“EDUCAÇÃO E A SOCIEDADE QUE QUEREMOS”
Quero primeiramente agradecer o convite para participar
deste encontro e saudar os participantes desta mesa de diálogo.
Sra. ALICE ALBRIGHT, da Parceria Global pela Educação;
O Prêmio Nobel KAILASH SATYARTHI, promotor da Marcha Global
contra o Trabalho Infantil;
Sr. SALIM AL MAILIK, diretor geral da Organização do Mundo
Islâmico para Educação Ciência e Cultura.
Saúdo a Dra. KOUMBOU BOLY BARRY, relatora especial da ONU
para o Direito à Educação,
Saúdo as organizações que dirigem e que promovem este
encontro, do qual o nosso Instituto Lula tem o privilégio de participar
Quero iniciar expressando o sentimento de solidariedade à
dor das famílias das vítimas da pandemia pela qual o nosso mundo está passando.
Quero falar sobre esses tempos terríveis, depois de tratar
do nosso tema central, que é a Educação e seu papel na construção de uma nova
sociedade, melhor e muito mais justa do que esta em que vivemos.
Neste mês de setembro, iniciamos as comemorações do
centenário de nascimento do educador Paulo Freire. Foi meu amigo, nasceu na
mesma região que eu, no estado de Pernambuco, e foi companheiro na criação do
Partido dos Trabalhadores.
Será sempre lembrado pela contribuição que deu à libertação
dos oprimidos, no Brasil e ao redor do mundo, por meio da educação.
Das muitas lições que Paulo Freire nos deixou, duas são
frequentemente destacadas. A primeira é a noção de que aquele que educa também
está sendo educado. É um conceito que só poderia ser formulado por quem tinha a
grandeza de respeitar a sabedoria dos humildes e reconhecer a existência do
outro, acima das barreiras sociais e preconceitos.
A segunda lição é a de que a Educação é libertadora no mais
amplo sentido que pode ter a palavra liberdade. Na sociedade e na região em que
nascemos, marcada pelo latifúndio, a herança da escravidão, a brutalidade dos
ricos contra os pobres, a fome e a desigualdade, o simples ato de aprender a
ler e escrever era uma rara conquista para alguém do povo.
A educação permite ao ser humano tomar consciência de si
mesmo, de que é um cidadão com capacidade de lutar por seus direitos. Como
disse Paulo Freire em um de seus muitos livros: “Se a educação sozinha não pode
transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda.”
Não é por outro motivo que o acesso à educação tem sido
negado a tantas crianças e jovens no mundo. É para perpetuar os mecanismos da
desigualdade e manter o domínio de uma nação sobre outra, de uma camada de
privilegiados sobre a imensa maioria.
Posso falar do que vivemos em meu país e sobre o que fizemos
para que a educação começasse a se tornar um direito de todos.
Eu mesmo sou um sobrevivente do destino reservado à maioria
do nosso povo. Alguém como eu, expulso da terra natal pela pobreza, tendo de
trabalhar desde a infância na cidade para ajudar minha mãe a sustentar a
família, não deveria ter chegado onde cheguei. Talvez não tivesse nem mesmo
chegado à idade adulta. Não deveria ter aprendido um ofício de metalúrgico, ter
feito greves com os companheiros de sindicato e muito menos ter construído,
junto com milhares de trabalhadores, o maior partido de esquerda do Brasil.
O fato é que, 18 anos atrás, o povo brasileiro confiou a mim
e ao Partido dos Trabalhadores, junto com nossos aliados no governo, a missão
que podia ser resumida em uma palavra: mudança.
Não vou me alongar sobre o esforço que fizemos para cumprir
aquela missão, mas posso resumi-lo em duas frases. Pela primeira vez, em 500
anos de história, a maioria pobre, negra e trabalhadora do povo brasileiro foi
colocada no centro e na direção das políticas públicas.
E pela primeira vez os pobres entraram no orçamento do
Estado, não como um dado estatístico, muito menos como um problema, mas como a
solução dos problemas do desenvolvimento do país.
Nenhum resultado desse esforço coletivo é mais eloquente do
que o fato de que 36 milhões de brasileiros saíram da pobreza extrema, o Brasil
saiu do Mapa da Fome da ONU e 21 milhões de empregos formais foram criados em
pouco mais de 12 anos, incluindo o governo da presidenta Dilma Rousseff.
MEUS AMIGOS, MINHAS AMIGAS,
No conjunto de políticas públicas que adotamos para mudar a
realidade brasileira, a educação teve papel central e organizador. O programa
Bolsa Família, por exemplo, promoveu a transferência de renda para 14 milhões
de famílias, condicionando os pagamentos à frequência das crianças na escola,
entre outros requisitos. Creio que esta relação direta entre transferência de
renda e acesso ao ensino é uma das chaves do sucesso do Bolsa Família, uma das
razões pelas quais foi adotado em tantos outros países.
Recordo-me de ter proibido os ministros de nosso governo de
usar as palavras gasto e despesa para se referir ao Orçamento da Educação, que
foi triplicado em nosso período. Aqueles recursos eram de fato investimentos.
Investimos na criação de um piso nacional para os salários
dos professores das escolas públicas de ensino fundamental e médio, que no
Brasil são administradas pelos governos estaduais e locais.
Investimos na formação desses professores e na garantia de
alimentação saudável para as crianças, que passou a ser adquirida diretamente
dos produtores da agricultura familiar. Investimos no transporte escolar
seguro, num país em que em muitas regiões a distância entre a casa e a escola
tem de ser coberta por meio de ônibus, bicicletas e até pequenas embarcações.
Investimos na aquisição de bibliotecas, de computadores para
as escolas e tablets para os alunos. Sobre tudo isso o companheiro Fernando
Haddad, que foi nosso ministro da Educação na maior parte daquele período,
falará numa outra mesa deste seminário. Infelizmente, o Brasil não tem hoje um
ministro da Educação à altura de participar de um debate deste nível, posto que
o atual governo de meu país é inimigo declarado da ciência, da cultura, da
própria educação.
Mas não posso deixar de falar sobre duas marcas que
deixamos. A primeira delas foi a abertura de 430 escolas de ensino técnico e
profissionalizante. Isto é quatro vezes mais do que tudo que havia sido feito
nos cem anos anteriores ao nosso governo. Estas novas escolas deram uma
profissão digna a centenas de milhares de jovens filhos da classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo, ampliamos o número de matrículas nas
universidades públicas e privadas, de menos de 4 milhões para mais de 8
milhões. Abrimos 19 novas universidades e 173 CAMPI, o estado passou a
financiar o crédito educativo e aprovamos uma lei de cotas para assegurar aos
alunos de escolas públicas, negros e indígenas o ingresso nas universidades
federais.
Tenho orgulho de dizer que hoje, no Brasil, os filhos de
trabalhadores, os jovens negros e negras são a maioria dos alunos em nossas
universidades federais.
MEUS AMIGOS, MINHAS AMIGAS
Qualquer discussão sobre o futuro da humanidade, sobre a
sociedade que queremos construir, tem de levar em conta os impactos da pandemia
atual, que veio agravar a situação de extrema desigualdade social e econômica
no mundo.
Recentemente, fui convidado pela Universidade de Buenos
Aires a falar sobre o mundo depois da pandemia. Confesso que não sabia — e
continuo não sabendo – como será nossa vida. Creio que ninguém sabe, mas quero
trazer aqui algumas reflexões.
As estatísticas mostram que as maiores vítimas da pandemia
no Brasil são pessoas negras, trabalhadores, moradores das favelas e periferias
das grandes cidades. Não é muito diferente ao redor do mundo. São pessoas que
vivem em casas precárias, com muitos moradores, que precisam ganhar o sustento
nas ruas todos os dias, que têm de usar transporte público e são mais
vulneráveis porque já não tinham acesso a alimentação saudável e cuidados
básicos de saúde.
A primeira conclusão a que podemos chegar é que esta
pandemia nada tem de democrática.
Porque a sociedade em que vivemos não é democrática, não
para a maioria. Todos estão sujeitos a contrair o vírus, mas é entre os mais
pobres que ele produz sua mortal devastação.
Esta emergência humanitária levou os governos mais
responsáveis a adotar medidas no sentido de manter as pessoas e a economia
vivas durante a crise, com linhas de crédito especiais, programas de renda e
até o pagamento dos salários para preservar empregos.
Mesmo aqueles governantes e os chamados “especialistas” que
até ontem defendiam rigidamente a austeridade fiscal, entenderam que o momento
é de gastar porque a vida não tem preço e que a economia deve existir, afinal,
em função das pessoas, não apenas dos números. E é o estado, em última análise,
que pode proporcionar recursos e organizar a sociedade para atravessar este
momento tão difícil.
Esta é, a meu ver, uma grande lição que a pandemia está nos
ensinando. O dogma do estado mínimo é apenas isso, um dogma, algo que não
encontra explicação nem se justifica na vida real. O mito do deus mercado é
apenas um mito, pois uma vez mais ele se revela incapaz de oferecer respostas
para os problemas do mundo em que vivemos.
Tive o privilégio de conversar com o Papa Francisco, que se
dedica a esse tema com toda sua alma. Sabemos que não é tarefa apenas para os
economistas e as pessoas de boa vontade. Tem de envolver a academia, os
intelectuais, os artistas, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais,
igrejas, todos e todas. Mas não chegaremos a lugar algum se os governos do
mundo, aqueles que têm o poder de estado, não se engajarem objetivamente em uma
profunda mudança nas relações entre as pessoas e o dinheiro.
Durante séculos nos disseram que a fome e a miséria eram tão
naturais quanto a chuva ou o nascer do sol. Durante séculos nos disseram que os
pobres, a maioria negra, os filhos dos trabalhadores estavam condenados a
repetir a triste história de seus pais, avós, bisavós, tataravós. Mas pelo
menos durante uma década, no Brasil, conseguimos provar que um país pode ser
governado para todos – e com atenção especial para a maioria sempre excluída.
A imensa desigualdade entre seres humanos é simplesmente
intolerável, mas enquanto ela perdurar haverá também o sonho de mudança que nos
move para o futuro.
Esta é, a meu ver, outra lição que podemos aprender com a
pandemia. Por mais profundas que sejam as crises, por mais escuro que faça,
depende de nós acender a luz nas trevas. E creio que nunca foi tão necessário
sonhar e seguir lutando para construir um mundo melhor do que este em que
vivemos.
Muito obrigado.”
Luiz Inácio Lula da Silva
Lula
LULA PARTICIPA DO SEMINÁRIO “EDUCAÇÃO E AS SOCIEDADES QUE
QUEREMOS”
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