Evidências Indicam que Civis Foram Deliberadamente Privados
de Acesso a Comida e Água
Pessoas fazem fila para comprar pão em uma padaria
parcialmente destruída, mas ainda operacional, no campo de refugiados de
Nuseirat, em Deir al Balah, Gaza, em 4 de novembro de 2023. © 2023 Ashraf
Amra/Anadolu via Getty Images
- O
governo israelense está usando a fome de civis como estratégia de guerra
na Faixa de Gaza, o que é um crime de guerra.
- Autoridades
israelenses fizeram declarações públicas expressando seu objetivo de
privar civis, em Gaza, de comida, água e combustível – estas declarações
refletem uma prática levada a cabo pelas forças israelenses.
- O
governo israelense não deveria atacar insumos indispensáveis à
sobrevivência da população civil, devendo suspender seu bloqueio da Faixa
de Gaza e restaurar eletricidade e água.
(Jerusalém) – O governo israelense está
usando a fome de civis como estratégia de guerra na Faixa de Gaza ocupada, o
que é um crime de guerra, disse a Human Rights Watch hoje. As forças
israelenses estão deliberadamente bloqueando a entrada de água, alimentos e
combustível, enquanto impedem intencionalmente a assistência humanitária,
aparentemente arrasando áreas agrícolas e privando a população civil de insumos
indispensáveis à sua sobrevivência.
Desde que os combatentes liderados pelo Hamas atacaram
Israel, em 7 de outubro de 2023, altos funcionários israelenses, incluindo
o Ministro da Defesa, Yoav Gallant, o Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, e
o Ministro da Energia, Israel Katz, fizeram declarações
públicas expressando seu objetivo de privar civis de comida, água e
combustível em Gaza – declarações estas que refletem uma prática levada a cabo
pelas forças israelenses. Outros funcionários israelenses declararam
publicamente que a ajuda humanitária a Gaza seria condicionada à liberação de
reféns detidos ilegalmente pelo Hamas ou à destruição do Hamas.
“Por mais de dois meses, Israel tem privado a população de
Gaza de alimentos e água, uma política incentivada ou endossada por altos
funcionários israelenses, refletindo uma intenção de matar civis de fome como
estratégia de guerra”, disse Omar Shakir, diretor de
Israel e Palestina da Human Rights Watch. “Líderes mundiais deveriam se
pronunciar contra esse abominável crime de guerra, que tem efeitos devastadores
na população de Gaza.”
A Human Rights Watch entrevistou 11 palestinos deslocados em
Gaza entre 24 de novembro e 4 de dezembro. Eles descreveram suas profundas
dificuldades em satisfazer suas necessidades básicas. “Não tínhamos comida,
eletricidade, internet, nada”, disse um homem, que havia deixado o norte de
Gaza. “Não sabemos como sobrevivemos.”
No sul de Gaza, as pessoas entrevistadas descreveram a
escassez de água potável e a falta de alimentos, que ocasionou lojas vazias e
longas filas, além de preços exorbitantes. “Você está em constante busca por
coisas necessárias para sobreviver”, disse um pai de dois filhos. O Programa
Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas relatou, em 6 de dezembro, que 9 em cada 10 domicílios no
norte de Gaza e 2 em cada 3 domicílios no sul de Gaza passaram pelo menos um
dia e uma noite inteira sem comida.
O direito humanitário internacional, ou as leis da guerra,
proíbem a fome de civis como estratégia de guerra. O Estatuto de Roma, do
Tribunal Penal Internacional, estabelece que privar intencionalmente civis de
“bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, inclusive, o envio de
socorros” é um crime de guerra. A intenção criminosa não exige a admissão
do agressor, podendo ser inferida da totalidade das circunstâncias da campanha
militar.
Além disso, o bloqueio contínuo de Gaza por Israel, bem como
seu fechamento por mais de 16 anos, equivale à punição coletiva da população
civil, que é um crime de guerra. Enquanto potência ocupante em Gaza, nos termos
da Quarta Convenção de Genebra, Israel tem o dever de garantir que a população
civil receba alimentos e suprimentos médicos.
Em 17 de novembro, o PMA alertou sobre a “possibilidade imediata” de inanição,
destacando que os suprimentos de alimentos e água eram praticamente
inexistentes. Em 3 de dezembro, informou um “alto risco de fome”, indicando que o
sistema alimentar de Gaza estava à beira do colapso. E, em 6 de dezembro, declarou que 48% dos domicílios no norte de Gaza e 38%
das pessoas deslocadas no sul de Gaza haviam experimentado “níveis severos de
fome”.
Em 3 de novembro, o Conselho Norueguês para Refugiados anunciou que Gaza estava lidando com “necessidades
catastróficas de água, saneamento e higiene”. Instalações de águas residuais e
dessalinização foram desativadas em meados de outubro devido à falta de combustível e eletricidade, e têm permanecido
inoperantes desde então, de acordo com a Autoridade Palestina da Água. Mesmo
antes de 7 de outubro, segundo
a ONU, Gaza praticamente não tinha água potável.
Antes das hostilidades atuais, estima-se que 1,2 milhão dos
2,2 milhões de pessoas que habitavam em Gaza enfrentavam insegurança alimentar aguda, e mais de 80%
dependiam de ajuda humanitária. Israel mantém
controle abrangente sobre Gaza, incluindo sobre o movimento de pessoas
e bens, águas territoriais, espaço aéreo, a infraestrutura da qual Gaza
depende, bem como o registro da população. Isso deixa a população de Gaza, que
Israel submete a um bloqueio ilegal há 16 anos, quase totalmente dependente de
Israel para ter acesso a combustível, eletricidade, medicamentos, alimentos e
outros recursos essenciais.
Após a imposição de um “bloqueio total” a Gaza, em 9 de
outubro, as autoridades israelenses retomaram o fornecimento de água para algumas partes do sul de
Gaza, em 15 de outubro e, a partir de 21 de outubro, permitiram a chegada de
ajuda humanitária limitada, através da travessia de Rafah, fronteira com
o Egito. O
primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse, em 19 de outubro, que Israel não permitiria a entrada de
ajuda humanitária “na forma de alimentos e medicamentos” em Gaza através de
suas estradas “enquanto nossos reféns não forem devolvidos”.
O governo continuou a bloquear a entrada de combustível até
15 de novembro, apesar dos alertas sobre
as graves consequências de fazê-lo, levando ao fechamento de padarias, hospitais, estações de
bombeamento de esgoto, usinas de dessalinização e poços. Essas instalações, que
ficaram inutilizáveis, são indispensáveis à sobrevivência da população civil.
Embora quantidades limitadas de combustível tenham sido posteriormente
permitidas, em 4 de dezembro, a Coordenadora Humanitária da ONU para os
Territórios Palestinos Ocupados, Lynn Hastings, chamou-as de “totalmente insuficientes”. Em 6 de
dezembro, o gabinete de guerra de Israel aprovou um aumento “mínimo”
no fornecimento de combustível para o sul de Gaza.
Em 1º de dezembro, imediatamente após o cessar-fogo de sete
dias, o exército israelense retomou o bombardeio de Gaza e expandiu sua
ofensiva terrestre, declarando que suas operações militares no sul não teriam
“menos força” do que no norte. Enquanto autoridades dos Estados Unidos disseram
que pediram a Israel para permitir a entrada de combustível e ajuda humanitária
em Gaza nos mesmos níveis observados durante o cessar-fogo, o coordenador do
Ministério da Defesa de Israel para atividades governamentais nos
territórios disse, em 1º de dezembro, que interrompeu toda a entrada de
ajuda. Entregas limitadas de ajuda foram retomadas em 2 de dezembro, mas ainda
em níveis extremamente insuficientes, segundo o Escritório das Nações Unidas
para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês).
Junto ao bloqueio devastador, os extensos ataques aéreos do
exército israelense na faixa resultaram em danos generalizados ou destruição de
objetos indispensáveis para a sobrevivência da população civil.
Especialistas da ONU disseram, em 16 de novembro, que os danos significativos “ameaçam
tornar impossível a continuação da vida palestina em Gaza”. Notavelmente, o
bombardeio das forças israelenses ao último moinho de trigo que operava em
Gaza, em 15 de novembro, garantiu que a farinha produzida localmente esteja
indisponível em Gaza por tempo indeterminado, conforme destacado pelo OCHA. Além disso, o Escritório das Nações
Unidas para Serviços de Projetos (UNOPS, na sigla em inglês) disse que a destruição das redes viárias tornou mais
difícil para as organizações humanitárias entregarem ajuda para quem precisa.
“Padarias e moinhos de grãos foram destruídos, assim como
agricultura, água e instalações de saneamento”, disse Scott Paul, consultor sênior de políticas
humanitárias da Oxfam América, à Associated Press em 23 de novembro.
As ações militares de Israel em Gaza também tiveram um
impacto devastador no setor agrícola de Gaza. O bombardeio contínuo, somado à
escassez de combustível e água, além do deslocamento de mais de 1,6 milhão de
pessoas para o sul de Gaza, tornou a agricultura quase impossível, segundo a Oxfam. Em um relatório de 28 de novembro, o
OCHA disse que a criação de gado no norte está enfrentando
fome devido à falta de ração e água, e que as plantações estão cada vez mais
abandonadas e danificadas devido à falta de combustível para bombear água para
irrigação. Problemas existentes, como a escassez de água e o acesso restrito a
terras agrícolas localizadas perto da fronteira, agravaram as dificuldades
enfrentadas pelos agricultores locais, muitos dos quais estão deslocados. Em 28
de novembro, o Escritório Central de Estatísticas da Palestina disse que Gaza está sofrendo uma perda diária de pelo
menos US$1,6 milhão na produção agrícola.
Em 28 de novembro, o Setor de Segurança Alimentar da
Palestina, liderado pelo PMA e pela Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura, relatou que mais de um terço das terras agrícolas no
norte foram danificadas nos confrontos. Imagens de satélite analisadas pela
Human Rights Watch indicam que, desde o início da ofensiva terrestre do
exército israelense, em 27 de outubro, terras agrícolas, incluindo pomares,
estufas e fazendas no norte de Gaza, foram arrasadas, aparentemente pelas
forças israelenses.
O governo israelense deveria cessar imediatamente o uso da
fome de civis como estratégia de guerra, disse a Human Rights Watch. Também
deveria respeitar a proibição de ataques a insumos indispensáveis para a
sobrevivência da população civil e suspender o bloqueio imposto à Faixa de
Gaza. O governo deveria restaurar o acesso a água e eletricidade e permitir a
entrada de alimentos, ajuda médica e combustível, urgentemente necessários em
Gaza, inclusive através de sua passagem em Kerem Shalom.
Governos preocupados deveriam pedir a Israel o fim de tais
abusos. Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Alemanha e
outros países também deveriam suspender a assistência militar e as vendas de
armas para Israel, enquanto as forças israelenses continuarem a cometer abusos
generalizados e graves, que equivalem a crimes de guerra contra civis com
impunidade.
“O governo israelense está agravando o castigo coletivo que
impõe à população civil palestina e o bloqueio de ajuda humanitária com o uso
cruel da fome como arma de guerra”, disse Shakir. “A catástrofe humanitária em
Gaza exige uma resposta urgente e eficaz da comunidade internacional.”
Fonte: Human Rights Watch