvável que agressões sexuais tivessem ocorrido no festival de música. “Eu estava muito cética quanto a isso ter acontecido na área do festival, pois todos os sobreviventes com quem conversei me contaram sobre uma perseguição, uma correria, ou seja, deslocamentos de um lugar para outro”, lembrou. 

“Como [teriam tido tempo de] mexer com uma mulher? Tipo, é impossível. Ou você se esconde, ou você… você morre”.

Autoridades israelenses pressionaram por tese do estupro como arma de guerra

Uma contadora chamada Sapir descreveu uma cena repulsiva de estupro e mutilação, e Schwartz disse que ficou totalmente convencida de que havia um programa sistemático de violência sexual por parte do Hamas. “O depoimento dela é alucinante. Não é só estupro. É estupro, amputação… percebi que se tratava de algo maior do que eu imaginava, [com] muitos locais”.

A reportagem do Times declara que Sapir foi entrevistada por duas horas em um café no sul de Israel, e que ela disse ter testemunhado vários estupros, inclusive um incidente em que um agressor estupra uma mulher, enquanto outro corta seu seio com um estilete.

Na coletiva de imprensa de novembro, as autoridades israelenses disseram estar reunindo e examinando indícios materiais que confirmariam os relatos particularmente detalhados de Sapir. “A polícia afirma que ainda está coletando provas (DNA etc.) em vítimas de estupro e buscando testemunhas oculares para embasar a acusação mais sólida possível”, declarou um correspondente que cobriu o evento.

A cena descrita por Sapir produziria uma quantidade significativa de evidências físicas, mas até o momento as autoridades israelenses não foram capazes de fornecê-las. “Temos indícios, mas meu dever é encontrar provas que sustentem a história dela, além de descobrir a identidade das vítimas”, disse Adi Edri, superintendente da investigação sobre violência sexual no 7 de Outubro, uma semana depois da publicação da reportagem do Times. “Nesta etapa, não temos nenhum corpo específico”.

Sob pressão interna para defender a veracidade da matéria, o Times encarregou Gettleman, Schwartz e Sella de, na prática, refazer a reportagem, o que resultou em um texto publicado em 29 de janeiro.

No podcast do Canal 12, Schwartz é questionada se existem depoimentos de mulheres que sobreviveram a estupros no 7 de Outubro. “A maioria são cadáveres. Algumas mulheres conseguiram escapar e sobreviver”.

Ela acrescentou: “Sei que há um fator de dissociação muito significativo quando se trata de agressão sexual. Então, muitas vezes, elas não lembram. Não lembram de tudo”.

No início de dezembro, autoridades israelenses lançaram uma intensa campanha pública, acusando a comunidade internacional, e especialmente líderes feministas, de permanecerem em silêncio diante da violência sexual sistêmica e generalizada no ataque do Hamas no 7 de Outubro.



A estratégia de comunicação foi lançada nas Nações Unidas em 4 de dezembro, em um evento realizado pelo embaixador israelense e por uma ex-executiva da Meta, Sheryl Sandberg. Alvo das personalidades pró-Israel, as organizações feministas foram pegas de surpresa, pois as acusações de violência sexual ainda não haviam circulado amplamente.

Sandberg também atacou organizações de defesa dos direitos das mulheres no New York Times de 4 de dezembro, em um artigo intitulado “O que sabemos sobre a violência sexual durante os ataques do 7 de Outubro em Israel”. 

A publicação coincidiu com o lançamento da campanha na ONU. Uma correção reveladora foi posteriormente incluída no texto: “Uma versão anterior deste artigo indicava erroneamente o tipo de evidência que a polícia israelense reuniu na investigação das acusações de violência sexual cometidas no ataque do Hamas contra Israel no 7 de Outubro. A polícia está se baseando principalmente em depoimentos de testemunhas, não em autópsias ou provas periciais”.

Israel assegurou que tinha uma quantidade extraordinária de depoimentos de testemunhas oculares. “De acordo com a polícia israelense, os investigadores reuniram ‘dezenas de milhares’ de testemunhos de violência sexual cometida pelo Hamas no 7 de Outubro, inclusive no local de um festival de música que foi atacado”, relataram Schwartz, Gettleman e Stella em 4 de dezembro. 


Esses depoimentos nunca apareceram.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, insistiu no tema em um discurso em 5 de dezembro, em Tel Aviv. “Eu pergunto às organizações de direitos das mulheres, às organizações de direitos humanos, vocês ouviram falar do estupro de mulheres israelenses, atrocidades horríveis, mutilação sexual? Onde diabos vocês estão?”. 

No mesmo dia, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou num discurso: “O mundo não pode simplesmente desviar o olhar do que está acontecendo. Cabe a todos nós — governo, organizações internacionais, sociedade civil e cidadãos — condenar de maneira contundente a violência sexual dos terroristas do Hamas, sem ambiguidade. Sem ambiguidade, sem exceções”.

A investigação do Times, que durou dois meses, ainda estava sendo editada e revisada quando Schwartz começou a se preocupar com o timing, afirmou ao podcast. “Eu então disse: ‘Estamos perdendo a oportunidade. Talvez a ONU não esteja tratando de agressão sexual porque nenhum [veículo de comunicação] publica uma declaração sobre o que aconteceu lá’”. Se a matéria do Times não fosse publicada logo, “pode deixar de ser interessante”, disse. 

Schwartz afirmou que a explicação para o atraso dada a ela internamente foi do tipo “Não queremos deixar as pessoas tristes antes do Natal”.

Ela disse ainda que estava sendo pressionada por fontes da polícia israelense para que a matéria fosse publicada logo. Segundo ela, lhe perguntaram: “O New York Times não acredita que houve agressões sexuais aqui?” Para Schwartz, foi como estar numa encruzilhada.

“Também estou nesse lugar, eu também sou israelense, mas também trabalho para o New York Times”, disse. “Então o tempo todo eu meio que estou entre a espada e o punhal”. 


Policiais verificam carros danificados durante o ataque do Hamas em Netivot, fronteira sul de Israel. Foto: Amir Levy/Getty Images



 Desconfiança interna no New York Times

Em 28 de dezembro, a matéria “Gritos sem palavras” começava com a história de Gal Abdush, descrita pelo Times como “a mulher de vestido preto”.

No vídeo que mostra seu corpo carbonizado, ela parece não ter nádegas. “Autoridades da polícia israelense disseram acreditar que Abdush foi estuprada”, informou o Times. A matéria chamou Abdush de “um símbolo dos horrores que atingiram mulheres e meninas israelenses durante os ataques do 7 de Outubro”.

A reportagem do Times menciona mensagens de WhatsApp de Abdush e de seu marido para a família, mas não que alguns parentes acreditam que mensagens importantes tornam inverossímil as alegações das autoridades israelenses.

Como o Mondoweiss informou depois, Abdush mandou uma mensagem à família às 6h51, dizendo que estava com problemas na fronteira. Às 7h, seu marido enviou outra mensagem para dizer que ela tinha sido morta. A família dela afirmou que o corpo foi carbonizado por uma granada.

“Não faz nenhum sentido”, disse a irmã de Abdush. Num curto espaço de tempo, “eles a estupraram, mataram e queimaram?” Falando sobre a alegação de estupro, o cunhado dela afirmou: “A mídia inventou isso”.

Outro parente sugeriu que a família foi pressionada, com falsos pretextos, a falar com os repórteres. A irmã de Abdush escreveu no Instagram que os repórteres do Times “mencionaram que queriam escrever uma reportagem em memória de Gal, e foi isso. Se soubéssemos que o título seria sobre estupro e massacre, nunca aceitaríamos”. 

Numa matéria posterior, o Times buscou desacreditar a declaração inicial da irmã de Abdush. Segundo o jornal, ela teria dito que “estava ‘confusa sobre o que aconteceu’ e tentando ‘proteger minha irmã’”.

Todas as vezes que os repórteres do New York Times encontravam obstáculos para confirmar suspeitas, eles recorriam a autoridades israelenses anônimas ou testemunhas que já haviam sido entrevistadas várias vezes pela imprensa. 

Meses depois de iniciarem o trabalho, os repórteres se viram no mesmo ponto onde haviam começado, dependendo sobretudo da palavra de autoridades israelenses, soldados e funcionários da Zaka para comprovar a alegação de que mais de 30 corpos de mulheres e meninas foram encontrados com sinais de abuso sexual. 

Ao podcast do Canal 12, Schwartz disse que a última peça que faltava na matéria era um número concreto, dado pelas autoridades israelenses, de possíveis sobreviventes da violência sexual. “Temos quatro e podemos sustentar esse número”, ela disse que o Ministério do Bem-Estar e Assuntos Sociais a informou. Nenhum detalhe foi fornecido. A matéria do Times, no fim das contas, mencionou “pelo menos três mulheres e um homem que foram agredidos sexualmente e sobreviveram”.

Quando a matéria foi finalmente publicada, em 28 de dezembro, Schwartz descreveu a torrente de emoções e reações on-line em Israel. 

“Em Israel, as reações são maravilhosas. Nesse ponto acho que consegui encerrar o assunto, vendo que a mídia toda fala da matéria”.

Integrantes da equipe do Times, que falaram ao Intercept sob condição de anonimato, descreveram a matéria “Gritos sem palavras” como um produto dos mesmos erros que levaram à desastrosa nota do editor e à retratação do podcast “Califado”, de Rukmini Callimachi, e de uma série de reportagens sobre o grupo Estado Islâmico.

 Joe Kahn, o atual editor-executivo, era amplamente conhecido como um promotor e defensor de Callimachi. A série de reportagens, que o Times considerou numa revisão interna não ter sido suficientemente submetida à análise dos editores principais e ficado aquém do padrão de qualidade do jornal, foi finalista do Prêmio Pulitzer de 2019. 

Juntamente com outros prêmios de prestígio, a honraria foi cancelada em consequência do escândalo.

Margaret Sullivan, a última editora pública [ombudsman] do New York Times a cumprir um mandato completo antes de o jornal acabar com o cargo, em 2017, disse esperar que uma investigação seja feita sobre a matéria “Gritos sem palavras”. 

“Às vezes eu brinco que ‘é mais um ótimo dia para não ser a editora pública do New York Times’, mas a empresa poderia realmente aproveitar um neste momento para investigar em nome dos leitores”, escreveu.



Durante o podcast Canal 12, Schwartz falou dos questionamentos aos quais foi submetida. “Uma das perguntas feitas, entre as mais difíceis de conseguir responder, era: se isso aconteceu em tantos lugares, como é possível que não haja nenhuma prova pericial? Como é possível que não haja nenhum documento? Como é possível que não haja nenhum registro? Um relatório? Uma planilha do Excel? Você está falando de Shari [Mendes]? É uma pessoa que viu com os próprios olhos, e agora está falando com você. Não há nenhum registro [escrito] que torne confiável o que ela está dizendo?”

O apresentador interveio. “E você foi até as autoridades do governo israelense e pediu que lhe dessem alguma coisa, qualquer coisa. E como eles responderam?”

“‘Não há nada’”, Schwartz disse que lhe informaram. “‘Não havia nenhum conjunto de provas na cena’”.

Mas, de maneira geral, os editores apoiaram totalmente o projeto, afirmou ela. “Não houve ceticismo da parte deles, nunca”, declarou. “Isso não quer dizer que [a matéria] estava pronta, porque eu não tinha uma ‘segunda fonte’ para muita coisa”.

O porta-voz do Times apontou essa parte da entrevista como uma prova do processo rigoroso do jornal: “Revisamos a transcrição completa e está claro que você está insistindo em tirar as aspas de contexto. Na parte da entrevista a que você se refere, Anat descreve ter sido incentivada pelos editores a verificar evidências e fontes antes de publicarmos a investigação. Depois, ela fala sobre reuniões regulares com os editores, nas quais eles faziam perguntas “difíceis” e “complicadas”, e sobre o tempo que levava para executar a segunda e a terceira etapa da apuração. Tudo isso é parte de um processo rigoroso de reportagem, que continuamos a apoiar”.

Depois que a matéria foi publicada, Gettleman foi convidado a falar em um encontro sobre violência sexual na Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade Columbia, em Nova York. Seu empenho foi elogiado pelos participantes e pela moderadora, a ex-executiva do Facebook Sheryl Sandberg. Em vez de reforçar a reportagem que ajudou o New York Times a ganhar o prestigioso Prêmio Polk, Gettleman descartou a necessidade de repórteres fornecerem “provas”. 

“O que encontramos… não quero nem usar a palavra ‘prova’, porque é praticamente um termo jurídico que sugere que você está tentando comprovar uma acusação ou mostrar que tem razão num tribunal”, disse Gettleman a Sandberg. “Esse não é o meu papel. Meu papel é documentar, apresentar informações, dar voz às pessoas. E nós encontramos informações ao longo de toda a cadeia de violência, portanto, de violência sexual”.

Gettleman afirmou que sua missão era emocionar as pessoas. “Esse é nosso trabalho como jornalistas: obter as informações e divulgar a história de maneira que faça as pessoas se importarem. Não apenas para informar, mas para emocionar as pessoas. E é isso que venho fazendo há muito tempo”.

Tradução de Vitor Pamplona

Por: Jeremy ScahillRyan Grim e Daniel Boguslaw

Fonte: Intercept Brasil


07/10: O MAIOR ESCÂNDALO DE PROPAGANDA DA HISTÓRIA.

Documentário da Al Jazeera mostra como "israel" matou civis israelenses e transformou o 07/10 em uma campanha de mentiras e propaganda para desumanizar palestinos e "legitimar" o genocídio palestino. Via: @ FepalB

NA ÍNTEGRA E LEGENDADO 👇



 Num vídeo recente de 7 de outubro, um tanque israelense é visto atirando contra casas de colonos no Kibutz Be'eri, na Palestina ocupada.



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segunda-feira, 14 de setembro de 2020

A aliança da Lava Jato com a Transparência Internacional



ONG internacional teve acesso à minuta do contrato que tratava da fundação que administraria a verba da Petrobras antes dele ser assinado; diretor sugeriu que MPF estivesse fora do conselho, mas Dallagnol o ignorou

A pedido de Dallagnol, ONG internacional combinava defesa pública da força-tarefa

Mensagens de Telegram trocadas entre o procurador Deltan Dallagnol e o diretor-executivo do capítulo brasileiro da Transparência Internacional, Bruno Brandão, entregues ao Intercept Brasil e analisadas pela Agência Pública sugerem uma proximidade pouco transparente da organização com a Operação Lava Jato. 

Com credibilidade mundial no combate à corrupção, a Transparência Internacional, também conhecida pela sigla TI, atuou nos últimos anos para defender publicamente a Lava Jato e seus protagonistas dentro e fora do Brasil, por meio de entrevistas, contatos com a imprensa e publicação de notas de apoio. As mensagens revelam que a ONG agiu diversas vezes a pedido do procurador Deltan Dallagnol, que deixou no começo de setembro a força-tarefa. 

Os chats mostram que o então chefe da força-tarefa da Lava Jato tinha uma relação próxima com Bruno Brandão, diretor da Transparência Internacional. Dallagnol recorria a ele quando a imagem da operação estava em perigo ou quando queria promovê-la. 

Revelam também que a ONG teve acesso e palpitou na minuta do contrato assinado entre a força-tarefa e a Petrobras para a criação de uma fundação. A Transparência Internacional recomendou ao procurador da República Deltan Dallagnol que o Ministério Público Federal (MPF) não tivesse assento no conselho da bilionária Fundação Lava Jato, a ser formada com dinheiro das multas recolhidas pela Petrobras. Mas Dallagnol deu de ombros para a sugestão e viu sua fundação desmoronar ao ser questionada pela comandante do MPF, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge, e por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Procurada pela reportagem, a organização afirmou, por meio de nota (leia a íntegra aqui), que essa parceria, assim como a colaboração com a força-tarefa da Lava Jato, faz parte da natureza do seu trabalho e missão. A organização afirmou também que para cumprir sua missão “dialoga e coopera sistematicamente com agentes públicos, sociedade civil, jornalistas investigativos, entre outros” e que “é natural que, na consecução de sua missão institucional, tenha estabelecido parceria institucional com o MPF e colaboração com as Forças-Tarefa da Lava Jato, Greenfield, Amazônia e outras”. 

O MPF reforçou que os contatos entre o procurador e Bruno Brandão “sempre se deram de modo republicano” e foram “focados em defender a causa anticorrupção, o estado de direito e a democracia”. Leia a íntegra daresposta aqui

Bruno Brandão é diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil


“Colocando isso na boca do investidor estrangeiro, daria muita credibilidade”

Após os primeiros anos, a Lava Jato passou a receber crescentes críticas sobre o seu impacto na economia brasileira. Em junho de 2017, o então procurador-chefe da Lava Jato pediu a Brandão que o ajudasse a pensar em estratégias para a operação conseguir apoio internacional. “Fiquei pensando se não poderia haver uma declaração internacional de apoio”, escreveu em chat privado no Telegram, no dia 2 de junho de 2017, às 14h17. “Falando que é importante que para o desenvolvimento econômico do país é preciso que a investigação prossiga, dentro da lei”, acrescentou. 

Como solução, o diretor-executivo da TI chegou a propor a Dallagnol que a ONG, por meio de um estudo, desse o crédito da recuperação da economia do país à Lava Jato: “Acho que temos várias opções e que devemos começar a agir rapidamente. Podemos começar a ver isso na quinta-feira mesmo. Estamos pensando em começar uma pesquisa sobre a percepção dos maiores investidores institucionais estrangeiros no Brasil sobre o que eles pensam da Lava-Jato, se é bom pra economia ou não – e duvidaria que um investidor olhando o médio e longo prazo diria que não. Se o Brasil está começando a se recuperar podemos começar a creditar isso na conta do trabalho de vcs tb, colocando isso na boca do investidor estrangeiro daria muita credibilidade – e desmontaria um dos argumentos que os críticos mais repetem”, sugeriu Brandão a Dallagnol em 2 de junho de 2017. 

Questionada, a Transparência Internacional se posicionou afirmando que refuta veementemente o argumento de que a luta contra a corrupção é danosa à economia, mas informou que o estudo não foi feito e “se viesse a ser realizado, seguiria o mesmo processo transparente e independente de formulação e validação metodológica que seguem todos os estudos da TI”. 

Em 14 de fevereiro de 2018, no entanto, Bruno Brandão publicou uma coluna no Valor Econômico com o título: “Legado de combate à corrupção será positivo para a economia”. “Publiquei hoje um artigo no Valor usando os resultados do TRAC pra rebater o discurso oportunista de que Lava Jato e o combate à corrupção estão prejudicando a economia”, escreveu o diretor da TI a Dallagnol.

No artigo, Brandão cita o estudo publicado no início daquele mês, “Transparência em Relatórios Corporativos: as 100 Maiores Empresas e os 10 Maiores Bancos Brasileiros”, que seria, de acordo com ele, “o primeiro feito pela organização voltado exclusivamente ao setor privado brasileiro”. 

No texto, Brandão escreve que os resultados do estudo “confirmam que a luta contra a corrupção já não tem como único vetor as investigações e os processos judiciais”. “Ela também se reforça pela resposta no mercado ao que já se consolida como uma nova realidade nacional”, destaca. 

A troca de mensagens no Telegram sugere que a ONG teria sido usada também para defender interesses pessoais de Deltan Dallagnol, contrariando o código de ética e conduta da entidade, que diz que a organização prima pela transparência na defesa do interesse público: “somos sempre transparentes em nossas interações com tomadores de decisão e sobre a causa que defendemos de acordo com nossa missão e valores”, diz o texto. 

Dallagnol acionou Brandão quando o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) instaurou, em 2018, um processo administrativo contra o então procurador Carlos Fernando dos Santos Lima – hoje aposentado – por quebra de decoro, em razão de críticas ao ex-presidente Michel Temer (MDB) e ao STF na imprensa e nas redes sociais. Dallagnol demonstrou preocupação de que o caso abrisse brecha para um processo contra manifestações públicas que ele mesmo já tinha feito em redes sociais ou pela imprensa. 

Enquanto criticava privadamente a postura de Carlos Fernando, Brandão acolheu o pedido de Dallagnol. 

Os diálogos são reproduzidos no formato original em que foram entregues ao Intercept, incluindo erros de ortografia. “CF” é Carlos Fernando.


Naquele dia, o procurador não recebeu nenhuma resposta. No dia 10 de maio, voltou a cobrar um posicionamento da Transparência Internacional. “Bruno, será que a TI conseguiria soltar algo (equilibrado, como sempre) sobre liberdade de expressão até a próxima segunda?”, questionou. Dessa vez, Brandão respondeu positivamente. “Conseguimos. Vou tentar escrever algo amanhã.” 


“Solta aí”

Depois de diversas outras mensagens do procurador solicitando a nota, enfim, no dia 22 de maio de 2018, ela foi publicada na página do Facebook da Transparência Internacional. Na nota, a TI “expressa sua preocupação com a ameaça ao direito de liberdade de expressão de procuradores e promotores de Justiça” e “exorta também o órgão a esclarecer – não no caso individual, mas em interpretação geral – o que configura a quebra de decoro da qual Lima é acusado”, precipitando-se a um cenário em que Dallagnol poderia ser alvo de investigação. 

No diálogo com Brandão, Dallagnol deixa claro que precisava do posicionamento da entidade para fazer pressão política. 


Uma semana depois, o chefe da força-tarefa da Lava Jato enviou nova mensagem para Brandão, dessa vez para agradecer a contribuição. “PAD” significa “processo administrativo”. 

“Bruno, hoje foi julgado o caso do Carlos Fernando e, por 7 votos a 7, o Conselho não referendou a instauração do PAD contra Carlos Fernando, com base na preliminar de falta de representação do suposto ofendido (Temer). Em relação aos outros dois fatos, decidiram encaminhar para a corregedoria de origem (o MPF), para que tenha o trâmite regular que acontece com todas as representações (e que não havia sido adotado nesse caso). Sua voz foi importantíssima para levantar a importante discussão sobre esse caso, essencial para a liberdade de expressão, e consequente independência, dos membros do MP em casos envolvendo poderosos. Mais uma vez, gostaria de reconhecer sua importante e corajosa contribuição. Grande abraço, Deltan”, escreveu no dia 29 de maio de 2018, às 21h37 

De acordo com a Transparência Internacional, o posicionamento da nota foi impessoal e está em convergência com a missão institucional da organização e com o histórico de defesa da liberdade de expressão de agentes de aplicação da lei. Já o MPF defendeu que o fato “trata-se de interesse público e não questão de interesse particular”. 

A TI afirmou ainda que “em todos os países em que houve tentativa real de autoridades locais de levar investigações adiante, houve poderosa reação através de campanhas de deslegitimação dos processos e criminalização de seus agentes” e que “em todos os casos, a TI atuou e continua atuando contra a impunidade e, principalmente, contra as intimidações e retaliações sobre os agentes públicos”.

Na terça-feira, 8 de setembro, Dallagnol foi punido justamente por conta de seus tweets. O CNMP acatou uma queixa de Renan Calheiros (MDB-AL) a respeito de postagens nas quais o procurador afirmava que a eleição de Calheiros à presidência do Senado travaria projetos anticorrupção do Congresso. O CNMP avaliou que Dallagnol extrapolou os limites da liberdade de expressão e agiu para interferir em outro poder. A pena imposta determina que ele não pode ser promovido por um ano.


Preocupação com a percepção pública sobre apoio à Lava Jato  

Desde junho de 2017, Brandão e Dallagnol começaram a conversar sobre a criação de um fundo para distribuir aportes a projetos de combate à corrupção. A ideia partiu do diretor da TI. “Deltan, talvez uma boa ideia seria vcs criarem uma espécie de fundo para distribuir mini-grants para iniciativas de controle social e de prevenção da corrupção. A TI pode ajudar a operacionalizar isto. Seria uma mensagem muito positiva da FT-LJ também…”, escreveu Brandão à Dallagnol em 8 de junho daquele ano.



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“Difícil gerenciar pra nós. Só se for algo com a TI, mas teria que ser montado a partir daí pq nem pelo MPF posso assinar rs. Nós poderíamos participar das decisões de destinação… se quiser propor o desenho disso, gostei mto da ideia”, respondeu Deltan. 

A proposta surgiu depois de Dallagnol ter oferecido à ONG uma doação de US$ 75 mil que a força-tarefa poderia ganhar em um prêmio. “Ponto é: podemos doar pra TI?”, perguntou o procurador a Brandão. 

“Sobre a doação, mais uma vez obrigado pelo grande apoio, vou conversar com os colegas em Berlim e avaliar os riscos. Seria sem dúvida uma grande ajuda, mas o risco que vemos é comprometer – pelo menos na percepção pública – nosso apoio à Força Tarefa (que com certeza teremos que apoiar cada vez mais)”, respondeu o diretor da organização, enviando em seguida uma mensagem com a seguinte correção: “*comprometer, na percepção pública, a isenção do nosso apoio a vocês”. 

A doação não foi adiante, segundo a própria TI explicou – todas as doações são publicadas no site da organização. Mas o diálogo sobre a criação de um fundo seguiu adiante e tomou forma com a possibilidade da multa bilionária da Petrobras.


TI foi consultora informal da fundação da Lava Jato 

A Transparência Internacional foi parceira de primeira hora na criação da fundação prevista em um acordo firmado entre o MPF e a Petrobras, depois considerado ilegal pelo STF, que entendeu que o MPF estava “exacerbando suas funções”. 

O protagonismo dos procuradores na criação e gestão de uma organização de direito privado, que ficaria com uma parcela da multa da Petrobras, gerou desconfiança da sociedade e duras críticas de juristas e autoridades contra a força-tarefa da Lava Jato. O acordo previa, por exemplo, que a fundação teria sede em Curitiba e que o MPF e o MP do Paraná teriam a prerrogativa de ocupar um assento cada um no órgão de deliberação superior da fundação. Ao mesmo tempo, conforme revelado pela Folha de S.Paulo e The Intercept Brasil, Dallagnol estava negociando a criação de uma empresa para vender palestras anticorrupção em parceria com outro procurador.  

Em relatório de fim de ano denominado “Retrospectiva Brasil 2019”, em que a Transparência Internacional faz um resumo dos avanços e retrocessos da agenda anticorrupção no período, a entidade chamou de “ato hostil” o pedido de anulação do acordo feito pela então procuradora-geral da República Raquel Dodge ao STF, que suspendeu a medida em março de 2019. A verba acabou sendo destinada para o combate à Covid-19.

A ONG, no entanto, não informou à sociedade que havia participado extraoficialmente da elaboração do texto da minuta desse mesmo acordo. Ele previa a destinação de R$ 2,5 bilhões para uma fundação privada que investiria em projetos, iniciativas e entidades com atuação na prevenção e combate à corrupção – mesmo perfil da Transparência Internacional.

A destinação desse dinheiro estava sendo discutida entre os procuradores brasileiros e as autoridades americanas desde 2015, conforme revelado pela Pública em março, e é fruto de um acordo entre a Petrobras e o governo americano. Já em outubro daquele ano, Deltan Dallagnol defendia usar a verba para entidades que combatem a corrupção – e citava, inclusive, a Transparência Internacional. “Precisamos de alguém que se disponha a estudar e bolar um destino desses valores que agradaria a todos, como um fundo, entidades contra a corrupção, o sistema de saúde público, fundo de direitos difusos, fundo penitenciário, órgãos públicos que combatem corrupção, a transparência internacional Brasil ou contas abertas etc”, afirmou no Telegram aos colegas que participavam do Chat FT MPF Curitiba 2, em 8 de outubro. 

Em dezembro de 2018, mais de um mês antes de o acordo que criava a fundação se tornar público – o que aconteceu em 23 de janeiro de 2019 –, pelo Telegram Dallagnol encaminhou o arquivo com uma versão preliminar da minuta para Bruno Brandão e para Michael Mohallem, professor da Fundação Getulio Vargas Direito Rio, pedindo sugestões. 

“Caros, temos uma versão preliminar do acordo com a Petrobras. Vcs podem olhar e dar sugestões, com base na sua experiência? […]”, escreveu o procurador no chat 10M+ a Vingança, no dia 7 de dezembro de 2018. Esse grupo do Telegram, formado por Dallagnol, Brandão e Mohallem, foi criado com objetivo principal de debater as novas medidas de combate à corrupção. 

Sete dias depois da mensagem do procurador, o diretor da TI enviou um arquivo com suas sugestões para o acordo. 


Deltan Dallagnol e Bruno Brandão chegaram a discutir os pontos propostos pelo diretor-executivo da Transparência Internacional ao texto da minuta. “Bruno, suas sugestões foram ótimas e nos abreviaram um grande trabalho”, agradeceu o procurador, às 13h36 do dia 17 de dezembro de 2018. 

Entre eles, Brandão alertou Dallagnol sobre possíveis críticas, que se concretizaram após a publicação do acordo, de que “o MP está criando sua própria fundação pra ficar com o dinheiro da multa”. Deltan ignorou as sugestões do diretor da TI.


Mesmo assim, depois de a minuta ter vindo a público e causado diversas críticas, Brandão foi à imprensa defender o texto final. “A crítica [de exacerbação do papel do Judiciário] seria razoável se o Ministério Público determinasse, de maneira discricionária, o destino dos recursos. Mas não é isso que está acontecendo. Eles não estão se apropriando dos recursos; estão devolvendo para a sociedade”, defendeu Brandão, em entrevista à Folha deS.Paulo, em 3 de março de 2019.

Em 29 de novembro de 2018, o procurador Paulo Roberto Galvão se reuniu com Brandão e o professor Michael Mohallem “para ver o modelo de destinação” dos recursos da Petrobras.

No resumo do encontro que fez aos colegas no Chat Acordo Petro x DOJ x SEC, ele escreveu, sobre a proposta: “Por enquanto pedem para não ser compartilhada com Petrobras. TI tem receio de ficar fora da possibilidade de receber recursos Possibilidade de questionamento do modelo – na J&F há gente querendo dizer que o dinheiro deveria ser usado integralmente para ressarcimento ao erário – mas não afeta o nosso caso”.

A Transparência Internacional participou da elaboração de um plano de trabalho para gerir recursos da multa de R$ 2,3 bilhões imposta à J&F pela força-tarefa da Greenfield, do MPF. O acordo de leniência previa a destinação do dinheiro para projetos sociais. A colaboração formalizou-se com a assinatura de um memorando de entendimento, em 12 de dezembro de 2017, entre a TI, J&F e o MPF.

De acordo com a TI, foi com base nessa experiência que a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba solicitou à organização, em dezembro de 2018, recomendações técnicas para diretrizes de governança e destinação de investimento social, para inserção em acordo com a Petrobras.

“A TI Brasil apresentou as sugestões, baseadas nas referências do trabalho realizado no âmbito do Memorando de Entendimento, conforme solicitado pelos procuradores da Força Tarefa Lava Jato em Curitiba. Entre as recomendações apresentadas pela TI Brasil, estava o alerta para que o Ministério Público não fosse instituidor ou participasse da governança da entidade a ser criada”, destacou a entidade.

O professor Michael Mohallem afirmou que, devido à sua participação em projetos de pesquisa relacionados ao combate à corrupção, recebe “ocasionalmente consultas acadêmicas sobre iniciativas no campo do conhecimento”.

Questionada sobre a possibilidade de receber recursos, a Transparência Internacional respondeu que “nunca recebeu qualquer tipo de remuneração ou pleiteou qualquer função de gestão e jamais teve qualquer acordo para receber recursos” e que “a TI Brasil não contribuiu com recomendações para o caso dos recursos da Petrobras visando beneficiar-se”.

Segundo o MPF, o processo de reflexão e formatação do acordo foi de responsabilidade exclusiva dos 14 procuradores da força-tarefa.

“Houve grande preocupação dos procuradores em garantir mecanismos de governança para que a fundação de interesse público que seria criada atuasse segundo as melhores práticas e com ampla transparência, observando-se regras como objetividade, impessoalidade e accountability. Por isso, nesse processo, foram buscados subsídios junto a vários atores de órgãos públicos e da sociedade civil”, afirmou o MPF.

Diálogos obtidos pela reportagem mostram a proximidade do então procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, com a ONG Transparência Internacional


Conflito de interesses?

Semanas depois de o diretor da Transparência Internacional ter opinado sobre o texto da minuta, a ONG foi convidada a opinar sobre a formação da fundação. O acordo assinado pelo MPF e pela Petrobras previa que entidades da sociedade civil indicariam nomes para compor um Comitê de Curadoria Social. Seus membros seriam responsáveis por supervisionar a constituição da entidade, a cargo do próprio MPF. Por escolha de Dallagnol, a TI foi uma das primeiras organizações convidadas.

“Temos agora que começar os passos pra constituir a fundação. Precisamos expedir ofícios. Acho que um próximo passo é obter indicação de pessoas com reputação ilibada e tal… FAz um despahco para expedirmos ofícios: -para convidar AGU e CGU para indicarem pessoa para participarem da constituição da fundação… um ofício dizendo que dadas as importantes funções e expertise etc, seria muito profícuo etc… e pede pra indicar alguém -para as entidades … Olha o acordo e veja o que mais precisamos Quanto às entidades, tem que selecionar tb. De cabeça, penso em TI e Observatório Social. Tem tb a Contas Abertas, a Amarribo, o Instituto Ethos…. tem que ver quais mais. Vou perguntar”, escreveu Dallagnol a um assessor da procuradoria em 30 de janeiro de 2019.

Dallagnol chegou a ser questionado por colegas sobre a forma como essas entidades foram escolhidas. O procurador Vladimir Aras apontou falta de transparência. Ele também demonstrou incômodo com a participação do MPF e do Ministério Público Estadual do Paraná na estrutura da fundação, vista por ele como a principal fraqueza do acordo. “Pensem bem nisso. Ser fiscal e integrante da entidade fiscalizada não é uma boa prática de conformidade e governança”, observou a Dallagnol.


Questionado sobre possível conflito de interesses, o MPF ressaltou que várias entidades foram consultadas para indicar nomes de pessoas qualificadas para compor o Comitê de Curadoria Social. “O que não deve ser confundido com um convite à entidade ou a seus membros”, pontuou. 

Segundo a Procuradoria do Paraná, os critérios de destinação de recursos seriam ainda definidos em estatuto, “inclusive para evitar conflitos de interesses”. “É importante esclarecer mais uma vez que o acordo previa que o Ministério Público Federal teria uma de várias cadeiras do Conselho Curador, tendo participação reduzida, portanto, e jamais qualquer controle, sobre a planejada fundação”, acrescentou. 

À reportagem, a Transparência Internacional afirmou que “a TI Brasil não contribuiu com recomendações para o caso dos recursos da Petrobras visando beneficiar-se. Estivesse em busca de recursos, teria aceito diretamente a oferta de financiamento feita pelo grupo J&F, ainda em 2017, para cumprir obrigação de seu acordo de leniência. Em vez disso, a TI optou por se engajar em empreitada muito mais demandante e desafiadora, mas com potencial transformador da realidade da sociedade civil brasileira”. 


Parceira fiel 

A Transparência Internacional continuou apoiando a Lava Jato e seus protagonistas mesmo após as revelações da série de reportagens da Vaza Jato que explicitou o papel político da operação e mostrou comportamentos antiéticos e fora dos padrões legais de Sergio Moro, Deltan Dallagnol e outros procuradores da força-tarefa. A entidade, inclusive, amenizou o escândalo. 


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“O conteúdo das mensagens revelava um grau problemático de proximidade entre o juiz Moro e os membros da FT [força-tarefa], assim como instâncias de conduta antiética ou questionável. Embora parte das críticas feitas aos integrantes da força-tarefa seja justificada, as publicações da Vaza Jato foram usadas para atacar a operação e os seus agentes”, posicionou-se a TI no relatório de fim de ano “Retrospectiva Brasil 2019”. 

“Ainda não houve relatos de ofensas mais graves ocorridas durante as investigações ou nos julgamentos, como falsificação de provas ou coerção de testemunhas. O escândalo afetou a imagem da Operação Lava-Jato e aprofundou a divisão dentro do Ministério Público”, acrescentou. À Pública, a organização afirmou que “os vazamentos foram instrumentalizados por quem queria apenas colocar fim à maior operação de combate à corrupção no Brasil e perpetuar a impunidade”. 

No mesmo dia em que o então ministro Sergio Moro anunciou sua demissão (motivada, segundo ele, pela interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal), a ONG publicou uma forte nota de apoio a Moro. “As instituições e a sociedade brasileira devem agir para salvar a luta contra a corrupção e o regime democrático: as gravíssimas revelações do ex-ministro Sergio Moro precisam ser apuradas”, diz o título do texto. 

Dias depois, a organização criticou a tentativa do procurador-geral da República, Augusto Aras, de retomar a negociação de um acordo de delação premiada com o advogado Rodrigo Tacla Duran, apontado como operador financeiro da Odebrecht no exterior, que atingiria um amigo do ex-ministro e ex-juiz da Lava Jato. “Quando um PGR indicado politicamente transita tão intensamente no meio político, instala-se permanente receio de que suas ações não se blindem inteiramente da política”, escreveu a ONG no Twitter no dia 3 de junho. 

A Transparência Internacional, no entanto, não se manifestou quando Moro abandonou a magistratura para entrar no governo Bolsonaro, mesmo sendo o principal nome da Operação Lava Jato e o responsável pela prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o tirou da disputa eleitoral e abriu caminho para a vitória do capitão reformado. 

Em 2016, a TI deu o seu prestigioso Prêmio contra aCorrupção para a força-tarefa, afirmando que “a Operação Lava Jato começou como uma investigação local sobre lavagem de dinheiro e se transformou na maior investigação que expôs casos de corrupção no Brasil até o momento”. A organização reforçou que os promotores “lidaram com um dos maiores escândalos de corrupção do mundo, o caso Petrobras, averiguaram, processaram e obtiveram severas penas contra alguns dos membros mais poderosos da elite político-econômica do Brasil”.

Fonte: Alice Maciel, Natalia Viana, Rafael Moro Martins, AgênciaPública/The Intercept Brasil



Agora já era Deltan! A Vaza Jato mostra os bastidores do fundo de 2,5 bi que ele queria criar!


domingo, 23 de junho de 2019

A JUSTIÇA QUE BURLA A CONSTITUIÇÃO JOGA A DEMOCRACIA NA COVA



INTERCEPT - HÁ TRÊS ANOS, o premiado jornalista investigativo Lúcio de Castro descobriu que Paulo Henrique Cardoso, filho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, atuava no ramo do petróleo — um fato até então desconhecido pela opinião pública. PHC era sócio de uma empresa de comércio de produtos petroquímicos. Essa empresa mantinha negócios com empresas investigadas pela Lava Jato, como a Odebrecht e a Braskem, e possuía uma offshore em paraíso fiscal. Lúcio de Castro descobriu também que o filho de FHC era sócio, em outros negócios, de um argentino, braço direito do presidente Mauricio Macri, que se suicidou após se ver envolvido em escândalos de corrupção na Argentina.

À época, o jornalista mostrou que a Polícia Federal havia descoberto e-mail do Instituto FHC recebendo doação da Braskem. Os negócios nebulosos da família de FHC não eram meras suposições. Lúcio de Castro tinha tudo documentado. A reportagem foi oferecida para todos os grandes veículos da imprensa. Nenhum quis publicar. Os possíveis crimes contidos ali ainda não haviam sido prescritos.

Diferentemente do filho de Lula, o filho de FHC jamais teve seu nome martelando nas manchetes do noticiário nem ganhou o apelido de “Cardosinho”. A grande imprensa não queria melindrar o filho do príncipe. Em uma série de tweets publicada nessa semana após novas revelações da Vaza Jato, Lúcio de Castro lembrou como seu trabalho foi ignorado: “a reportagem que fiz mostrava outras tantas conexões da família FHC. Fiz outras tantas de mazelas dos governos Lula e Dilma, mas essas iam adiante. Sempre lembro dessa reportagem como um símbolo pra mim do que é a seletividade. De como nunca foi contra a corrupção. E não vou cansar de repetir: o filho de FHC tinha uma offshore de petróleo num paraíso fiscal.”

Os novos diálogos publicados pelo Intercept mostram que não foi só a imprensa que desviou do assunto. A Lava Jato também preferiu evitar a fadiga. Enquanto procuradores fingiam investigar FHC só para construir uma imagem pública de imparcialidade, o ex-juiz considerava que “melindrar” um apoio desse calibre teria um custo alto. O então juiz Sergio Moro deixou claro para o procurador Deltan Dallagnol que requentar um crime prescrito apenas para forjar imparcialidade não era um bom caminho a se tomar. Os sucessivos e rasgados elogios de FHC à Lava Jato tinham visibilidade internacional, o que sempre foi um ponto importante para os integrantes da força-tarefa. Não valeria a pena perder o apoio de um ex-presidente, ainda mais quando se pretendia prender outro sem provas sólidas. Esse era o cálculo político de Moro. Blindar politicamente a operação cujo trabalho viria a julgar era uma de suas prioridades. Respeitar a Constituição era secundário.

Foram muitos os casos em que FHC e seu governo apareceram na Lava Jato. Nenhum deles mereceu investigação profunda. Vamos relembrar alguns. O estaleiro Keppel Fels de Cingapura, um dos maiores do mundo, admitiu ter pagopropinas a integrantes do governo FHC para a construção de uma plataforma da Petrobras. Em delação premiada, Emílio Odebrecht disse ter financiado o caixa 2 das duas campanhas presidenciais de FHC. Pedro Barusco e Nestor Cerveró, ex-diretores da Petrobras, revelaram em delação que propinas milionárias foram recebidas pelo governo FHC em negócios da empresa (lembram do “Podemos tirar seachar melhor”?). Fernando Baiano, o operador das propinas do MDB, revelou em delação premiada que a presidência da Petrobras lhe deu ordens para beneficiar a empresa do filho de FHC. Muitos desses supostos crimes não haviam sido prescritos e ficaram por isso mesmo. Hoje sabemos que, em pelo menos em um desses casos, Sergio Moro operou nas sombras para poupar o príncipe tucano, ainda que o intuito não fosse protegê-lo, mas garantir seu apoio. Não foi à toa que FHC chamou as revelações explosivas da Vaza Jato de “tempestade em copo d’àgua”.

Em outra parte dos diálogos, procuradores debatiam sobre a possibilidade de se fazer uma busca e apreensão simultânea nos institutos Lula e FHC. O objetivo não era de ordem técnica, mas de ordem política. Pretendia-se mais uma vez incrementar a narrativa de imparcialidade da Lava Jato. O diálogo prossegue e se chega à conclusão de que a falta de provas contra FHC poderia beneficiar Lula. Ou seja, o que impediu a abertura de investigação criminal e a busca e apreensão contra o Instituto FHC não foi a falta de provas, mas o fato de que isso poderia beneficiar Lula. A imparcialidade era apenas de fachada. O que valia para Luis não valia para Fernando. Era com esse nível de seriedade e profissionalismo que as decisões eram tomadas na Lava Jato.


Moro mentiu no Senado


O ministro da Justiça esteve na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para esclarecer as conversas que teve com Dallagnol. O senador do PSD Nelsinho Trad, do Mato Grosso do Sul, perguntou a Moro se ele interferiu na composição da bancada acusatória do caso do triplex de Lula. O ministro negou.

Mas, conforme revelou o jornalista Reinaldo Azevedo, em parceria de apuração com o Intercept, 17 minutos após Moro reclamar do desempenho de Laura Tessler com Dallagnol, o coordenador da força-tarefa retransmitiu a insatisfação do juiz para o procurador Carlos Fernando Lima. Para aplacar a insatisfação de Moro, Dallagnol sugeriu mudar a escala para evitar que Tessler participasse da audiência de Lula. E foi exatamente o que aconteceu. O ministro da Justiça, portanto, mentiu aos senadores.

A cada diálogo revelado fica mais cristalino como os desejos de Sergio Moro soavam como ordens aos ouvidos dos procuradores. Confirma-se, mais uma vez, que o juiz atuava como o comandante da acusação. Ele se certificava de que a acusação faria o melhor trabalho possível e evitava dar espaço para mais um “showzinho da defesa”.

Moro disse aos senadores que não lembra de ter feito esse pedido, mas também não negou. A linha de defesa do ex-juiz e da Lava Jato carece de um sentido lógico. Eles insistem em não reconhecer a autenticidade dos diálogos e ao mesmo tempo os justificam como se fossem autênticos. Pior: estão dando corda, ainda que indiretamente, para as teorias de conspiração mais absurdas que brotam na internet e no jornalismo de aluguel. A tentativa de associar o Intercept a criminosos é uma groselha servida em mamadeira de piroca. É uma tentativa desesperada de criminalizar o jornalismo que não tem rabo preso com os poderosos.

O fato é que até agora nenhum lavajatista negou peremptoriamente nem uma vírgula dos diálogos vazados. Talvez esse seja o melhor atestado de autenticidade que a Vaza Jato poderia receber.

Os fatos estão sobre a mesa. A quebra da imparcialidade jurídica está dada. Ou a opinião pública reconhece isso como inaceitável ou seguiremos cavando a cova da democracia. O país deseja que esses arbítrios sejam sacramentados como um padrão da justiça brasileira? Os fanáticos pela Lava Jato precisam entender que, no futuro, haverá outros procuradores, outros juízes, outros réus, outro cenário político. Essa justiça freestyle, que burla preceitos constitucionais básicos em nome de um bem maior, pode se virar a qualquer momento contra quem hoje a venera.

Dizem que as pessoas não comeriam as salsichas se soubessem como são feitas. Até a chegada da Vaza Jato, não se sabia exatamente o que acontecia nas entranhas da força-tarefa. Graças ao bom jornalismo, agora se sabe. Continuar ou não comendo essa salsicha vai da consciência de cada um.


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