A linha de tempo mais macabra da história da saúde pública do Brasil emerge da pesquisa das normas produzidas pelo Governo de Jair Messias Bolsonaro relacionadas à pandemia de covid-19. Num esforço conjunto, desde março de 2020, o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, uma das mais respeitadas organizações de justiça da América Latina, se dedicam a coletar e esmiuçar as normas federais e estaduais relativas ao novo coronavírus, produzindo um boletim chamado Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil. Nesta quinta-feira (21/1), lançam uma edição especial na qual fazem uma afirmação contundente: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.
Obtida com exclusividade pelo EL PAÍS, a análise da produção
de portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis,
decisões e decretos do Governo federal, assim como o levantamento das falas
públicas do presidente, desenham o mapa que fez do Brasil um dos países mais afetados pela covid-19 e,
ao contrário de outras nações do mundo, ainda sem uma campanha de vacinação com
cronograma confiável. Não é possível mensurar quantas das mais de 212.000
mortes de brasileiros poderiam ter sido evitadas se, sob a liderança de
Bolsonaro, o Governo não tivesse executado um projeto de propagação do vírus.
Mas é razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje suas mães, pais, irmãos e
filhos vivos caso não houvesse um projeto institucional do Governo brasileiro
para a disseminação da covid-19.
Há intenção, há plano e há ação sistemática nas normas do
Governo e nas manifestações de Bolsonaro, segundo aponta o estudo. “Os
resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e
negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao
contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta
de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da
atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional,
declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível
e a qualquer custo”, afirma o editorial da publicação. “Esperamos que essa
linha do tempo ofereça uma visão de conjunto de um processo que vivemos de
forma fragmentada e muitas vezes confusa”.
A pesquisa é coordenada por Deisy Ventura, uma das juristas mais respeitadas do Brasil,
pesquisadora da relação entre pandemias e direito internacional e coordenadora
do doutorado em saúde global e sustentabilidade da USP; Fernando Aith,
professor-titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP e diretor
do CEPEDISA/USP, centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no
Brasil; Camila Lissa Asano, coordenadora de Programas da Conectas Direitos
Humanos; e Rossana Rocha Reis, professora do departamento de Ciência Política e
do Instituto de Relações Internacionais da USP.
A linha do tempo é composta por três eixos apresentados em
ordem cronológica, de março de 2020 aos primeiros 16 dias de janeiro de 2021:
1) atos normativos da União, incluindo a edição de
normas por autoridades e órgãos federais e vetos presidenciais; 2) atos de
obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia; e
3) propaganda contra a saúde pública, definida como “o
discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais,
além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação
científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias,
enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências
científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública
necessárias para conter o avanço da covid-19”.
Os autores assinalam que a publicação não apresenta todas as
normas e falas coletadas e armazenadas no banco de dados da pesquisa, mas sim
uma seleção que busca evitar a repetição e apresentar o mais relevante para a
análise. Os dados foram selecionados junto à base de dados do projeto Direitos
na Pandemia, à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal
de Contas da União, além de documentos e discursos oficiais. No eixo que
definem como propaganda, foi também realizada uma busca na plataforma Google
para a coleta de vídeos, postagens e notícias.
A análise mostra que “a maioria das mortes seriam evitáveis
por meio de uma estratégia de contenção da doença, o que constitui uma violação sem precedentes do direito à vida e do direito à
saúde dos brasileiros”. E isso “sem que os gestores envolvidos sejam
responsabilizados, ainda que instituições como o Supremo Tribunal Federal e o
Tribunal de Contas da União tenham, inúmeras vezes, apontado a inconformidade à
ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias
de gestores federais”. Também destacam “a urgência de discutir com profundidade
a configuração de crimes contra a saúde pública, crimes de responsabilidade e
crimes contra a humanidade durante a pandemia de covid-19 no Brasil”.
Os atos e falas de Bolsonaro são conhecidos, mas acabam se
diluindo no cotidiano alimentado pela produção de factoides e de notícias
falsas, no qual a guerra de ódios é também uma estratégia para
encobrir a consistência e persistência do projeto que avança enquanto a
temperatura é mantida alta nas redes sociais. A publicação provoca choque e mal
estar ao sistematizar a produção explícita de maldades colocadas em prática por
Bolsonaro e seu governo durante quase um ano de pandemia. Um dos principais
méritos da investigação é justamente articular as diversas medidas oficiais e
falas públicas do presidente na linha do tempo. Dessa análise meticulosa emerge
o plano, com todas as suas fases devidamente documentadas.
Também torna-se explícito contra quais populações se
concentram os ataques. Além dos povos indígenas, a quem Bolsonaro nega até mesmo água
potável, há uma série de medidas tomadas para impedir que os
trabalhadores possam se proteger da covid-19 e fazer isolamento. O governo
amplia o conceito de atividades essenciais até mesmo para salões de beleza e
busca anular o direito ao auxílio emergencial de 600
reais determinado pelo Congresso a várias categorias. Ao mesmo tempo, busca
implantar um duplo tratamento aos profissionais de saúde: Bolsonaro veta
integralmente o projeto que prevê compensação financeira para aqueles
trabalhadores que ficarem incapacitados em consequência de sua atuação para
conter a pandemia e tenta isentar os funcionários públicos de qualquer
responsabilidade por atos e omissões no enfrentamento à covid-19. Em resumo: o
trabalho duro e arriscado de prevenção e combate numa pandemia é desestimulado,
a omissão é estimulada.
Através de retenção de recursos destinados à covid-19, o
Governo prejudica a assistência aos doentes na rede pública de Estados e
municípios. A guerra contra governadores e prefeitos que tentam implementar
medidas de prevenção e combate ao vírus é constante. Por meio de vetos,
Bolsonaro anula mesmo as medidas mais básicas, como obrigatoriedade de máscaras
dentro de estabelecimentos com autorização para funcionar. Muitas de suas
medidas e vetos são depois derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou
pelo próprio Legislativo.
Esse é outro ponto importante: a análise dos dados mostra
também o quanto a situação do Brasil poderia ser ainda mais trágica caso o STF
e outras instâncias não tivessem barrado várias das medidas de propagação do vírus produzidas pelo Governo.
Apesar da fragilidade demonstrada pelas instituições e pela sociedade, é
visível o esforço de parte dos protagonistas para tentar anular ou neutralizar
os atos de Bolsonaro. É possível fazer o exercício de projetar o quanto todos
esses esforços, somados e associados a um governo disposto a prevenir a doença
e combater o vírus, poderiam ter feito para evitar mortes em um país que conta
com o Sistema Único de Saúde (SUS). Em vez disso,
Bolsonaro produziu uma guerra em que a maior parte da energia de parte das
instituições e da sociedade organizada foi dissipada para reduzir os danos
produzidos por suas ações, em vez de se concentrar em combater a maior crise
sanitária em um século.
Quase um ano depois do primeiro caso de covid-19,
resta saber se as instituições e a sociedade que não estão acumpliciadas com
Bolsonaro serão fortes o suficiente para, diante do mapa de ações
institucionais de propagação do vírus, finalmente barrar os agentes de
disseminação da doença. O uso da máquina do Estado para promover destruição tem
sido determinante para produzir a realidade atual de mais de 1.000 covas abertas por dia para abrigar pessoas que
poderiam estar vivas. Na gaveta de Rodrigo Maia (DEM), presidente da
Câmara, há mais de 60 pedidos de impeachment. No Tribunal Penal
Internacional, pelo menos três comunicações relacionam genocídio e outros
crimes contra a humanidade à atuação de Bolsonaro e membros do governo
relacionadas à pandemia. As próximas semanas serão decisivas para que os
brasileiros digam quem são e o que responderão às gerações futuras quando lhes
perguntarem onde estavam quando tantos morreram de covid-19.
A seguir, os principais pontos da linha do tempo das ações
de Jair Bolsonaro e seu Governo:
Uma portaria da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) tenta
abrir uma brecha para o acesso de não indígenas, “em caráter excepcional”, com
o objetivo de realizar “atividades essenciais” em territórios de povos
isolados. A medida busca usar a covid-19 para criar uma porta de acesso a
comunidades que nunca tiveram contato com não indígenas (nem com seus vírus e
bactérias) ou que decidiram viver sem contato.
Bolsonaro demite o ministro da Saúde durante a pandemia. Luiz Henrique Mandetta, além de político, é médico. A principal razão da demissão é a discordância sobre o uso da cloroquina e sobre a atuação pautada pelas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao final de março, segundo Mandetta, o presidente passou a buscar assessoria para se contrapor aos dados e à estratégia do Ministério da Saúde: “O Palácio do Planalto passou a ser frequentado por médicos bolsonaristas. (...) Ele [Bolsonaro] queria no seu entorno pessoas que dissessem aquilo que ele queria escutar. (...) Nunca na cabeça dele houve a preocupação de propor a cloroquina como um caminho de saúde. A preocupação dele era sempre: ‘Vamos dar esse remédio porque, com essa caixinha de cloroquina na mão, os trabalhadores voltarão à ativa, voltarão a produzir’. (...) O projeto dele para o combate à pandemia é dizer que o governo tem o remédio e quem tomar o remédio vai ficar bem. Só vai morrer quem ia morrer de qualquer maneira”.
O Congresso aprova o auxílio emergencial de 600 reais, medida parlamentar que seria equivocadamente associada a Bolsonaro por grande parte dos beneficiados, resultando em aumento de popularidade para o presidente.
Bolsonaro usa decretos para boicotar as determinações de
prevenção e combate à covid-19 de estados e municípios. Para isso, amplia o
entendimento do que é atividade essencial durante uma pandemia e que, portanto,
pode seguir funcionando apesar do agravamento da emergência sanitária. Assim, a
área de construção civil, salões de beleza e barbearias, academias de esporte
de todas as modalidades e serviços industriais em geral passam a ser “atividades
essenciais”.
O presidente tenta ainda isentar os agentes públicos de
serem responsabilizados, civil e administrativamente, por atos e omissões no
enfrentamento da pandemia. Bolsonaro também veta o auxílio emergencial de 600
reais mensais instituído pelo Congresso a pescadores artesanais, taxistas,
motoristas de aplicativo, motoristas de transporte escolar, entregadores de
aplicativo, profissionais autônomos de educação física, ambulantes, feirantes,
garçons, babás, manicures, cabeleireiros e professores contratados que estejam
sem receber salário. Pela lei aprovada pelo parlamento, essas categorias seriam
contempladas pelo auxílio emergencial, para que pudessem fazer isolamento para
se proteger do vírus.
O novo ministro
da Saúde, médico Nelson Teich, se demite: “Não vou manchar a minha
história por causa da cloroquina”. Assume o posto, interinamente, o general da
ativa Eduardo
Pazuello. Em solenidade oficial, o militar afirmou que, antes de
assumir o cargo, “nem sabia o que era o SUS”. A militarização do ministério se
amplia ainda mais. Um protocolo do Ministério da Saúde determina o uso de
cloroquina para todos os casos de covid-19, medicamento comprovadamente sem
eficácia para combater o novo coronavírus.
Bolsonaro abre guerra contra governadores. O Conselho
Nacional da Saúde denuncia que mais de 8 bilhões de reais destinados ao combate
à pandemia deixaram de ser repassados aos estados e municípios, que sofrem com
a falta de insumos básicos, respiradores e leitos. O CNS lança a campanha
“Repassa já!”.
Bolsonaro incita seus seguidores a invadir hospitais e
filmar, com a justificativa de que os números de doentes e de ocupação de
leitos estão inflacionados. Em 3 de junho, o Governo divulga dados sobre a
covid-19 com atraso, após as 22h. Em 5 de junho, o site do Ministério da Saúde
sai do ar e retorna no dia seguinte apenas com informações das últimas 24
horas. A tentativa
de encobrir os números de doentes e de mortos por covid-19 é
denunciada pela imprensa. A sociedade perde a confiança nos dados oficiais e
seis dos principais jornais e sites de jornalismo —G1, O Globo, Extra, O Estado
de S. Paulo, Folha de S.Paulo e UOL— formam um consórcio para registrar os
números da pandemia.
Bolsonaro veta a obrigatoriedade do uso de máscaras em
estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, escolas e demais
locais fechados em que haja reunião de pessoas. Também veta a multa aos
estabelecimentos que não disponibilizem álcool em gel a 70% em locais próximos
às suas entradas, elevadores e escadas rolantes.
Bolsonaro veta a obrigação dos estabelecimentos em
funcionamento durante a pandemia de fornecer gratuitamente a seus funcionários
e colaboradores máscaras de proteção individual. Veta ainda a obrigação de
afixar cartazes informativos sobre a forma de uso correto de máscaras e de
proteção individual nos estabelecimentos prisionais e nos estabelecimentos de
cumprimento de medidas socioeducativas.
Bolsonaro veta medidas de proteção para comunidades
indígenas durante a pandemia de Covid-19. Entre elas: o acesso a água potável,
materiais de higiene e limpeza, leitos hospitalares e de UTIs, ventiladores e
máquinas de oxigenação sanguínea, materiais informativos sobre a covid-19 e
internet nas aldeias. Veta também a obrigação da União de distribuir alimentos
aos povos indígenas, durante a pandemia, na forma de cestas básicas, sementes e
ferramentas.
O Exército paga 167% a mais pelo principal insumo da
cloroquina, com a seguinte justificativa: “produzir esperança para corações
aflitos”.
Ao criticar a militarização do Ministério da Saúde, o
ministro do STF Gilmar Mendes define a resposta do governo federal à pandemia
como “genocídio”: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no
Ministério da Saúde. (...) É preciso dizer isso de maneira muito clara: o
Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso por fim
a isso”.
Bolsonaro veta integralmente o projeto de lei que determina
compensação financeira paga pela União a profissionais e trabalhadores de saúde
que ficarem incapacitados por atuarem no combate à covid-19.
O Governo Bolsonaro ignora a proposta da Pfizer, que garante
a entrega do primeiro lote de vacinas em 20 de dezembro de 2020.
O Ministério da Saúde rejeita a doação de pelo menos 20 mil
kits de testes PCR para covid-19 da empresa LG International, dois meses após a
oferta.
O que Bolsonaro diz:
Bolsonaro afirma que a pandemia foi superdimensionada, mente
que a cloroquina garante 100% de cura se usada no início dos sintomas e cancela
a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac pelo Ministério da
Saúde: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”.
Apesar de todos os fatos e números em contrário, Bolsonaro
afirma que o Brasil foi um dos países que menos sofreu com a pandemia. Segue
atacando a vacina.
O Ministério das Relações Exteriores afirma ter comprado 2
milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford da Índia. Nos dias seguintes,
o governo federal organiza uma grande operação de propaganda, incluindo a
divulgação massiva na mídia e adesivagem de um Airbus da Azul Linhas Aéreas, que
faria uma “viagem histórica” com o slogan: “Vacinação - Brasil imunizado -
Somos uma só nação”. Bolsonaro chega a enviar uma carta ao Primeiro Ministro da
Índia solicitando urgência no envio das doses, mas a operação é suspensa pela
Índia. Diante do colapso da saúde em Manaus, com pacientes morrendo asfixiados
por falta de oxigênio na rede hospitalar, o ministro da Saúde, general da ativa
Eduardo Pazuello, declara: “O que você vai fazer? Nada. Você e todo mundo vão
esperar chegar o oxigênio para ser distribuído”.
Bolsonaro veta parte da Lei Complementar nº 177, de 12/1/20,
aprovada por ampla maioria no Senado (71 x1 votos) e na Câmara dos Deputados
(385 x 18 votos). Segundo a Agência FAPESP, vetos presidenciais subtraem 9,1
bilhões de reais dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação neste ano,
impedindo que o Brasil desenvolva uma vacina contra a covid-19, apesar de ter
infraestrutura e recursos humanos suficientes. Comunidades acadêmica e
empresarial mobilizam-se para derrubada dos vetos,
Acesse o documento completo aqui.
Fonte: EL PAÍS BRASIL