Parceria de Nat Schwartz com o New York Times gera
questionamentos à narrativa apresentada sobre violência sexual relacionada ao
Hamas. “Ela foi informada de que não havia nenhuma queixa de agressão sexual”,
reconheceu o porta-voz do jornal. Entenda:
Grafite marcando o ataque surpresa de combatentes do Hamas a
um festival de música e a um kibutz perto da fronteira com Gaza, em Tel Aviv,
Israel. Foto: Alexi J. Rosenfeld/Getty Images
A nat Schwartz tinha um problema. A cineasta e
ex-funcionária do setor de inteligência da Força Aérea israelense havia sido
designada pelo New York Times para trabalhar com seu sobrinho, Adam Sella, e
com o repórter veterano do jornal, Jeffrey Gettleman, numa investigação sobre a
violência sexual do Hamas no 7 de Outubro – isso poderia alterar a forma como o
mundo entendia os ataques de Israel na Faixa de Gaza.
Em novembro, aumentava a oposição global à operação militar
de Israel, que já tinha matado milhares de crianças, mulheres e idosos. Em suas
redes sociais, que desde então o Times disse estar analisando,
Schwartz curtiu
um tuíte que afirmava que Israel precisava “transformar a faixa num
matadouro”.
“Violem qualquer norma, rumo à vitória”, lia-se na postagem.
“Aqueles diante de nós são animais humanos que não hesitam em violar regras
mínimas”.
O New York Times, no entanto, tem regras e normas. Schwartz
não tinha nenhuma experiência jornalística anterior. Gettleman, seu parceiro de
reportagem, lhe explicou noções básicas, disse a própria Schwartz a um podcast
produzido pelo Canal 12 de Israel, numa entrevista feita
em hebraico, em 3 de janeiro.
Segundo ela, Gettleman estava preocupado que eles
“conseguissem pelo menos duas fontes para cada detalhe que colocassem no
artigo, comparando as informações”. Temos provas periciais? Temos provas
visuais? Além de contar ao nosso leitor que ‘isso aconteceu’, o que podemos
dizer? Podemos contar o que aconteceu com quem?”
Schwartz disse que, a princípio, estava relutante em aceitar
a tarefa porque não queria ver imagens de possíveis agressões e, também, não
era uma especialista em investigações do tipo.
“Vítimas de agressão sexual são mulheres que vivenciaram
algo. Eu chegar e sentar diante de uma mulher dessas… Quem sou eu, afinal?”,
disse. “Não tenho os requisitos”.
Mesmo assim, ela começou a trabalhar com Gettleman na
reportagem, conforme explicou na entrevista ao podcast. Repórter ganhador do
Prêmio Pulitzer, Gettleman é correspondente internacional e, ao ser enviado a
uma sucursal, trabalha com assistentes de reportagem e freelancers. Nesse caso,
de acordo com diversas fontes da redação do jornal que conheciam o processo,
Schwartz e Sella cuidavam da maior parte da reportagem de campo, enquanto
Gettleman se concentrava no enquadramento e na escrita.
A reportagem resultante, publicada no fim de dezembro, foi
intitulada ‘Gritos
sem palavras’: como o Hamas transformou a violência sexual em arma no 7 de
Outubro”.
O relato chocante galvanizou o esforço de guerra israelense
num momento em que até mesmo alguns aliados de Israel estavam expressando
preocupação com a matança em larga escala de civis em Gaza. Na redação do
Times, o texto foi elogiado pela chefia editorial, mas recebido com ceticismo
por outros jornalistas. O principal podcast do jornal, “The Daily”, tentou
transformar a matéria num episódio, mas não conseguiu aprovação da checagem de
fatos, conforme o Intercept americano revelou.
O temor entre integrantes da equipe do Times críticos à
cobertura do jornal sobre Gaza é que Schwartz se transforme em bode expiatório
de uma falha muito mais profunda. Ela pode guardar animosidade em relação aos
palestinos, não ter experiência com jornalismo investigativo e sentir pressões
conflitantes entre ser uma apoiadora do esforço de guerra de Israel e uma
repórter do Times, mas Schwartz não contratou a si mesma e a seu sobrinho para
relatar uma das histórias mais relevantes da guerra. A chefia do New York Times
contratou.
Schwartz afirmou exatamente isso numa entrevista à
Rádio do Exército israelense em 31 de dezembro. “O New York Times disse: ‘Vamos
fazer uma investigação sobre violência sexual’. Foi mais um caso de eles terem
que me convencer”, declarou. O apresentador a interrompeu: “Era uma proposta do
New York Times, a coisa toda?”
“Sem nenhuma dúvida. Sem nenhuma dúvida. Obviamente. Claro”,
disse ela. “O jornal nos apoiou 200% e nos deu o tempo, o investimento e os
recursos para aprofundar essa investigação o quanto fosse preciso”.
Pouco depois que a guerra irrompeu, alguns editores e
repórteres reclamaram que as normas do Times os impediam de se referir ao Hamas
como “terroristas”. A justificativa do departamento de padronização, dirigido
por 14 anos por Philip Corbett, era que o Hamas era o governante de fato de um
território específico, em vez de um grupo terrorista apátrida.
Matar civis deliberadamente, prosseguia o argumento,
não era suficiente para rotular um grupo como terrorista, pois esse rótulo
poderia ser aplicado de forma bastante ampla.
Depois do 7 de Outubro, Corbett defendeu a orientação frente
às pressões, mas perdeu, de acordo com fontes da redação do Times. Em 19 de
outubro, um e-mail foi disparado em nome do editor-executivo Joe Kahn, dizendo
que Corbett havia pedido para
se afastar do cargo.
Três fontes da redação disseram que a mudança estava ligada
à pressão sofrida por ele para suavizar a cobertura em prol de Israel. Uma
das postagens que Schwartz curtiu numa rede social, desencadeando
análise do Times, defendia que, para fins de propaganda israelense, o Hamas
deveria ser o tempo todo comparado ao Estado Islâmico.
Um porta-voz do jornal disse ao Intercept: “Sua percepção
sobre Phil Corbett é totalmente inverídica”.
Desde as revelações sobre a atividade recente de Schwartz em
redes sociais, sua assinatura não apareceu no jornal e ela não participou de
reuniões editoriais. O jornal afirmou que uma análise de suas “curtidas” nas
redes está em curso. “Essas ‘curtidas’ são violações inaceitáveis das políticas
de nossa empresa”, declarou o porta-voz.
O escândalo maior pode ser a reportagem em si, além do
impacto determinante que teve para milhares de palestinos, cujas mortes foram
justificadas pela suposta violência sexual sistemática orquestrada pelo Hamas –
ao qual o jornal alegou ter denunciado.
Outro repórter do Times, que também trabalhou como editor no
jornal, afirmou: “É compreensível e legítimo que bastante atenção seja
direcionada a Schwartz, mas se trata muito claramente de uma decisão editorial
ruim que prejudica todos os outros ótimos trabalhos sendo feitos
incessantemente no jornal — tanto os relacionados quanto os sem nenhuma relação
com a guerra — que conseguem provocar nossos leitores e atendem aos nossos padrões”.
A entrevista de Schwartz ao podcast do Canal 12, traduzida
pelo Intercept do hebraico, abre uma janela para questionar o processo da
matéria e sugere que a missão do New York Times era reforçar uma narrativa
predeterminada.
Em resposta às perguntas do Intercept sobre a entrevista, o
porta-voz do New York Times voltou atrás em relação ao enquadramento do
impactante artigo, que mencionava provas de que o Hamas havia usado de
violência sexual como arma. De forma mais branda, ele alegou que “pode ter havido
uso sistemático de agressões sexuais”.
O editor de internacional do Times, Phil Pan, afirmou em um
comunicado que defende o trabalho. “Schwartz era parte de um processo rigoroso
de reportagem e edição”, disse. “Ela deu contribuições valiosas e não vimos
nenhuma evidência de parcialidade em seu trabalho. Continuamos confiantes na
precisão de nossas reportagens e apoiamos a investigação da equipe. Mas, como
dissemos, suas ‘curtidas’ em publicações ofensivas e opinativas nas redes
sociais, anteriores ao seu trabalho conosco, são inaceitáveis.”
Depois da publicação desta matéria, Schwartz — que não
respondeu a um pedido de entrevista — tuitou agradecendo
ao Times por “apoiar as histórias importantes que publicamos”.
E acrescentou: “Os recentes ataques contra mim não me
impedirão de continuar meu trabalho”. Referindo-se à sua atividade nas redes
sociais, Schwartz disse: “Entendo por que as pessoas que não me conhecem
ficaram ofendidas com o ‘curtir’ involuntário que pressionei em 7/10 e peço
desculpas por isso”. Pelo menos três de suas “curtidas” foram objeto de escrutínio
público.
Na entrevista ao podcast, Schwartz detalha seu enorme
esforço para obter confirmações de hospitais, centros de apoio a vítimas de
estupro, unidades de recuperação de traumas e linhas diretas de combate a agressões
sexuais em Israel, assim como sua incapacidade de conseguir uma única
confirmação de qualquer um deles.
“Ela foi informada de que não havia nenhuma queixa de
agressão sexual”, reconheceu o porta-voz do Times depois que o Intercept chamou
a atenção do jornal para o episódio do podcast. “No entanto, esse foi apenas o
primeiro passo de sua pesquisa. Ela detalha as etapas de sua pesquisa e
enfatiza os padrões rigorosos do Times para confirmar evidências”, assegurou o
porta-voz do jornal.
A questão nunca foi se atos individuais de agressão sexual
podem ter ocorrido no 7 de Outubro. O estupro não é incomum em guerras.
A questão central é se o New York Times apresentou
evidências sólidas para sustentar sua alegação de que havia novas informações
“estabelecendo que os ataques contra mulheres não eram eventos isolados, mas
parte de um padrão mais amplo de violência baseada em gênero no 7 de Outubro” —
uma alegação, destacada na manchete, de que o Hamas deliberadamente empregou de
violência sexual como arma de guerra.
Reservistas israelenses procuram evidências e restos humanos
no Kibutz Be’eri, em Israel, no dia 21 de fevereiro de 2024. Foto: Ohad
Zwigenberg/AP
A repórter acreditou em fonte que já havia sido desmentida
Schwartz começou seu trabalho sobre a violência do 7 de
Outubro como seria de se esperar, ligando para as unidades chamadas de “Sala 4”
nos 11 hospitais israelenses que examinam e tratam de possíveis vítimas de
violência sexual, inclusive estupro.
“A primeira coisa que fiz foi ligar para todas, e me
disseram: ‘Não, nenhuma queixa de agressão sexual foi recebida’”, lembrou na
entrevista ao podcast. “Fiz muitas entrevistas que não levaram a lugar algum.
Eu ia a todos os hospitais psiquiátricos, sentava na frente da equipe, todo
mundo totalmente comprometido com a missão e ninguém tinha encontrado uma
vítima de agressão sexual”.
A etapa seguinte foi ligar para o gerente da linha direta de
combate a agressões sexuais no sul de Israel, o que se mostrou igualmente
infrutífero. O gerente lhe disse que não havia relatos de violência sexual. Ela
descreveu a ligação como uma “conversa extremamente minuciosa”, na qual
insistiu em casos específicos. “Alguém ligou para você? Você ouviu alguma
coisa?”, ela lembrou de ter perguntado. “Como é possível não ter ouvido?”
Quando Schwartz deu início a seus próprios esforços para
encontrar provas de agressão sexual, começaram a surgir as primeiras alegações
específicas de estupro. Uma pessoa, identificada em entrevistas anônimas como
paramédico da unidade médica 669 da Força Aérea Israelense, alegou ter visto
evidências de que duas adolescentes do kibutz Nahal Oz tinham sido estupradas e
assassinadas em seu quarto.
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No entanto, o homem fez outras afirmações chocantes que
colocaram seu relato em dúvida. Ele declarou que outro socorrista “tirou do
lixo” um bebê que havia sido esfaqueado várias vezes. Também disse ter visto
“frases em árabe que foram escritas nas entradas das casas (…) com sangue das
pessoas que moravam nelas”.
Nenhuma dessas mensagens existe e a história do bebê na lata
de lixo foi desmascarada. O maior problema era que não havia duas garotas no
kibutz que se encaixavam na descrição da fonte. Em entrevistas posteriores, ele
mudou o local para o kibutz Be’eri. Mas nenhuma vítima assassinada lá
correspondia à descrição, informou o site Mondoweiss.
Depois de ver essas entrevistas, Schwartz começou a ligar
para pessoas no kibutz Be’eri e em outros que foram atingidos no 7 de Outubro,
numa tentativa de encontrar rastros da história. “Nada. Não havia nada”, disse.
“Ninguém viu ou ouviu nada”. Ela, então, entrou em contato
com o paramédico da unidade 669, que repetiu a Schwartz a mesma história
contada por ele a outros veículos de comunicação, o que, segundo ela, a
convenceu de que havia uma natureza sistemática na violência sexual.
“Eu pensei ‘Ok, então aconteceu, uma pessoa viu acontecer em
Be’eri, então não pode ser só uma pessoa, porque são duas garotas. Irmãs. É
evidente. Algo nisso é sistemático, algo nisso me parece não ser aleatório’”,
concluiu na entrevista ao podcast.
Schwartz disse que então deu início a uma série de longas
conversas com funcionários israelenses da Zaka, uma organização privada de
resgate ultraortodoxa que, de acordo com documentos, manipulou provas e
espalhou várias histórias falsas sobre os eventos do 7 de Outubro – inclusive
alegações desmentidas de que agentes do Hamas decapitaram bebês e arrancaram o feto
do corpo de uma mulher grávida.
Os trabalhadores da organização não são peritos criminais
formados ou especialistas em criminalística. “Quando entramos em uma casa,
usamos nossa imaginação”, disse Yossi Landau, um funcionário sênior da Zaka, ao
descrever o trabalho do grupo nos locais dos ataques do 7 de Outubro.
“Os corpos estavam nos dizendo o que aconteceu, [então] foi
o que aconteceu”. Landau aparece na reportagem do Times, embora sem nenhuma
menção a seu histórico bem documentado de disseminação de histórias
sensacionalistas de atrocidades, que mais tarde se provaram falsas.
Schwartz afirmou que, em suas primeiras entrevistas, os
membros da Zaka não fizeram nenhuma alegação específica de estupro, mas
descreveram a condição geral dos corpos que disseram ter visto. “Eles me
falaram: ‘Sim, vimos mulheres nuas’ ou ‘vimos uma mulher sem roupas íntimas’.
Ambas nuas, sem roupas íntimas, amarradas com abraçadeiras de plástico”.
Schwartz continuou a procurar provas em vários locais do
ataque e não encontrou nenhuma testemunha que confirmasse as histórias de
estupro. “Então procurei muito nos kibutzim [plural de kibutz em hebraico] e,
tirando esse testemunho [do paramédico militar israelense] e uma ou outra
pessoa da Zaka, as histórias não vinham de lá”, disse.
Enquanto continuava a telefonar para socorristas, Schwartz
viu que canais internacionais de notícias começaram a levar ao ar entrevistas
com Shari Mendes, uma arquiteta americana que trabalha numa unidade do serviço
de assistência religiosa das Forças de Defesa de Israel. Enviada a um
necrotério para preparar corpos para sepultamento após os ataques do 7 de
Outubro, Mendes afirmou ter visto inúmeras evidências de agressões sexuais.
“Vimos evidências de estupro. As pélvis estavam quebradas, e
provavelmente é preciso muito esforço para quebrar uma pélvis. E isso também
ocorreu com avós e até crianças pequenas. Vimos esses corpos com nossos
próprios olhos”, declarou Mendes numa entrevista.
Mendes se tornou uma figura onipresente nas narrativas do
governo israelense e da grande mídia sobre a violência sexual no 7 de Outubro,
apesar de não ter credenciais médicas ou como perita para legalmente determinar
um estupro.
Ela também falou sobre outras agressões no 7 de Outubro,
afirmando ao Daily Mail em outubro passado que “um bebê foi arrancado de uma
grávida e decapitado, e depois a mãe foi decapitada”.
Nenhuma mulher grávida morreu naquele dia, de acordo com a
lista oficial israelense de mortos nos ataques, e o coletivo independente de
verificação de informações October 7 Fact Check declarou que a história de
Mendes era falsa.
Depois de ter visto entrevistas com Mendes, Schwartz ficou
ainda mais convencida de que a narrativa dos estupros sistemáticos era
verdadeira.
“Fiquei tipo assim: uau, o que é isso?”, lembrou. “Para mim,
parece que está começando a se multiplicar, mesmo que ainda não saibamos quais
números apontar.”
Ao mesmo tempo, Schwartz disse que, às vezes, se sentia
dividida, perguntando-se se estava ficando convencida da veracidade da história
como um todo justamente porque procurava evidências para sustentar a tese. “Eu
me perguntava o tempo todo se, ao só ouvir falar de estupro, enxergar estupro e
pensar em estupro, era porque eu estava inclinada a isso”, disse. Ela deixou as
dúvidas de lado.
Na época em que Schwartz entrevistou Mendes, a história da
reservista das Forças de Defesa de Israel já havia repercutido mundialmente e
sido conclusivamente desmentida: nenhum bebê foi arrancado da mãe e decapitado.
Entretanto, Schwartz e o New York Times continuariam a confiar no depoimento de
Mendes, assim como nos de outras testemunhas com histórico de afirmações
duvidosas e sem credenciais como peritos. Nenhuma questão sobre a credibilidade
de Mendes foi levantada.
Shari Mendes durante um encontro realizado em 4 de dezembro
de 2023 na sede da ONU, em Nova York, sobre a violência sexual nos ataques
terroristas do Hamas no 7 de Outubro.
Soldados israelenses no local do festival de música Nova, no
dia 21 de dezembro de 2023, em Re’im, Israel. Foto: Maja Hitij/Getty Images
Mais especulações do que provas durante a apuração
Ao podcast, Schwartz disse que seu passo seguinte foi ir a um
novo centro de terapia holística criado para tratar traumas das vítimas do 7 de
Outubro, especialmente as do massacre do festival de música.
Aberta uma semana depois dos ataques, a unidade começou
a receber centenas de sobreviventes que podiam buscar atendimento
psicológico, fazer ioga e se tratar com medicina alternativa, acupuntura,
terapias sonoras e reflexologia. O lugar foi chamado de Merhav Marpe em
hebraico, ou Espaço de Cura.
Ainda na entrevista ao podcast, Schwartz disse que, em
diversas visitas ao Merhav Marpe, não encontrou nenhuma evidência direta de
estupros ou violência sexual. A repórter demonstrou frustração com os
terapeutas e psicólogos da instituição, dizendo que eles participavam de “uma
conspiração do silêncio”. “Todas as pessoas, mesmo as que ouviam esse tipo de
coisa, estavam muito comprometidas com os pacientes, ou somente com quem
auxiliava os pacientes, a não revelar as coisas”, disse.
No fim, Schwartz foi embora apenas com insinuações e
declarações gerais dos terapeutas sobre como as pessoas processam traumas,
inclusive a violência sexual e o estupro. Ela disse que vítimas em potencial
talvez estivessem com vergonha de falar, afetadas pela “síndrome do
sobrevivente”, ou ainda estavam em choque.
“Talvez também pelo fato de a sociedade israelense ser
conservadora, houve uma certa tendência a manter silêncio sobre essa questão do
abuso sexual”, especulou. “Eram muitas e muitas camadas que faziam com que eles
não falassem”.
De acordo com a matéria publicada no Times, “dois terapeutas
afirmaram estar atendendo uma mulher que sofreu estupro coletivo na rave, e não
estava em condições de falar com investigadores ou repórteres”.
Schwartz disse que se concentrou nos kibutzim porque
inicialmente havia considerado improvável que agressões sexuais tivessem
ocorrido no festival de música. “Eu estava muito cética quanto a isso ter acontecido
na área do festival, pois todos os sobreviventes com quem conversei me contaram
sobre uma perseguição, uma correria, ou seja, deslocamentos de um lugar para
outro”, lembrou.
“Como [teriam tido tempo de] mexer com uma mulher? Tipo, é
impossível. Ou você se esconde, ou você… você morre”.
Autoridades israelenses pressionaram por tese do estupro
como arma de guerra
Uma contadora chamada Sapir descreveu uma cena repulsiva de estupro e
mutilação, e Schwartz disse que ficou totalmente convencida de que havia um
programa sistemático de violência sexual por parte do Hamas. “O depoimento dela
é alucinante. Não é só estupro. É estupro, amputação… percebi que se tratava de
algo maior do que eu imaginava, [com] muitos locais”.
A reportagem do Times declara que Sapir foi entrevistada por duas horas em um
café no sul de Israel, e que ela disse ter testemunhado vários estupros,
inclusive um incidente em que um agressor estupra uma mulher, enquanto outro
corta seu seio com um estilete.
Na coletiva de imprensa de novembro, as autoridades israelenses disseram estar
reunindo e examinando indícios materiais que confirmariam os relatos
particularmente detalhados de Sapir. “A polícia afirma que ainda está coletando
provas (DNA etc.) em vítimas de estupro e buscando testemunhas oculares para
embasar a acusação mais sólida possível”, declarou
um correspondente que cobriu o evento.
A cena descrita por Sapir produziria uma quantidade significativa de evidências
físicas, mas até o momento as autoridades israelenses não foram capazes de
fornecê-las. “Temos indícios, mas meu dever é encontrar provas que sustentem a
história dela, além de descobrir a identidade das vítimas”, disse Adi
Edri, superintendente da investigação sobre violência sexual no 7 de Outubro,
uma semana depois da publicação da reportagem do Times. “Nesta etapa, não temos
nenhum corpo específico”.
Sob
pressão interna para defender a veracidade da matéria, o Times
encarregou Gettleman, Schwartz e Sella de, na prática, refazer a reportagem, o
que resultou em um texto publicado em 29 de janeiro.
No podcast do Canal 12, Schwartz é questionada se existem depoimentos de
mulheres que sobreviveram a estupros no 7 de Outubro. “A maioria são cadáveres.
Algumas mulheres conseguiram escapar e sobreviver”.
Ela acrescentou: “Sei que há um fator de dissociação muito significativo quando
se trata de agressão sexual. Então, muitas vezes, elas não lembram. Não lembram
de tudo”.
No início de dezembro, autoridades israelenses lançaram uma intensa campanha
pública, acusando a comunidade internacional, e especialmente líderes
feministas, de permanecerem em silêncio diante da violência sexual sistêmica e
generalizada no ataque do Hamas no 7 de Outubro.
A estratégia de comunicação foi lançada
nas Nações Unidas em 4 de dezembro, em um evento realizado pelo
embaixador israelense e por uma ex-executiva da Meta, Sheryl Sandberg. Alvo das
personalidades pró-Israel, as organizações feministas foram pegas de surpresa,
pois as acusações de violência sexual ainda não haviam circulado amplamente.
Sandberg também atacou organizações de defesa dos direitos das mulheres no
New York Times de 4 de dezembro, em um artigo intitulado “O que
sabemos sobre a violência sexual durante os ataques do 7 de Outubro em
Israel”.
A publicação coincidiu com o lançamento da campanha na ONU.
Uma correção reveladora foi posteriormente incluída no texto: “Uma versão
anterior deste artigo indicava erroneamente o tipo de evidência que a polícia
israelense reuniu na investigação das acusações de violência sexual cometidas
no ataque do Hamas contra Israel no 7 de Outubro. A polícia está se baseando
principalmente em depoimentos de testemunhas, não em autópsias ou provas periciais”.
Israel assegurou que tinha uma quantidade extraordinária de
depoimentos de testemunhas oculares. “De acordo com a polícia israelense, os
investigadores reuniram ‘dezenas de milhares’ de testemunhos de violência
sexual cometida pelo Hamas no 7 de Outubro, inclusive no local de um festival
de música que foi atacado”, relataram Schwartz, Gettleman e Stella em 4 de
dezembro.
Esses depoimentos nunca apareceram.
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, insistiu
no tema em um discurso em 5 de dezembro, em Tel Aviv. “Eu pergunto às
organizações de direitos das mulheres, às organizações de direitos humanos,
vocês ouviram falar do estupro de mulheres israelenses, atrocidades horríveis,
mutilação sexual? Onde diabos vocês estão?”.
No mesmo dia, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden,
afirmou num discurso: “O mundo não pode simplesmente desviar o olhar do que
está acontecendo. Cabe a todos nós — governo, organizações internacionais,
sociedade civil e cidadãos — condenar de maneira contundente a violência sexual
dos terroristas do Hamas, sem ambiguidade. Sem ambiguidade, sem exceções”.
A investigação do Times, que durou dois meses, ainda estava
sendo editada e revisada quando Schwartz começou a se preocupar com o timing,
afirmou ao podcast. “Eu então disse: ‘Estamos perdendo a oportunidade. Talvez a
ONU não esteja tratando de agressão sexual porque nenhum [veículo de
comunicação] publica uma declaração sobre o que aconteceu lá’”. Se a matéria do
Times não fosse publicada logo, “pode deixar de ser interessante”, disse.
Schwartz afirmou que a explicação para o atraso dada a ela
internamente foi do tipo “Não queremos deixar as pessoas tristes antes do
Natal”.
Ela disse ainda que estava sendo pressionada por fontes da
polícia israelense para que a matéria fosse publicada logo. Segundo ela, lhe
perguntaram: “O New York Times não acredita que houve agressões sexuais aqui?”
Para Schwartz, foi como estar numa encruzilhada.
“Também estou nesse lugar, eu também sou israelense, mas
também trabalho para o New York Times”, disse. “Então o tempo todo eu meio que
estou entre a espada e o punhal”.
Policiais verificam carros danificados durante o ataque do
Hamas em Netivot, fronteira sul de Israel. Foto: Amir Levy/Getty Images
Desconfiança interna no New York Times
Em 28 de dezembro, a matéria “Gritos sem palavras” começava
com a história de Gal Abdush, descrita pelo Times como “a mulher de vestido
preto”.
No vídeo que mostra seu corpo carbonizado, ela parece não ter nádegas.
“Autoridades da polícia israelense disseram acreditar que Abdush foi
estuprada”, informou o Times. A matéria chamou Abdush de “um símbolo dos
horrores que atingiram mulheres e meninas israelenses durante os ataques do 7
de Outubro”.
A reportagem do Times menciona mensagens de WhatsApp de Abdush e de seu marido
para a família, mas não que alguns
parentes acreditam que mensagens importantes tornam inverossímil as
alegações das autoridades israelenses.
Como
o Mondoweiss informou depois, Abdush mandou uma mensagem à família às 6h51,
dizendo que estava com problemas na fronteira. Às 7h, seu marido enviou outra
mensagem para dizer que ela tinha sido morta. A família dela afirmou que o
corpo foi carbonizado por uma granada.
“Não faz nenhum sentido”, disse a irmã de Abdush. Num curto
espaço de tempo, “eles a estupraram, mataram e queimaram?” Falando sobre a
alegação de estupro, o cunhado dela afirmou:
“A mídia inventou isso”.
Outro parente sugeriu que a família foi pressionada, com
falsos pretextos, a falar com os repórteres. A irmã de Abdush escreveu no
Instagram que os repórteres do Times “mencionaram que queriam escrever uma
reportagem em memória de Gal, e foi isso. Se soubéssemos que o título seria
sobre estupro e massacre, nunca aceitaríamos”.
Numa matéria posterior, o Times buscou desacreditar a
declaração inicial da irmã de Abdush. Segundo o jornal, ela teria dito que
“estava ‘confusa sobre o que aconteceu’ e tentando ‘proteger minha irmã’”.
Todas as vezes que os repórteres do New York Times
encontravam obstáculos para confirmar suspeitas, eles recorriam a autoridades
israelenses anônimas ou testemunhas que já haviam sido entrevistadas várias
vezes pela imprensa.
Meses depois de iniciarem o trabalho, os repórteres se viram
no mesmo ponto onde haviam começado, dependendo sobretudo da palavra de
autoridades israelenses, soldados e funcionários da Zaka para comprovar a
alegação de que mais de 30 corpos de mulheres e meninas foram encontrados com
sinais de abuso sexual.
Ao podcast do Canal 12, Schwartz disse que a última peça que
faltava na matéria era um número concreto, dado pelas autoridades israelenses,
de possíveis sobreviventes da violência sexual. “Temos quatro e podemos
sustentar esse número”, ela disse que o Ministério do Bem-Estar e Assuntos
Sociais a informou. Nenhum detalhe foi fornecido. A matéria do Times, no fim
das contas, mencionou “pelo menos três mulheres e um homem que foram agredidos
sexualmente e sobreviveram”.
Quando a matéria foi finalmente publicada, em 28 de
dezembro, Schwartz descreveu a torrente de emoções e reações on-line em
Israel.
“Em Israel, as reações são maravilhosas. Nesse ponto acho
que consegui encerrar o assunto, vendo que a mídia toda fala da matéria”.
Integrantes da equipe do Times, que falaram ao Intercept sob
condição de anonimato, descreveram a matéria “Gritos sem palavras” como um
produto dos mesmos erros que levaram à desastrosa nota do editor e à retratação
do podcast “Califado”, de Rukmini Callimachi, e de uma série de reportagens
sobre o grupo Estado Islâmico.
Joe Kahn, o atual editor-executivo, era amplamente
conhecido como um promotor e defensor de Callimachi. A série de
reportagens, que o Times considerou numa revisão
interna não ter sido suficientemente submetida à análise dos editores
principais e ficado aquém do padrão de qualidade do jornal, foi finalista do
Prêmio Pulitzer de 2019.
Juntamente com outros prêmios de prestígio, a honraria
foi cancelada em
consequência do escândalo.
Margaret Sullivan, a última editora pública [ombudsman] do
New York Times a cumprir um mandato completo antes de o jornal acabar com o
cargo, em 2017, disse esperar
que uma investigação seja feita sobre a matéria “Gritos sem palavras”.
“Às vezes eu brinco que ‘é mais um ótimo dia para não ser a
editora pública do New York Times’, mas a empresa poderia realmente aproveitar
um neste momento para investigar em nome dos leitores”, escreveu.
Durante o podcast Canal 12, Schwartz falou dos
questionamentos aos quais foi submetida. “Uma das perguntas feitas, entre as
mais difíceis de conseguir responder, era: se isso aconteceu em tantos lugares,
como é possível que não haja nenhuma prova pericial? Como é possível que não
haja nenhum documento? Como é possível que não haja nenhum registro? Um
relatório? Uma planilha do Excel? Você está falando de Shari [Mendes]? É uma
pessoa que viu com os próprios olhos, e agora está falando com você. Não há
nenhum registro [escrito] que torne confiável o que ela está dizendo?”
O apresentador interveio. “E você foi até as autoridades do
governo israelense e pediu que lhe dessem alguma coisa, qualquer coisa. E como
eles responderam?”
“‘Não há nada’”, Schwartz disse que lhe informaram. “‘Não
havia nenhum conjunto de provas na cena’”.
Mas, de maneira geral, os editores apoiaram totalmente o
projeto, afirmou ela. “Não houve ceticismo da parte deles, nunca”, declarou.
“Isso não quer dizer que [a matéria] estava pronta, porque eu não tinha uma
‘segunda fonte’ para muita coisa”.
O porta-voz do Times apontou essa parte da entrevista como
uma prova do processo rigoroso do jornal: “Revisamos a transcrição completa e
está claro que você está insistindo em tirar as aspas de contexto. Na parte da
entrevista a que você se refere, Anat descreve ter sido incentivada pelos
editores a verificar evidências e fontes antes de publicarmos a investigação.
Depois, ela fala sobre reuniões regulares com os editores, nas quais eles
faziam perguntas “difíceis” e “complicadas”, e sobre o tempo que levava para
executar a segunda e a terceira etapa da apuração. Tudo isso é parte de um
processo rigoroso de reportagem, que continuamos a apoiar”.
Depois que a matéria foi publicada, Gettleman foi convidado
a falar em um encontro sobre violência sexual na Escola de Assuntos Internacionais
e Públicos da Universidade Columbia, em Nova York. Seu empenho foi elogiado
pelos participantes e pela moderadora, a ex-executiva do Facebook Sheryl
Sandberg. Em vez de reforçar a reportagem que ajudou o New York Times a ganhar
o prestigioso Prêmio Polk, Gettleman descartou a necessidade de repórteres
fornecerem “provas”.
“O que encontramos… não quero nem usar a palavra ‘prova’,
porque é praticamente um termo jurídico que sugere que você está tentando
comprovar uma acusação ou mostrar que tem razão num tribunal”, disse Gettleman
a Sandberg. “Esse não é o meu papel. Meu papel é documentar, apresentar
informações, dar voz às pessoas. E nós encontramos informações ao longo de toda
a cadeia de violência, portanto, de violência sexual”.
Gettleman afirmou que sua missão era emocionar as pessoas.
“Esse é nosso trabalho como jornalistas: obter as informações e divulgar a
história de maneira que faça as pessoas se importarem. Não apenas para
informar, mas para emocionar as pessoas. E é isso que venho fazendo há muito
tempo”.
Tradução de Vitor Pamplona
Por: Jeremy Scahill, Ryan
Grim e Daniel Boguslaw
Fonte: Intercept Brasil
07/10: O MAIOR ESCÂNDALO DE PROPAGANDA DA HISTÓRIA.
Documentário da Al Jazeera mostra como "israel"
matou civis israelenses e transformou o 07/10 em uma campanha de mentiras e
propaganda para desumanizar palestinos e "legitimar" o genocídio
palestino. Via: @ FepalB
NA ÍNTEGRA E LEGENDADO 👇
Num vídeo recente de 7 de outubro, um tanque israelense é
visto atirando contra casas de colonos no Kibutz Be'eri, na Palestina ocupada.
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