Fabricantes de refrigerantes voltam a cobrar créditos por impostos que nunca pagaram com decreto do governo federal – que ainda cogita legalizar fraude na produção de xaropes.
UM DECRETO ASSINADO por
Jair Bolsonaro e Paulo Guedes em benefício da indústria de refrigerantes
custará R$ 1,8 bilhão em recursos federais ao longo dos próximos três anos. O
valor consta em um documento do Ministério da Economia enviado em janeiro ao
Congresso Nacional e parece atender aos interesses de duas empresas: as
gigantes Coca-Cola e Ambev ficarão com R$ 1,6 bilhão, o correspondente a 90% do
total.
Em 19 de outubro, o presidente e
o ministro da Economia decidiram reembolsar subsídios aos fabricantes de
refrigerantes, sucos e chás, por meio de um decreto assinado por ambos. Desde os anos 1990, Coca-Cola,
Ambev e companhia limitada transferiram a fabricação de concentrados (mais
conhecidos como xaropes) para a Zona Franca de Manaus, área de livre comércio e
de incentivos fiscais para a indústria. As corporações tiveram direito a uma
série de isenções em impostos federais, estaduais e municipais.
Mas acharam pouco. Para evitar a
cobrança de tributos em cascata, a Constituição prevê que a União conceda um
crédito de Imposto sobre Produtos Industrializados, o IPI, entre uma etapa e
outra da cadeia de fabricação de qualquer produto. No caso de refrigerantes,
sucos e chás, a produção tem basicamente duas etapas. Primeiro, um concentrado
é produzido usando matérias-primas (sucos, aditivos, xaropes). Esse concentrado
é comprado por uma engarrafadora, que o dilui em água e açúcar ou adoçante,
engarrafa e distribui. Ou seja, o valor dos créditos é calculado em cima da
diferença entre o IPI dos xaropes e o IPI do produto final.
Para simular uma situação real:
se uma empresa compra R$ 100 de concentrados de refrigerante, tem direito a um
crédito cobrado sobre a diferença entre as duas alíquotas. Simplificando, se o
produto final paga 4% de IPI (que seria, neste exemplo, o equivalente a R$ 4),
e o concentrado paga 9% (equivalente a R$ 9), a empresa poderá obter um crédito
de R$ 5.
No caso da Zona Franca, a
alíquota é zerada. Ainda assim, as fabricantes cobram o crédito como se
pagassem imposto normalmente, num esquema em vigor há três décadas. Em outras
palavras, as corporações ganham duas vezes. E os cofres públicos pagam em
dobro: uma, por dar as isenções da Zona Franca, e outra por bancar os créditos
em cima de tributos que jamais foram recolhidos.
Esse artifício foi discutido
e validado pelo Supremo Tribunal Federal, o STF, em março de
1998. O voto que guiou o dos demais ministros partiu de Nelson Jobim, que, além
de presidente do STF, foi ministro de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma
Rousseff. Hoje, o filho dele, Alexandre Kruel Jobim, comanda a Associação
Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas Não Alcóolicas, a Abir,
grande articuladora da manutenção do esquema.
A Receita Federal tenta, desde
então, conter o arranjo, mas esbarra nos interesses dos diferentes governos. Em
audiências públicas e em documentos oficiais, o órgão deixa clara a
insatisfação com a cobrança de créditos em cima de impostos que não existem.
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Fraude legalizada
O Brasil tem a peculiar situação
de um setor empresarial que luta por impostos mais altos: quanto maior a
alíquota de IPI dos concentrados (que não serão pagos), maior será a diferença
em relação ao IPI dos refrigerantes (igualmente abatidos) e, portanto, maior o
crédito embolsado pelas indústrias.
Isso cria um estímulo para que as
empresas superfaturem preços. A Receita chegou a encontrar uma diferença de 64
vezes entre o custo real de produção do xarope e o valor cobrado pela empresa
engarrafadora. As notas fiscais obtidas por
O Joio e o Trigo em 2017 mostravam que um quilo de concentrado de Ambev e
Coca-Cola chegava a custar R$ 450, contra R$ 36 de um concorrente. Uma
diferença inexplicável, considerando que os produtos que formam um xarope são
baratos e padronizados.
A distância entre as alíquotas de
IPI chegou a ser de 16 pontos ao longo de praticamente toda a década passada –
retomando o exemplo anterior, numa compra de R$ 100 em concentrados, o crédito
ficaria em torno de R$ 16. Com isso, o país perdia em torno de R$ 2 bilhões ao
ano em créditos. E os fabricantes dos concentrados gozavam de um pacote de isenções
semelhante: R$ 1,9 bilhão.
Nesse período, considerando as
isenções e os créditos de tributos estaduais e federais, o cruzamento de dados feito pelo Joio mostrou que ao
menos R$ 7 bilhões ao ano eram dados às fabricantes de refrigerantes – a
Associação de Fabricantes de Refrigerantes do Brasil, a Afrebras, formada por
empresas concorrentes de Coca-Cola e Ambev, chegou a falar em R$ 10 bilhões.
Em 2017, a Receita respondeu a
uma consulta feita pelo Joio com um documento no qual afirmava que o setor
dava prejuízo ao governo – uma arrecadação negativa de 4% – ou seja, em vez de
ganhar com impostos, o Estado tinha um prejuízo de 4% só nessa operação.
Em 2018, quando precisava fazer
caixa para lidar com as demandas surgidas da greve dos caminhoneiros, Michel
Temer chegou a zerar essa diferença. De lá para cá, foram muitas idas e
vindas, até que, em outubro, Jair Bolsonaro estabeleceu uma diferença de quatro
pontos entre as duas alíquotas.
Com isso, o Ministério da
Economia e a Receita Federal estimam que o governo perderá R$ 547 milhões
apenas em 2021, mais R$ 624 milhões em 2022 e R$ 669 milhões em 2023. O valor
de um ano seria suficiente para dobrar o tamanho do Programa de Aquisição de
Alimentos, o PAA, que adquire a produção da agricultura familiar para
distribuir às famílias em situação de alta vulnerabilidade.
Vale reiterar que essa é apenas a
perda com IPI. Fora isso, há abatimento de 75% no Imposto de Renda, crédito de
PIS-Cofins e isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, o
ICMS, que é estadual – benefícios que permitem que o governo perca
anualmente os R$ 7 bilhões já mencionados para a indústria de refrigerantes.
O subsídio coloca o Brasil, de
novo, na contramão das políticas para o setor. Dezenas de países, estados e
municípios têm criado impostos especiais sobre bebidas adoçadas como forma de
desestimular o consumo e frear os índices de doenças crônicas não
transmissíveis (como problemas cardiovasculares e diabetes), que respondem
por sete das dez principais causas de morte no mundo.
A rachadinha dos refrigerantes
O problema dos refrigerantes é
tão grave que levou a Receita a abrir, em 2016, uma força-tarefa voltada ao
assunto. Além de superfaturamento, o órgão ressalta outras fraudes. O esquema
mais comum é as empresas simplesmente fingirem que montam o concentrado na Zona
Franca, para ter direito às isenções, mas sem fazê-lo de fato. O órgão
registrou em um documento de 2018 que “a maior parte dos fabricantes
de refrigerantes e outras bebidas açucaradas vêm se aproveitando de créditos
oriundos de insumos que não podem ser identificados como concentrados”.
Ainda segundo a Receita, os
recursos obtidos na Zona Franca são utilizados para pagar um terço dos vultosos
gastos com publicidade – R$ 3 bilhões ao ano entre todas as fabricantes de
bebidas adoçadas. O esquema também é usado para pagar direitos de marca das empresas, remetendo
recursos ao exterior para driblar a tributação. “Pode-se dizer que a principal
‘mercadoria’ vendida por grandes companhias instaladas na Zona Franca de Manaus
não são os ‘concentrados’ (produto de baixo valor agregado), mas sim o direito
de uso de marcas estrangeiras.”
A investigação feita por O Joio e o Trigo mostrou que
essa operação é uma espécie de rachadinha. A empresa-matriz – nesse caso, a
Coca-Cola – simula ter cedido gratuitamente os direitos de marca. A Recofarma,
fabricante dos xaropes da companhia na Zona Franca, superfatura as notas
fiscais de concentrados, que, como mostra a Receita, são usadas para embutir
esse pagamento dos direitos de marca. Os créditos e as isenções são depois
repartidos entre a Recofarma e a engarrafadora. De acordo com a Receita, o
setor de refrigerantes era, em 2017, o que mais remetia lucros e dividendos ao
exterior.
O governo Bolsonaro trouxe uma
maré de “sorte” para as grandes fabricantes de refrigerantes. No mesmo 19 de
outubro em que a caneta presidencial firmou o decreto do IPI, o Ministério da
Economia deu mais um passo para amarrar as mãos da Receita. Foi aberta
uma consulta pública para regulamentar o “kit xaropinho”, que legaliza uma fraude cometida na Zona
Franca.
A ideia central é alterar o
Processo Produtivo Básico de fabricação do xarope nessa área do país. Em termos
gerais, a nova redação permite que os itens utilizados no concentrado sejam
simplesmente reunidos dentro da Zona Franca, sem necessidade de fabricá-lo de
fato.
Em resposta, Afrebras, associação
concorrente da Coca-Cola e da Ambev, teve de dizer o óbvio: “O que torna um
‘concentrado’ realmente um concentrado é justamente a mistura de seus
ingredientes de forma a se obter um produto com os mesmos insumos do produto
final, sem uma parcela da sua parte líquida (água)”.
Procuramos as assessorias de
comunicação de Coca-Cola, Ambev e Abir. Apenas a Ambev enviou um
comunicado, sem responder a qualquer pergunta enviada. A corporação
enfatizou um dos produtos de sua linha, o Guaraná Antarctica, que “tem as
raízes na Amazônia desde a sua origem”. A empresa destacou ainda ter operações
em fazendas e no próprio polo industrial de Manaus. “Neste contexto, seguimos
analisando as mudanças promovidas aos estímulos da Zona Franca de Manaus,
sempre comprometidos com as comunidades e o meio ambiente local”.