O Chile apresentou oficialmente na sexta-feira uma
declaração de intervenção no caso da Corte Internacional de Justiça (CIJ)
referente à aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio na Faixa de Gaza, relata a Agência Anadolu
Tribunal Internacional de Justiça (CIJ)
A intervenção do Chile, apresentada nos termos do Artigo 63
do Estatuto da CIJ, afirma seu interesse na interpretação da Convenção sobre
Genocídio conforme se aplica ao caso.
De acordo com o Artigo 63, qualquer Estado parte de uma
Convenção que esteja sob consideração judicial tem o direito de intervir,
tornando a interpretação da Convenção feita pela CIJ vinculativa para eles
também.
Em sua declaração, o Chile enfatizou a importância da
interpretação dos principais artigos da Convenção sobre Genocídio.
A ação do Chile ressalta sua preocupação com a interpretação
legal dessas disposições, dada a gravidade das alegações levantadas na guerra
de Gaza.
Tanto a África do Sul quanto Israel foram convidados pela
CIJ a apresentar observações por escrito em resposta à declaração do Chile.
O julgamento do Tribunal sobre o assunto será vinculativo
não apenas para as partes originais envolvidas, mas também para o Chile, de
acordo com as regras que regem tais intervenções.
Em 29 de dezembro de 2023, a África do Sul entrou com um
requerimento instituindo procedimentos contra Israel, declarando violações da
Convenção sobre Genocídio em relação aos palestinos na Faixa de Gaza. Vários
países se juntaram ao caso desde então, incluindo Nicarágua, Colômbia, Líbia,
México, Estado da Palestina, Espanha e Turquia.
Israel continua sua ofensiva brutal em Gaza desde o ataque
do Hamas em outubro passado, apesar de uma resolução
do Conselho de Segurança da ONU exigindo um cessar-fogo imediato.
Mais de 41.100 pessoas, a maioria mulheres e crianças,
morreram e mais de 95.100 ficaram feridas, de acordo com autoridades de saúde
locais.
O ataque israelense deslocou quase toda a população do
Território em meio a um bloqueio contínuo que levou a uma grave escassez de
alimentos, água potável e medicamentos.
COMUNICADO DE IMPRENSA: #Chile , invocando o
artigo 63 do Estatuto #ICJ
, apresentou uma declaração de intervenção no caso relativo à Aplicação da
Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio na Faixa de Gaza ( #SouthAfrica v. #Israel ) https://bit.ly/4glXTlw
Nos termos do Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional, o Gabinete do Procurador (“OTP”) pode analisar informações sobre
alegados crimes da jurisdição do Tribunal Penal Internacional (crimes de
guerra, crimes contra a humanidade, genocídio e agressão), que lhe sejam
submetidos. de qualquer fonte. Isto pode ocorrer durante exames preliminares,
bem como no contexto de situações sob investigação. O formulário abaixo pode
ser usado para enviar tais informações, também conhecidas como “comunicações”,
ao OTP de forma anônima ou nomeada. Gostaria de agradecer-lhe por dedicar seu
tempo para enviar informações ao Ministério Público.
Para pesquisador da ditadura chilena, críticas ao modelo
neoliberal motivaram os protestos, que explodiram depois de reação autoritária
de Piñera
Apesar de origem semelhante às jornadas de junho, contexto
político difere do brasileiro
Sem traumas, nova geração desafia toque de recolher e
militares nas ruas
Família Piñera é herdeira de pinochetismo e enriqueceu na
ditadura
No Chile, foram os estudantes, uma vez mais, que deram a
partida para as manifestações de rua. Após o aumento das passagens de metrô e
ônibus no início de outubro, foram eles que começaram a pular as catracas para
não pagar as tarifas, as chamadas evasiones masivas. A resposta do presidente
Sebastián Piñera foi uma: repressão. Com cada vez mais policiais nas estações
de metrô reprimindo os jovens, o “pulão de catraca” cresceu até explodir para
manifestações que pararam Santiago e se espalharam o o resto do país.
Na avaliação do historiador Luan Vasconcelos Fernandes, da
Universidade de São Paulo (USP), que pesquisa em seu doutorado a relação entre
a ditadura militar e as universidades chilenas, a repressão comandada por
Piñera, sobretudo na imposição de um toque de recolher, fez soar nos ouvidos
chilenos o autoritarismo da ditadura de Pinochet, mas encontrou a resistência
de uma geração de jovens “que não possui o trauma de seus pais e avós em
relação ao autoritário toque de recolher da ditadura”.
Apesar de semelhante às manifestações do Brasil de 2013 —
inclusive pelo estopim ser o aumento das passagens de transporte público — o
pesquisador acredita que os protestos chilenos são mais direcionados e críticos
ao modelo neoliberal. Por outro lado, ele reforça que assim como no Brasil, no
Chile há também um discurso de negação da política, “bastante perigoso e pode
dar margem para que figuras ainda mais autoritárias cheguem ao poder”.
É essa a grande incógnita dos protestos chilenos: será que,
após os protestos, o país irá efetivamente adotar políticas que mudem uma das
sociedades mais desiguais da América Latina? Ou, assim como no Brasil, o
descontentamento irá abrir uma brecha para populistas que repitam as violações
cometidas pelos governos autoritários, sobretudo frente aos mais
marginalizados, como os indígenas Mapuche? “O que os manifestantes das grandes
cidades estão sofrendo com a violência estatal é o que os indígenas Mapuches
sempre sofreram”, ressalta Luan.
O historiador Luan Vasconcelos
Fernandes pesquisa a relação
entre a ditadura militar e as
universidades chilenas
As manifestações no Chile tiveram como estopim o aumento nas
passagens de transporte público, o que tem levado a comparações com as Jornadas
de Junho no Brasil, em 2013. O que os protestos no Chile têm de semelhante com
os brasileiros?
De fato, os protestos no Chile começaram devido a uma alta
de 30 pesos no valor da passagem do metrô de Santiago, que já era considerado
caro (por volta de R$ 4,60 antes do aumento), justificado pelo governo como uma
consequência do aumento do valor do petróleo e do dólar. E, assim como no
Brasil, os protestos em torno do preço do transporte público se expandiram para
outras reivindicações, que há bastante tempo já estavam gerando insatisfações e
manifestações de menor porte. Outra semelhança que eu vejo, com preocupação, é
em relação ao surgimento, ainda que em menor escala, de um discurso apolítico,
de negação da política, colocando todos os partidos e espectros políticos no
mesmo balaio. Algumas pichações e manifestações nas redes sociais apontam para
este caminho.
E quanto às diferenças?
Acredito que as semelhanças acabam por aí. O governo de
direita neoliberal de Sebastian Piñera e o próprio sistema econômico chileno
são distintos do governo de Dilma Rousseff e do sistema brasileiro. O Chile é
um país marcadamente neoliberal desde as reformas implantadas de forma
autoritária pela ditadura de Pinochet. Tudo no país é uma mercadoria, incluindo
a própria água, e nem os governos de centro-esquerda que se seguiram após a
redemocratização conseguiram mudar isso, apesar de vários remendos feitos na
Constituição de 1980. Dessa forma, as manifestações aqui revelam um profundo
descontentamento com as políticas neoliberais como um todo. As manifestações
vão todas nesse sentido, sem pautas conservadoras ou liberais na economia e sem
pedidos de retorno dos militares, como também se viu, ainda que em 2013 mais
timidamente, no Brasil. As manifestações aqui no Chile me parecem muito mais
bem direcionadas e críticas ao modelo neoliberal. No Brasil, as jornadas de
junho se encaminharam para uma miscelânea difusa de reivindicações. O contexto
internacional mundial e latino-americano também é outro e parece haver uma
contra-ofensiva de forças progressistas em vários países do mundo, com
resultados favoráveis para partidos de esquerda nas eleições da Espanha e
Portugal, o enfraquecimento do primeiro ministro conservador de Israel, a
abertura do processo de impeachment de Trump, a evidente derrota de Macri na
Argentina, os protestos contra as políticas neoliberais no Equador, dentre
tantos outros exemplos. Esses movimentos também impactam as manifestações no
Chile. Obviamente que a extrema-direita ainda permanece forte, mas parece ter
começado a perder fôlego mais cedo do que se imaginava. De todo modo, ainda é
cedo para tirar conclusões, mas a mudança de tom no discurso de Piñera nesta
terça parece apontar para um recuo do governo em suas políticas neoliberais.
Logo após o início dos protestos em Santiago, o presidente
Piñera decretou o toque de recolher. Civis foram impedidos de andar nas ruas
após as 20h, inicialmente em Santiago, depois em várias cidades do país. Os
carabineros tomaram as ruas e utilizaram armas letais, gás lacrimogêneo e balas
de borracha para dispersar manifestantes. E o governo anunciou utilizar a Lei de
Segurança Nacional da ditadura de Pinochet contra manifestantes. Como a
população recebeu essas medidas? Isso dispersou ou mais acendeu as
manifestações?
Na verdade, no primeiro dia, sábado, o toque de recolher foi
marcado para às 22h em Santiago. Nos outros dias, houve uma variação dos
horários na capital e nas diferentes regiões. A população recebeu estas medidas
com indignação. Não se via uma medida dessas desde 1987, na ditadura
pinochetista. Além disso, a nova geração de chilenos, que são os principais
manifestantes, não possui o trauma de seus pais e avós em relação ao
autoritário toque de recolher da ditadura. Dessa forma, há um clima de desafio
ao chamado “toque de queda” no Chile, com pessoas ficando muitas horas após o
horário estabelecido pelo toque nas ruas. Com certeza foi uma medida que
acendeu ainda mais as manifestações.
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democracia, diz Garzón
A resposta do governo Piñera aos protestos resgatou de
alguma forma a memória dos chilenos da ditadura de Pinochet?
Sem dúvidas. A resposta do governo foi autoritária,
colocando militares nas ruas, algo que não ocorria desde a ditadura. Pesa ainda
o fato da família de Piñera ser uma das famílias de políticos herdeira do
período pinochetista. Seu irmão, José Piñera, foi ministro do ditador. Sua
família também enriqueceu muito durante a ditadura de Pinochet. As comparações
estão sendo frequentes. O Chile é um país que ainda não resolveu diversas
questões relacionadas ao período e as disputas de memória aqui sobre o período
estão sempre colocadas no debate nacional. A resposta do governo chileno só fez
colocar mais fogo no debate e fortaleceu as críticas ao seu governo e aos
críticos da ditadura.
Por falar em ditadura, como é a relação da população chilena
com a ditadura hoje? Ela é influenciada por recortes como a classe social, raça
ou religião?
Sim. A sociedade chilena é muito dividida. Não só
socialmente, como geograficamente. A província de Santiago é uma prova viva
disso. Quanto mais perto da Cordilheira e das comunas ricas, maior a chance de
encontrar apoiadores contundentes da ditadura de Pinochet e de seus herdeiros.
Há também grupos de católicos e evangélicos conservadores fortes e atuantes no
Chile, que pendem para um apoio ao período ditatorial. No que se refere às
questões raciais, o conflito mais evidente no Chile é em relação aos Mapuches.
Eles foram duramente reprimidos e perseguidos durante a ditadura de Pinochet e
ainda lutam por seus direitos. A morte de Camilo Catrillanca, neto de um líder
mapuche, no ano passado, por policiais reacendeu bruscamente os debates em
torno dos Mapuches. O ministro do Interior e Segurança Pública, Andrés
Chadwick, primo do presidente, é constantemente responsabilizado pela morte do
jovem e o pedido de sua renúncia também ecoa pelas ruas.
A sociedade chilena é dividida em relação à ditadura: grupos de católicos e evangélicos conservadores estão entre os apoiadores do período ditatorial
Há uma tentativa de revisionismo da ditadura chilena assim
como ocorre no Brasil, pela ação de grupos de extrema-direita?
Sempre houve um impasse nas disputas memorialísticas em
torno do tema. Apesar do Informe Rettig [documento que expôs sobre violações de
direitos humanos durante a Ditadura, comparável ao que a Comissão da Verdade
produziu no Brasil] ter sido publicado logo após o fim da ditadura, só em 1998,
com a prisão do general Pinochet em Londres a mando do juiz espanhol Baltasar
Garzón, é que houve um substancial aumento de condenações de diversos agentes
estatais violadores dos direitos humanos. A prisão do ditador foi considerada
um ponto de inflexão na jurisdição universal sobre o tema. Pinochet, no
entanto, nunca chegou a ser condenado no Chile pelos crimes cometidos, mas
chegou perto de ser condenado por fraude tributária e mau uso de dinheiro
público, o que não ocorreu por conta de sua morte. Todas as investigações e
condenações que se seguiram após a prisão de Pinochet em Londres fizeram com
que vários aliados se afastassem do ditador e defendessem uma memória de
conciliação sobre o período ditatorial. Se, por um lado, houve o que a direita
chama de “excessos” por parte dos militares, por outro, a ditadura modernizou o
país. Nesta linha de pensamento, o melhor a se fazer seria esquecer os crimes
cometidos no período e conciliar o país. É uma das memórias emblemáticas do
Chile, que Steve Stern, historiador estadunidense, chama de “memória da caixa
fechada”, uma memória construída desde o início da década de 1980 e que
permanece forte até hoje. Diferentemente do Brasil, a direita chilena que
defende o período parece que sempre esteve fora do armário, mesmo que com
distintas interpretações sobre o período. Então, seria mais um revisionismo
continuado, o que é diferente do Brasil onde houve um “boom”, nos últimos anos,
de publicações e de figuras públicas defendendo o período ditatorial.
O próprio presidente Piñera havia criticado Bolsonaro por
elogios à ditadura brasileira. Qual é a postura do presidente chileno em
relação à ditadura chilena?
Acredito que seja como eu disse anteriormente. Uma espécie
de memória da caixa fechada, na qual as recordações devem ser mantidas
guardadas. Ainda que ele condene publicamente as violações aos direitos humanos
cometidas naquela época, ele defende as reformas efetuadas. Sem falar que toda
sua família e seus aliados políticos são herdeiros diretos da ditadura de
Pinochet. É impossível não associá-lo ao período. A solução autoritária que o
seu governo encontrou para a crise no Chile acentua ainda mais esta relação.
A imagem dos carabineros no Chile pode ser comparada à
imagem do exército no Brasil? O que é parecido e o que é diferente?
Não. Os carabineros podem ser comparados aos policiais
militares no Brasil. O que talvez gere confusão é que durante a ditadura, o
comandante dos carabineros, que no Chile tem o posto de general, fazia parte da
Junta Militar. O posto continua sendo o mesmo e ele participa do Conselho de
Segurança Nacional do Chile.
Após os protestos de 2013 no Brasil, se tornaram recorrentes
manifestações pedindo a volta da ditadura militar, ainda que bem menores. De
alguma forma, as falas seguem até hoje, com protestos pedindo fechamento do STF
pelos militares, por exemplo. Você consegue ver uma possibilidade disso também
ocorrer no Chile?
Tenho a sensação que, após 2013, esses pedidos, no Brasil,
só foram aumentando. Culminou com a eleição de um defensor de um dos mais
notórios torturadores brasileiros. Mas como eu disse, acredito que no Chile as
manifestações têm uma pauta mais definida e contra as políticas neoliberais.
Por outro lado, há também um discurso de negação da política, o que é bastante
perigoso e pode dar margem para que figuras ainda mais autoritárias, como José
Kast, cheguem ao poder. Ele é um político alinhado com pautas econômicas neoliberais
e conservadorismo nos costumes, algo semelhante a Bolsonaro, anti-LGBT, contra
aborto e com declarações misóginas. No entanto, como as manifestações são
contra os principais herdeiros da ditadura e estamos em outro contexto,
acredito que isso não vá acontecer. Tudo vai depender também de quais figuras
os principais partidos chilenos vão indicar para as próximas eleições
nacionais. Ano que vem são as eleições municipais no Chile. Elas também
servirão como termômetro para a disputa de poder no âmbito nacional.
O presidente do Chile, Sebastián Piñera, herdeiro de uma família de políticos ligada à ditadura de Pinochet, é acusado de evasão fiscal
As manifestações de hoje no Chile têm invocado pautas de
manifestações anteriores, como a dos estudantes. Qual o papel dos estudantes
nos protestos de agora?
Como disse uma funcionária da limpeza aqui de Santiago: “os
estudantes valem ouro”. São um dos principais atores dos protestos, se não o
principal. O mais interessante é que as pautas não são estritamente do âmbito
educacional e sim ligadas às questões que afetam os trabalhadores, seus pais e
avós. A tarifa do metrô não aumentou para os estudantes, porém foram eles os
primeiros a efetuarem as evasiones, os popularmente chamados “pulões de
catraca”. Outra importante reivindicação se refere às AFP (as administradoras
de fundos de pensões) que, atualmente, são sete, sendo que cinco são de
multinacionais estrangeiras (MetLife, Prudential Financial, BTG Pactual, Grupo
Sura y Principal Financial Group). Grande parte dos aposentados recebe menos de
um salário mínimo aqui no Chile, sendo que as AFP registram lucros recordes com
o rendimento do dinheiro dos trabalhadores.
Como ficou o sistema de educação chileno após os protestos
dos estudantes? Algo mudou?
Sim. A Lei Orgânica Constitucional de Ensino (LOCE) da época
da ditadura foi substituída pela Lei Geral de Educação, de 2009, do governo de
Michelle Bachelet. É uma lei com uma abordagem mais plural e inclusiva e que
visa fiscalizar os estabelecimentos educacionais do ensino básico e médio, que
antes lucravam com o dinheiro público nas escolas subvencionadas.
Se a utilização da Lei de Segurança Nacional é “novidade” no
contexto dos protestos de rua, ela já foi invocada para lidar com os protestos
de indígenas Mapuche, inclusive no início deste ano, após protestos pela morte
de mais um indígena pela ação da polícia. Como está essa questão hoje?
É como me contou uma amiga sobre o discurso dos Mapuche
neste momento: o que os manifestantes das grandes cidades estão sofrendo com a violência
estatal é o que os Mapuche sempre sofreram. A questão Mapuche sempre foi um
tema nacional em voga, mas que varia em sua abrangência no seio da opinião
pública. Não vejo nas manifestações que tenho acompanhado como uma das
principais pautas da população. O que tem acontecido é que os Mapuche e as
pessoas ligadas aos movimentos sociais Mapuche têm aproveitado o momento para
também se manifestar e pressionar o governo.
Para o historiador, a resposta repressiva do governo fez com que os protestos tomassem uma proporção maior
Quais são as principais reivindicações dos Mapuche?
A principal reivindicação dos Mapuche é a terra — eles buscam acabar com o uso da sua terra por grandes empresas e pelo Estado. A relação dos Mapuche com os governos chilenos nunca foi pacífica, até porque eles consideram o seu território como território invadido. Eles não se consideram chilenos, mas Mapuche. Isso vem desde a formação do Estado Nacional Chileno, no século XIX, não foi tranquila mesmo durante o governo popular de Salvador Allende, mas se tornou especialmente tensa na ditadura. Na época, foi criada uma lei que acabou com a função social da propriedade da terra, que passou a ser apenas propriedade privada, sob a lógica do neoliberalismo. A ditadura acabou operando uma “reforma agrária”, por assim dizer, que separou as terras indígenas em pequenas propriedades individuais. Isso resultou praticamente na destruição da cultura Mapuche, que é totalmente conectada à questão da terra, muito diferente da nossa ou de uma visão capitalista neoliberal. E a relação dos indígenas com o Estado também segue tensa com Piñera, principalmente com o assassinato do jovem Camilo Catrillanca, neto de uma liderança indígena [ele foi assassinado com um tiro na cabeça em uma operação dos Carabineros no final de 2018]. O ministro do Interior e Segurança Pública, Andrés Chadwick, primo de Piñera e principal ministro do governo, é responsabilizado pelos indígenas, que o chamam de assassino.
Qual a percepção da população sobre a questão Mapuche? Há apoio massivo ou apenas de determinados grupos?
São grupos mais específicos que apoiam com mais ênfase a causa mapuche. Isto não significa que não haja uma simpatia à causa por parte dos manifestantes. Há muitos temas candentes e alguns aparecem com mais destaque, como o custo de vida e as administradoras de pensão.
Curiosamente, as manifestações começaram com as evasiones no metrô, a mesma palavra usada para descrever não pagamento de impostos, uma acusação que pesa sobre o próprio presidente Piñera, correto?
Evadir é deixar de pagar algo, por exemplo, burlando leis ou obtendo vantagens. A palavra evasiones serve para tudo que se enquadre nisso. No caso do metrô, pular a catraca ficou conhecido como evasiones masivas porque eram vários jovens começaram a fazê-lo deixando de pagar a passagem. O presidente Piñera é acusado de ter realizado várias sonegações de impostos a partir de suas empresas e propriedades privadas ao longo da década de 1990 e dos anos 2000, comprando empresas que estavam em falência e, depois, fechando acordos para não pagar impostos que essas empresas deviam, inclusive vendendo algumas delas em seguida. Isso também foi chamado de evasiones. Com as manifestações, os jovens começaram a ironizar o fato de o presidente criminalizar as evasiones do metrô, sendo que ele é acusado de ter roubado dinheiro do Estado — uma soma muito maior que o prejuízo causado pelos pulos de catraca. Em vários pontos de Santiago há pichações onde se lê “evade como Piñera”, ou seja, siga o exemplo de Piñera. Na crítica dos manifestantes, ele teria sido primeiro a dar o exemplo.
Igreja San Francisco de Borja foi queimada durante manifestações no último domingo, 18 de outubro, aniversário de um ano das maiores mobilizações populares do Chile (Foto: AP Photo/Esteban Felix)
As Forças Armadas do país expulsaram um cabo que foi preso
entre manifestantes que queimaram uma igreja em Santiago no último domingo, 18.
O dia marcou o aniversário de um ano do início das revoltas populares no país.
A princípio, a igreja San Francisco de Borja foi saqueada
por pessoas encapuzadas, que colocaram fogo no edifícil. Os bombeiros
conseguiram controlar o incêndio em poucos minutos. Mais tarde, a igreja voltou
a ser queimada e cinco pessoas foram detidas, um deles era membro das Forças
Armadas.
Em nota na última segunda-feira, 19, as Forças Armadas
afirmou que o cabo Ernesto Osorio Loyola, de 21 anos, servia na Base Aeronaval
de Concón e estava de folga no dia da manifestação. Nesta terça-feira, 20, a
instituição tomou a decisão de expulsá-lo.
O porta-voz do governo, Jaime Belloio, e o ministro do
Interior, Víctor Pérez, criticaram o ocorrido e afirmaram que há “mais de uma
versão” do fato.
Para Belloio, falta fazer toda a investigação, “mas, o que
sei é que o cabo foi preso perto das 16h, 16h30, antes do início do incêndio,
em uma barricada que está por fora. No entanto, outras pessoas têm outras
versões”.
Ainda assim, o porta-voz reprovou a atitude do agora ex-cabo
da Marinha de participar de atos que chamou que tinham “vandalismo”.
Segundo informações do portal chileno En Cancha, o cabo da
marinha foi julgado e terá de ir duas vezes ao mês às autoridades para prestar
contas. Ele foi acusado de desordem pública e foi enquadrado na lei
antibarricadas e também por colocar em perigo a saúde pública.
Após o episódio, foi levantada a hipótese de se tratar de um
infiltrado na manifestação, com o objetivo de torna-la violenta. Em entrevista
para a rádio ADN, o ministro da Defesa, Mario Desbordes, descartou a
possibilidade.
“É um mecânico de aviação de Concón que estava no dia de
folga, não é um infiltrado, não se infiltrou ninguém de ações de inteligência”,
garantiu o ministro.
O presidente do Senado chileno, Jaime Quintana Leal, ganhou destaque da mídia brasileira nos últimos dias por ter recusado um convite do governo chileno para participar de um almoço com o presidente Jair Bolsonaro, que está visitando o Chile.
Em entrevista à BBC News Brasil, o parlamentar chileno disse que "os admiradores de Pinochet não são bem vindos no Chile". Bolsonaro declarou, no passado, ser admirador do ditador Augusto Pinochet, que, segundo ele, "fez o que tinha ser feito" no período em que comandou o país, desde o golpe militar - que o levou ao poder, - em 1973, até 1990, quando teve de entregar a presidência a um civil eleito após um plebiscito.
Durante os anos Pinochet, o Chile se modernizou, a economia cresceu - mas milhares de pessoas foram presas, mortas ou torturadas pelo Estado.
Em sua conta nas redes sociais, Quintana Leal, do Partido pela Democracia, que se define como sendo de centro-esquerda, já havia justificado que não participaria do almoço por causa de posicionamentos de Bolsonaro contra minorias sexuais, mulheres e indígenas. Quinta Leal é do grupo de oposição ao governo do anfitrião de Bolsonaro, o presidente Sebastián Piñera.
Em entrevista à BBC News Brasil em seu gabinete, Quintana Leal deixou claro que não questiona a legitimidade de Bolsonaro, que sua decisão "não tem a ver com o cargo da Presidência, mas com a pessoa de Jair Bolsonaro e suas declarações homofóbicas, misóginas e em relação à tortura. Participar de uma atividade de homenagem a ele (Bolsonaro), atingiria muitas pessoas de nosso país que se sentem prejudicadas por suas declarações".
Quintana Leal diz que declarações recentes do ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, elogiando Augusto Pinochet, jogaram sal em uma ferida profunda ainda aberta na sociedade chilena. Lorenzoni disse que Pinochet "teve de dar um banho de sangue" para ajeitar a economia do país.
"Esse é um tema muito doloroso para o Chile, não só para quem foi vítima direta da violação de direitos humanos cometida pela ditadura."
Segundo dados oficiais, mais de 3 mil pessoas foram assassinadas e mais de 30 mil foram torturadas nos anos Pinochet.
"Quando ele (Bolsonaro) se declara um admirador de Pinochet, isso é muito forte. Os admiradores de Pinochet não são bem vindos ao Chile", afirma Quinta Leal, manifestando preocupação com o que Bolsonaro "representa".
"Porque à medida que sigamos endossando lideranças que começam com discursos populistas, mas terminam consolidando regimes totalitários, a ameaça não é só para um país. Termina sendo uma ameaça para a humanidade. Isso aconteceu na Europa dos anos 1930."
O presidente do Senado chileno ressaltou, entretanto, que "se amanhã Bolsonaro ou o governo nos mandam um projeto que melhora as relações de cooperação, isso tem prioridade e urgência".
"Reitero que o Brasil é um país com o qual nós queremos ter o melhor entendimento, temos profundo respeito pelo povo brasileiro e temos uma relação comercial muito boa. O Brasil é muito importante para o Chile, e acredito que o contrário também."
Ao chegar ao Chile na quinta-feira, Bolsonaro foi questionado sobre a recusa de Quintera Leal mas evitou aprofundar a discussão. "Os convidados para o almoço, isso não foi feito pela minha assessoria. Quem convidou aqui do Chile sabia quem estava convidando", respondeu a jornalistas.
Prosul e Venezuela
Para realçar que sua diferença com Bolsonaro se dá em um plano mais estreito do que o do espectro político, Quintana Leal relatou que aceitou almoçar com outro presidente de direita, Iván Duque, da Colômbia, que é um presidente de direita, com quem tem "posições bastante antagônicas".
"Dividimos a mesa, em um clima muito civilizado. Mas nunca escutei de Duque expressões que atacam os pilares centrais da democracia, os valores essenciais de direitos humanos."
Duque está no Chile para participar do encontro de chefes de Estado da América do Sul que discutirá a criação de um novo organismo internacional na América Latina, para substituir a Unasul, União de Nações Sul-Americanas, entidade considerada de esquerda. A nova iniciativa tem sido chamada informalmente de Prosul.
A exemplo de Piñera e Bolsonaro, Quintana Leal vê essa iniciativa com bons olhos. "Nós concordamos com o presidente Piñera de que é importante ter uma referência regional e a Unasul já não estava cumprindo esse objetivo de se reunir, com cooperação, interação", diz, acrescentando ser necessário o cuidado de "não se trocar um organismo internacional ideológico por outro tão ideológico quanto o anterior".
Os líderes que participam do encontro são identificados com a nova onda de direita que tingiu o mapa latino-americano de azul, desde a primeira eleição de Piñera, em 2010. Ela sucede uma voga de governos de esquerda e centro-esquerda, na América Latina, iniciada no começo dos anos 2000.
Quinta Leal diz acreditar que essas alternâncias na região são cíclicas. "Como Duque, Piñera... São países que têm alternância no poder. Pode ganhar um setor ou outro. E, na região, regimes como o de Maduro, com o qual não concordamos, não ajudam precisamente a força de centro-esquerda."
O presidente do Senado chileno diz ser necessário "buscar uma saída pacífica, diplomática e democrática para a crise humanitária na Venezuela", mas que a melhor saída para isso não é "lógica militar, como defende (o presidente americano Donald) Trump".
"Se depositamos nas Nações Unidas a confiança para resolver temas complexos, que afetam a democracia, a liberdade, temos que ser coerentes com isso. E não buscar soluções bilaterais ou com visões particulares para tentar resolver essa crise."