Já em plena campanha à Presidência, Doria quer colar sua
imagem ao do Butantan, da vacina CoronaVac
Em disputa política com Bolsonaro, governador paulista se
promove com a vacina do Butantan, ao mesmo tempo que aprofunda a política de
desmonte e sucateamento do instituto iniciada pelos governos tucanos que o
antecederam
São Paulo – A negativa de autoridades da Índia, nesta sexta-feira (15) de entregar ao governo brasileiro 2 milhões de doses da vacina fabricada no instituto indiano Serum, parceiro da Universidade de Oxford e da farmacêutica AstraZeneca, acirrou ainda mais a disputa política em torno da CoronaVac. De um lado o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e de outro, o governador João Doria (PSDB), ambos obcecados pela eleição presidencial de 2022. No centro, a vacina desenvolvida e produzida pelo instituto Butantan, em parceria com a Sinovac.
Segundo o Ministério do Exterior da Índia, o Brasil se precipitou ao mandar um avião buscar o lote de imunizantes, já que os prazos de produção e entrega ainda estão sendo avaliados. Diante do fracasso na empreitada de começar – ao menos simbolicamente – a vacinação antes de Doria, que prometeu iniciar a campanha no estado para o próximo dia 25, o governo Bolsonaro enviou requerimento ao Butantan solicitando entrega imediata das 6 milhões de doses que o instituto já tem prontas para uso.
Num delírio ideológico, a parceria entre o laboratório
chinês e a instituição vinculada ao governo do estado de São Paulo, fez a
Coronavac virar alvo de críticas e desmoralização por parte de Bolsonaro e seus
seguidores desde que foi anunciada, no ano passado. Para desprestigiar a vacina e seu adversário, o presidente chegou a
desautorizar publicamente o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que anunciou
que o imunizante seria comprado pelo governo federal.
Porém, a explosão de novos casos e mortes por covid-19 a partir
de dezembro levou o ministério a encomendar 46 milhões de doses da CoronaVac no
começo de janeiro. A vacina aguarda liberação emergencial pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), o que deverá ocorrer neste domingo (17).
Dependência externa
O fracasso de Bolsonaro em tentar conseguir vacina para
iniciar a imunização antes de Doria, serviu também para escancarar mais uma vez
o quanto o Brasil depende de outros países para obter vacinas, medicamentos e
insumos, como respiradores para doente de covid-19, oxigênio hospitalar e
equipamentos de proteção individual para profissionais da área de saúde para
enfrentar a pandemia.
E essa dependência é alimentada por governos cujas políticas
priorizam o corte de investimentos em áreas estratégicas como a ciência e a
tecnologia. São ações que consistem na redução sistemática do orçamento de
institutos de pesquisa. Com ela, vêm também a desvalorização dos recursos
humanos, que levam à fuga de cérebros para outros países e na falta de
concursos para manter o corpo de pesquisadores. É o caso do Butantan.
Para fortalecer a imagem do instituto participante da
produção da vacina da covid-19 com o governo paulista, Doria mandou produzir
propaganda que foi ao ar há um mês, no horário nobre da TV. Nela, feitos
históricos do Butantan, fundado em fevereiro de 1901 são enaltecidos. Foi vital
em 1918 no surto da gripe espanhola; em 1948, desenvolveu a vacina contra
influenza; e atualmente produz vacinas que salvam milhões de vidas no Brasil,
como a da raiva, hepatite B, tríplice e 100% das vacinas contra a gripe. Maior
fornecedor do Ministério da Saúde, responsável por 65% das vacinas do SUS, o
Butantan é um dos institutos mais importantes do mundo.
Asfixia do orçamento
Mas apesar da propaganda que mandou fazer para alavancar
seus objetivos políticos, o instituto não recebe o devido tratamento pelo
governo Doria. Dos recursos recebidos, mais de 60% vêm do governo federal. O
Ministério da Saúde é o maior comprador de imunizantes e soros, além de manter
outros convênios. “Os repasses do estado vêm se reduzindo ao longo dos governos
do PSDB em São Paulo. É uma política de asfixia do desenvolvimento tecnológico.
O governo Dilma Rousseff, enquanto o governo estadual (então de Geraldo
Alckmin) asfixiava o orçamento do Butantan, aumentava a participação da União.
Não sei a atual proporção, mas acredito que a União continue a manter a maior
parte, enquanto continua a asfixia pelo governo do PSDB”, diz o ex-ministro da
Saúde e deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP).
O governo tucano de São Paulo é omisso também quanto aos
recursos humanos. Antigos pesquisadores disseram à reportagem que temem pela
perda de todo o seu trabalho de anos de pesquisa com a aposentadoria, uma vez
que o estado não realiza concursos para atualizar o corpo de pesquisadores. O
que dirá então para ampliar grupos de pesquisa em busca de soluções para as
demandas por novas vacinas, soros e outras respostas à saúde pública. O
esvaziamento da pesquisa é tamanho, segundo os cientistas ouvidos, que nunca há
presença de um pesquisador em comunicados sobre a CoronaVac, por exemplo.
Ciência e democracia
O golpe parlamentar, jurídico e midiático que derrubou o
governo de Dilma Rousseff em 2016 teve efeitos também sobre o instituto. A
vacina contra o HPV, última incorporada ao SUS por meio do Programa Nacional de Imunização (PNI), já deveria estar
sendo fabricada em seus laboratórios.
No 100º aniversário, Butantan recebeu abraço de servidores
em protesto contra o sucateamento da infraestrutura científica. (Foto: Gregório
Nakomotome/Jornal do Campus )
Um acordo de transferência de tecnologia da farmacêutica de
origem alemã Merck, Sharp & Dohme para o Butantan, assinado em 2013 pelo
Ministério da Saúde e o BNDES, tinha cinco anos para a conclusão. Mas o governo
de Michel Temer reduziu o ritmo desse e de outros acordos, que agora foram
totalmente paralisados no governo de Jair Bolsonaro.
Padilha denuncia e lamenta a desconfiguração do papel do
BNDES na oferta de crédito, pilar importante da transferência de tecnologia.
Era o banco que proporcionava ao Butantan a capacidade de construir plantas
para a produção dos imunizantes e soros. Além disso, o governo federal
desmontou o comitê de acompanhamento das parcerias público-privadas de
desenvolvimento produtivo.
Soberania na produção
“As políticas em Ciência e Tecnologia são muito importantes
para acelerar o desenvolvimento tecnológico e para transferir tecnologias de
empresas privadas nacionais ou internacionais para instituições públicas
nacionais. Isso traz benefícios para o SUS e garante a soberania do Brasil na
produção. No caso da vacina, há redução de preços ao longo do tempo, o que é
muito importante. Além disso, a tecnologia é incorporada, fica no país,
garantindo a disponibilidade daquele medicamento”, diz Padilha.
Não há informações sobre os prazos para a conclusão da
transferência de tecnologia ao Butantan pela farmacêutica chinesa em relação à
CoronaVac. Para se ter uma ideia, acordos semelhantes assinados pelo Ministério
da Saúde nos governos Lula e Dilma variavam de dois a cinco anos, conforme
parâmetros definidos internacionalmente.
Por exemplo, a adaptação da vacina da gripe comum para a
H1N1 começou em 2010 e encerrou em 2012, quando o Brasil passou a ter soberania
na produção do imunizante. A simplicidade do projeto permitiu a execução em um
curto período. Já no caso da covid-19, um prazo razoável é de cinco anos até a
conclusão da transferência de tecnologia.
Falta transparência
A integrantes da comissão externa da Câmara destinada a
acompanhar o enfrentamento da covid-19, representantes do instituto afirmaram
que o acordo assinado com a Sinovac prevê transferência de tecnologia completa.
Com isso, a instituição centenária deveria cumprir etapas que vão da pesquisa
clínica, envasamento, rotulagem e distribuição até a produção do princípio
ativo.
Procurado, o Butantan não respondeu os questionamentos
da RBA sobre o andamento das ações que estão sendo tomadas do
ponto de vista de infraestrutura e recursos humanos para respaldar o processo
de transferência tecnológica da vacina desenvolvida pelo laboratório chinês.
Faltam informações também sobre os termos do acordo firmado
com a Sinovac, inclusive sobre valores. A CNN teve acesso ao documento que, em suas 21 páginas,
não menciona preços e quantidade das vacinas que devem ser produzidas.
O Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP) questiona pelos
menos duas ações do governo Doria em relação ao enfrentamento da covid-19.
Entre elas, o acordo com a Sinovac – questionado também pelo Ministério Público
estadual. Também analisa a compra sem licitação de 1,5 mil respiradores da
empresa turca Shayra Medikal Saglik Kozmetik Ticaret. O custo é superior a R$
176 milhões.
De quem é a vacina?
Pela regra, a vacina é de quem obtém o registro na Anvisa.
Com a aprovação, mesmo que emergencial, o Butantan terá mais uma vacina em seu
portfólio. Com isso, estaria legitimado o termo “vacina do Butantan” cravado
por João Doria em sua propaganda.
Mas os termos assinados com a Sinovac, segundo a CNN,
garantem ao laboratório chinês todos os direitos de propriedade intelectual, o
que pressupõe cobrança de royalties.
Se o Butantan recebesse os devidos investimentos, poderia
estar fabricando a vacina de fato, e não só envasando e distribuindo. (Foto:
Butantan)
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Fonte: RBA
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