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sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Caçadores ilegais: brasileiros compartilham dicas de caça e venda de armas no Facebook


Grupos com milhares de usuários compartilham registros de animais mortos ilegalmente, venda de armas e piadas com a fiscalização do Ibama



  • Grupo com quase 60 mil membros tem dicas de caça ilegal de animais ameaçados de extinção

  • Vendedores de artigos de caça administram comunidades que incentivam crimes

  • Regras do Facebook proíbem venda de armas ou caça ilegal – mas grupos seguem ativos e crescendo


“Aqui se reuni [sic] os verdadeiros HOMEM DA MATA” diz a descrição do grupo de Facebook “Homem da Mata Original”. Lá, mais de 66 mil usuários compartilham dicas e experiências em caças ilegais, inclusive de animais ameaçados de extinção. A prática não viola somente a lei brasileira, mas também as diretrizes da plataforma. 

As postagens incluem majoritariamente imagens e vídeos de animais abatidos, entre eles pacas, capivaras, tatus, jacarés e javalis — o último é o único animal cuja caça de controle sem crueldade é permitida, por se tratar de espécie nociva e invasora. Os membros do grupo ainda compartilham dicas para obtenção do registro de caçador, que permite o acesso às armas, além de trocar experiências e receitas para o preparo dos animais. Piadas com a possibilidade de fiscalização pelo Ibama são comuns.

“Você está filmando o flagrante e divulgando em uma rede social”, resume a advogada Erika Bechara, professora de direito ambiental na PUC-SP. “Eles estão chamando pessoas para ilegalidade com eles”, diz.

Imagem de capa do maior grupo de caça no Facebook

A Pública encontrou outros 13 grupos do mesmo tipo na rede social. Todos voltados para caçadores e com postagens de caça ilegal. Em parte deles, a reportagem identificou também postagens de venda de armas de fogo entre usuários — outra violação da lei e das regras do Facebook, que proíbe conteúdo que “tente comprar, vender, trocar, doar, presentear ou solicitar armas de fogo, peças de armas, munição, explosivos ou substâncias letais entre pessoas físicas, a menos que tal seja publicado por uma loja física real, um site legítimo, uma marca ou uma agência do governo”.

Em retorno à reportagem, o Ibama afirmou que notificou o Facebook em 13 de julho deste ano para que, em até sete dias, a rede “suspendesse a divulgação de anúncios relativos à venda de animais silvestres, partes ou produtos/subprodutos oriundos destes, quando não adequados à legislação ambiental brasileira”. A rede respondeu e o processo está sendo analisado. O órgão também afirmou que “em 2020, foram aplicados 58 autos de infração por caça ilegal, totalizando multas no valor de R$1.138.500,00. Já em 2021, foram 14 autos de infração [até então], totalizando R$506.000,00”. O órgão não comentou se considera que a publicização da caça ilegal pode estimular a prática. 

“99% dos que postam aqui neste grupo é caça ilegal”, diz usuário de comunidade com quase 60 mil membros

No dia 7 de agosto de 2020, um dos membros do grupo “Caça e Pesca Brasil”, com mais de 6,9 mil participantes, compartilhou uma imagem de um tatu morto em cima de uma balança. “A maioria vê crime, mas alguns veem farofa”, dizia a legenda. 

Postagens desse tipo são comuns. Em outro grupo, intitulado “Rota Caça e Pesca”, este com mais de 57 mil membros, um caçador postou foto de um jacaré que levou um tiro na cabeça com a legenda “só pra quem gosta”.


“99% dos que postam aqui neste grupo é caça ilegal”, diz usuário de comunidade com quase 60 mil membros


No dia 7 de agosto de 2020, um dos membros do grupo “Caça e Pesca Brasil”, com mais de 6,9 mil participantes, compartilhou uma imagem de um tatu morto em cima de uma balança. “A maioria vê crime, mas alguns veem farofa”, dizia a legenda. 

Postagens desse tipo são comuns. Em outro grupo, intitulado “Rota Caça e Pesca”, este com mais de 57 mil membros, um caçador postou foto de um jacaré que levou um tiro na cabeça com a legenda “só pra quem gosta”.

Caçadores ironizam o abate ilegal de animais em grupos de Facebook

Em ambos os casos, essas caças são ilegais — assim como na maioria das postagens nos grupos analisados. “Quando a pessoa se registra como caçador, ela só poderia estar caçando javalis. Qualquer outro abate de animal é considerado crime”, explica Paulo Pizzi, biólogo e presidente do Mater Natura –Instituto de Estudos Ambientais

Há exceções para casos de abate de animais que ameaçam lavouras ou rebanhos, mas é necessária uma autorização do Ibama para cada caso e indivíduo. Ainda é permitido abater animais em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família, mas Pizzi afirma: “Isso é uma possibilidade que não está bem regulamentada. Você tem muita controvérsia nisso”. 

Erika Bechara acrescenta que “a caça de subsistência é daquela pessoa que não tem acesso a outras fontes de proteína animal, porque mora muito longe, porque não tem nenhuma condição financeira. Então ela caça para se manter, para atender às suas necessidades básicas e elementares. Você não pode dizer que uma pessoa que vive em uma cidade, que pode comprar um frango super barato, caça por estado de necessidade. Há aí um desvirtuamento da norma”, explica.  

Apesar de os caçadores compartilharem receitas de preparo de suas caçadas para alimentação, não se trata de “estado de necessidade”, como define a lei. O biólogo explica que nesses casos os animais são caçados “por terem uma carne mais apreciada, como iguaria”, não como subsistência. 

Os membros dos grupos de Facebook têm consciência de que estão cometendo ilegalidades, mas se aproveitam da falta de fiscalização para continuar com as práticas. Em 6 de maio de 2020, um novo integrante do grupo “Rota e Caça” perguntou aos colegas: “Aqui no Brasil pode caçar o que legalmente? O que é preciso para tal prática?”. Em resposta, um caçador alertou: “Na verdade mesmo não pode caçar nada. Um ou outro porco com licença. Muito difícil conseguir”, comentou. “99% dos que postam aqui neste grupo é caça ilegal”, admitiu outro.

Membros dos grupos reconhecem que caça é ilegal no Brasil

A pena para a caça ilegal é de detenção de seis meses a um ano, e multa, conforme a lei 9.605/98, mas há agravantes, por exemplo para a caça noturna, prática comum nos grupos analisados. “Quando a lua está clara o jeito é ir no jaca [jacaré]”, postou usuário no grupo “Aventuras de Caça e Pesca” no dia 18 de agosto. 

Há ainda postagens que exibem o uso de armadilhas e de cães para a caça, o que pode ser considerado maus-tratos e aumentar a pena do crime. No grupo “Amigos da Caça, Pesca e Armas”, usuários compartilharam vídeos com instruções para fazer armadilhas para caça de animais menores como paca, tatu e cutia.

O agravante dos maus-tratos não se aplica somente a esses casos. Alguns usuários  compartilham também vídeos que mostram os animais caçados sendo torturados, como uma piada. “Grupo de caça só quem gosta entende”, escreve um caçador ao postar vídeo no qual um homem segura pelo rabo um tatu que tenta fugir enquanto cachorros mordem várias partes do corpo do animal. Outros participantes do grupo “Aventuras de Caça e Pesca” chegaram a considerar a situação extrema. “Pra que a covardia, dê ao bicho pelo menos uma morte digna”, escreveu um homem nos comentários. “Sei que o grupo é de caça mais [sic] um bichinho não precisa ser torturado assim.” 

Outra situação que gera desentendimento entre os integrantes dos grupos está ligada ao abate de animais prenhes ou recém-paridos. Em outro post, feito em 14 de julho deste ano, um caçador publica uma foto de uma paca morta, ao que outro comenta: “Ei parceiro a paca tava buchuda ou parida esses tempos as femias [sic] estão criando”. A foto gera um debate entre os que defendem e os que rechaçam a situação, com insultos e xingamentos.

Caçadores fazem piada com a extinção de espécies pela caça ilegal

De acordo com o Livro Vermelho – Manual das EspéciesAmeaçadas de Extinção, produzido por pesquisadores do ICMbio e publicado em 2018, a caça é o quinto fator que mais ameaça os animais silvestres, antecedido pela agropecuária, expansão das áreas urbanas, produção de energia e poluição. Segundo Paulo Pizzi, a caça também é uma das principais causas da defaunação — processo de desaparecimento de animais em áreas de floresta —, junto com a alteração de hábitats e atropelamentos. A Pública constatou que vários dos animais abatidos que aparecem em postagens nesses grupos estão ameaçados de extinção, em diferentes níveis. 

 

Donos de lojas de caça administram contas e grupos

“Bem vindo as trilhas [sic] do Rancho Branco. Não mate nada além do tempo, não tire nada além de fotos”, diz a placa do Portal Ecotur Rancho Branco, em Bodoquena, Mato Grosso do Sul, no Pantanal. O ecoresort, onde interessados podem acampar e fazer trilhas, é ligado a Hudson Nunes, dono e único sócio da marca Homem do Mato, de venda de artigos de caça, e administrador dos grupos de Facebook “Homem do Mato Caça e Pesca”, com 205 mil membros, e “Caça e Pesca Homem do Mato”, com mais de 5 mil membros.

Fotos no Instagram do portal Ecotur Rancho Branco pregam preservação ambiental

Neste segundo grupo — criado para caso o original seja desativado pela moderação, conforme descrito na própria página — são compartilhadas fotos de armas e de animais abatidos, além de dicas de caça e cozimento. A maioria das fotos mostra javalis, mas a reportagem encontrou também animais cuja caça não é permitida. O grupo é utilizado também para divulgar a marca de seu administrador, que já na descrição escreve: “É OBRIGATÓRIO [caixa-alta do original] curtir nossa página oficial no Facebook”. 

Após a publicação da reportagem, Hudson Nunes admitiu ser proprietário dos grupos citados pela Pública, mas negou a existência de postagens de caçadas ilegais. “Os grupos administrados por mim são um dos poucos grupos que seguem a risca sobre postagens de animais exóticos. NENHUMA postagem de animal exótica é permitida em nosso grupo, todo conteúdo enviado no grupo passa pela fiscalização de nossos administradores para depois ser aprovado no grupo”, disse. “Lá 90% do conteúdo são sobre curiosidades da vida no mato, videos engraçados, dicas de pesca e as vezes algumas fotos de CAÇADAS LEGAIS de javalis, onde são feitas por controladores licenciados!”, completou.

Nunes também ressaltou que: “Eu não sou proprietário do Portal Ecotur, eu prestei serviço de mídia social apenas por um tempo e é um lugar que frequento com frequência, pois sou um amante da natureza e até onde sei isso não é ilegal não é mesmo?”, questionou.

Sobre a loja Homem do Mato, ele afirmou ser “proprietário e criador da marca e das mídias sociais.” “Tenho uma empresa que trabalha com produtos de caça e pesca, porém não comercializamos armas de fogo (ainda não), estamos aguardando a liberação dos órgãos compententes”, contou.

Em seu perfil pessoal no Instagram, onde declara a sua relação tanto com a marca de caça quanto com o rancho ecológico, Nunes publica fotos e vídeos atirando com espingardas no local que busca atrair turistas com belezas naturais e preservação da natureza. 

“E essa surpresa na hora do mergulho!”, escreve Nunes em um Reels em seu perfil pessoal na rede. O vídeo mostra uma arraia que nada em um rio. “Muitos a temem, mas acredite, é menos ofensiva do que se imagina e casos por ferroada de arraia são muito raros por aqui”, explica no post. Logo depois, em post compartilhado também no perfil do Homem do Mato, a abordagem muda. “Saudade de uma porçãozinha exótica”, é a legenda da foto que mostra o próprio Nunes preparando a carne de uma arraia morta e estendida em uma mesa. 

No perfil do Homem do Mato no Instagram, Nunes é marcado e indicado como administrador responsável por uma série de posts que mostram armas de fogo e abate de animais, além da publicidade dos produtos da loja, que vende bonés, camisetas, lanternas, utensílios de churrasco e carabinas de pressão. Em outubro de 2018 foi publicada uma foto de Nunes vestindo o boné da empresa e uma camiseta em apoio à candidatura de Jair Bolsonaro, pelo PSL, à Presidência. “O boné tá na cabeça certa!!”, afirma a legenda.

Hudson Nunes declarou apoio a Bolsonaro

A empresa administra também um perfil +18 sobre caça na rede, de conteúdo desconhecido pela reportagem, já que a conta é privada. A bio, entretanto, oferece uma dica sobre os posts: “CONTEÚDO AGRESSIVO”. A moderação do próprio Instagram havia barrado conta semelhante, o que foi denunciado pelo perfil da loja: “Lembra daquele perfil agressivo que o insta derrubou? Criei outro e mais de 3600 pessoas seguiram só hoje”. 

Nos perfis do ecoresort, entretanto, não há violência ou agressividade. São as belas paisagens naturais que tomam o feed. Nunes aparece pouco. 

Outra loja de nome parecido, a Homem da Mata, também se destaca. Seu dono, Márcio Barros de Paula, é administrador de pelo menos oito grupos sobre caça e pesca no Facebook. O caçador tem no mínimo cinco perfis de Facebook usados para moderar os grupos, com variações de seu nome. 

Além de criar grupos e publicar compilados de vídeos, memes e dicas relacionadas à caça, Barros vende camisetas camufladas com a marca “Homem da Mata”.

A Pública procurou Marcio Barros, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

 

Ministro de Bolsonaro e deputados querem flexibilizar a caça no Brasil

“Na sua opinião qual o animal deveria ser liberado a caça?”, perguntou Barros em uma enquete fixada no grupo “Homem da Mata Original”. “Capivara, porque é uma praga esse trem”, comentou um dos integrantes. A espécie ficou em primeiro lugar na enquete, com 174 votos, seguida por cateto ou queixadas – tipo de porco do mato, parecido com javali. Nos comentários, contudo, os caçadores defendiam uma liberação ainda maior. “Deveria liberar 3 espécies por temporada”, comentou um deles.

A demanda não se restringe aos grupos de caçadores. O próprio presidente, à época candidato, já assumiu ser a favor da “burocracia zero” para a prática desse “esporte saudável”. Em vídeo publicado pela Associação Nacionalde Caça e Conservação (ANCC), em 20 de julho de 2018, Bolsonaro elogia os caçadores. “Um grande abraço a todos vocês. Meus parabéns pela forma como encaram esse esporte, se deus quiser a partir do ano que vem, burocracia zero, vamos implementar, porque é um esporte saudável.” Afirma também que buscará garantir a posse de arma à categoria e finaliza: “Caçadores, parabéns, ‘tamo junto”.

Cinco dias depois, o então candidato negou sua própria afirmação em vídeo publicado no canal de YouTube de seu filho Eduardo Bolsonaro, e no Twitter do presidente. “Não sou favorável à caça, mais um fake news, defendo animais sim”, afirmou o então candidato. “O assunto era javali, tanto é que ele cortou a parte do vídeo que eu falava em javali”, acusa. Bolsonaro afirma que o vídeo foi editado pelo homem que o postou pela primeira vez em 23 de julho. Porém, a informação é falsa: o conteúdo original, postado pela ANCC, está disponível desde o dia 20 e não fala em javali.

A movimentação  chega também ao Congresso Nacional. Há pelo menos seis projetos de lei (PL) que tramitam e querem flexibilizar a caça no Brasil.

O PL 7.136/2010, do deputado e ministro do Trabalho e Previdência de Bolsonaro, Onyx Lorenzoni (DEM-RS), busca transferir às autoridades locais (municipais ou estaduais) a responsabilidade pela autorização de caça. Lorenzoni pediu o desarquivamento da proposta na atual legislatura.

Outros projetos querem abrir brecha para que seja ampliada a quantidade de espécies permitidas para a caça, como o PL 4.829/2020, do deputado Ronaldo Santini (PTB-RS), que busca regulamentar a caça de espécies silvestres nativas com “comprovada nocividade”, quando consideradas em “desequilíbrio populacional”. O texto cita animais como “os jacarés no Pantanal ou capivaras em diversos municípios brasileiros”. 

O mais famoso dos PLs é o 6.268/2016, do ex-deputado Valdir Colatto (MDB-SC), que cria uma Política Nacional de Fauna que inclui a possibilidade de abate de animais silvestres e a implementação de reservascinegéticas em propriedades privadas, ou seja, fazendas de caça. “Eles nem colocaram o nome de fazenda de caça para não chamar a atenção para o propósito”, avalia Erika Bechara. O projeto está entre as prioridades da bancada ruralista no Congresso, conforme revelou reportagem do UOL. 

“​​Há uma grande pressão da indústria bélica incentivando esses deputados”, diz o presidente da Mater Natura. “Eles estão fazendo lotes [de projetos]. Jogando em lotes para que um desses projetos passe.” 

 

Com Bolsonaro, caçadores podem ter mais que o dobro de armas e 15 vezes mais munição

Caçadores têm acesso privilegiado a armas no Brasil, junto com colecionadores e atiradores – os chamados CACs. Para isso, precisam solicitar um registro ao Exército, mediante a apresentação de filiação à entidade de caça. Postagens nos grupos prometem facilitar tanto esse processo, que permite o acesso a armas, quanto o cadastro no Ibama, que regulariza efetivamente o ato de caçar. 

No grupo de WhatsApp, “Caçadores de Pacas”, um usuário de nome “atirador” compartilha uma propaganda: “Descubra como tirar o CR de CAC de forma simplificada e barata”. O anúncio leva o mesmo logo do grupo Brasil CAC, que oferece o mesmo serviço como um brinde àqueles que se inscrevem no curso on-line de caça de javali. “A forma mais vantajosa de ter acesso a arma de fogo é se tornando CAC”, argumenta a organização em seu site.

Anúncio publicado em grupos no Facebook oferece como brinde autorização de caça

Até 2019, os caçadores poderiam comprar até 12 armas, além de 6 mil munições anuais e 2 kg de pólvora. Hoje, têm acesso a até 30 armas, sendo 15 de uso restrito e 15 de uso permitido, além de 90 mil munições e 20 kg de pólvora por ano. Com a facilitação do acesso, aumentou em 59% o número de armas registradas no Exército em dois anos, de acordo com levantamento do jornal O Globo. Segundo informação obtida pela Pública via Lei de Acesso àInformação, somente em 2021 (de janeiro a 9 de agosto), o Exército registrou 19.042 novos colecionadores, atiradores ou caçadores.

A facilitação foi vista com bons olhos pelos membros dos grupos. “Amigos CAC, tão ligados que foi liberado calibre 22 para caça? Antes não era permitido, agora é. Quem gosta, ta na hora!”, comemorou um membro do grupo “Aventuras de Caça e Pesca” em março de 2020. 

Entretanto, Erika Bechara destaca que “não é porque a legislação e os decretos do Bolsonaro ampliam a quantidade de armas e de munição para caçador esportivo que a caça esportiva se torna legal. O caçador esportivo só pode caçar se a lei permitir, e hoje a lei não permite, só permite a caça de controle [do javali]”. 

A diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, vê a flexibilização com preocupação. “A nossa preocupação é que são categorias [CACs] que têm muito pouca fiscalização, onde acabam acontecendo desvios. Elas [as armas] são roubadas, elas são furtadas, ou elas são desviadas propositadamente”, diz.

Possíveis desvios podem ser identificados no próprio Facebook. A reportagem encontrou postagens de compra e venda informal de armamentos em pelo menos quatro dos grupos analisados. A comercialização de armas no Brasil só é permitida mediante autorização e registro no Exército – no caso de CACs – ou na Polícia Federal, mas as ofertas nos grupos não fazem referência a nenhum tipo de registro e muitas vezes são direcionadas para o inbox ou número de celular do vendedor.

Caçador oferece arma para venda no grupo “Caça e Pesca Brasil”

“É um mercado que é muito pouco transparente, que pelas plataformas não deveria acontecer”, defende Carolina Ricardo. 

O Facebook proíbe a venda de armas de fogo dentro da rede social e diz que está investindo esforços em proibir a prática, mas reportagem do Núcleo Jornalismo mostrou que a plataforma ainda tem sido usada para comercialização de armamentos.

 

Regras do Facebook proíbem caça ilegal – mas grupos permanecem ativos e com milhares de usuários

De acordo com as regras de comunidade do Facebook, não são permitidas postagens de caça ilegal. O conteúdo está enquadrado na política de produtos controlados da plataforma, que proíbe publicações que admitam caçar ilegalmente, mostrem a caça ilegal, forneçam instruções sobre como usar ou fazer produtos com espécies ameaçadas ou até falem de forma positiva, coordenem ou incentivem a caça ilegal.

No entanto, os grupos encontrados pela reportagem infringem todas essas regras, e a plataforma parece ciente de que isso ocorre. É o que demonstra o aviso que aparece assim que um usuário tenta entrar no maior grupo que a reportagem identificou, “Homem do Mato Caça e Pesca”. “Analise este grupo antes de participar”, alerta a rede, que mantém o material no ar para mais de 200 mil usuários. 

Algumas das postagens relacionadas à caça inclusive são tarjadas como “conteúdo sensível” pela plataforma, mas continuam disponíveis.

Facebook alerta usuários sobre violações de suas políticas no grupo “Homem do Mato Caça e Pesca”

Há também registros de postagens e grupos que foram excluídos pelo Facebook, mas que conseguiram voltar à plataforma. “Boa noite galera do grupo, quem estava no grupo Caça e Pesca Bruta Brasil o Face excluiu ele por denúncias, por isso ele não está aparecendo. Mais [sic] temos esse aqui e logo estaremos grandes como o outro. Abraços”, postou o administrador do grupo “Aventuras de Caça e Pesca”.

Uma conta da empresa Homem do Mato também foi derrubada pela moderação da rede, de acordo com a biografia do perfil atual, chamado “Homem do Mato TV”. “Nossa Página com 500 mil seguidores foi tirada do ar, estamos com essa conta nova”, escrevem. A página atual tem pouco mais de 30 mil curtidas e o mesmo teor dos outros perfis. 

Com ainda menos fiscalização, caçadores também se reúnem em grupos de WhatsApp. A reportagem identificou ao menos quatro grupos na plataforma voltados para caça ilegal.

Para Paulo Pizzi, a criação de grupos voltados para a caça ilegal nas redes sociais tem aumentado o interesse das pessoas pela caça – que estava em declínio nas comunidades urbanas até então.

Em resposta à reportagem, o Facebook disse que “não permite a promoção de caça ilegal de espécies em risco de extinção e proíbe conteúdos de compra ou venda de armas de fogo, a menos que sejam feitos por loja física real, um site legítimo, uma marca ou uma agência do governo”. Informou também que “os conteúdos e os grupos apontados pela reportagem que violavam essas regras foram removidos”. 

Até a data de publicação desta reportagem, oito dos 14 grupos encontrados continuavam ativos – apenas seis foram excluídos pelo Facebook. Assim que a plataforma fez as exclusões, novos grupos começaram a surgir. “Amigos, peço que entrem no grupo Homem da Mata Original. O Facebook excluiu por ser contra a caça”, convida mensagem em grupo de WhatsApp.

Fonte: Agência Pública


EDUARDO BOLSONARO

Jair Bolsonaro sobre a caça de JAVALIS - 25 de jul. de 2018

Assista ao VÍDEO



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sexta-feira, 2 de julho de 2021

Grupo evangélico fez oferta paralela de vacinas ao Ministério da Saúde e prefeituras


Grupo comandado por pastor foi ao Ministério junto a Dominguetti e ofereceu doses de Astrazeneca e Johnson em parceria com Davati



Em março, uma organização evangélica que articulou a aquisição de vacinas com o Ministério da Saúde (MS) ofereceu imunizantes da AstraZeneca e da Johnson para prefeituras e governos estaduais junto à Davati Medical Supply, revela apuração exclusiva da Agência Pública. A reportagem teve acesso à carta encaminhada aos prefeitos e governadores pela Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) — presidida pelo reverendo Amilton Gomes de Paula — na qual a entidade oferece as doses no valor de US$ 11 a unidade, com prazo de entrega de até 25 dias. O valor seria 3 vezes maior que ofechado pelo Governo Federal para a mesma vacina da AstraZeneca com a Fiocruz, que foi de US$ 3,16, e o dobro do valor do Instituto Sérum, de US$ 5,25. 


Conforme a apuração, a carta da Senah teria sido enviada a diversas prefeituras da região Sul do país. Uma delas foi parar em Ijuí, município de pouco mais de 80 mil habitantes no noroeste do Rio Grande do Sul. A Agência Pública conversou com Luciana Bohrer (PT), vereadora do gabinete coletivo das Gurias, na cidade. Ela conta que tomou conhecimento da oferta por meio de uma pessoa ligada à Senah e que não teve contato com representantes da Davati. 

Na época, de acordo com a vereadora, a organização evangélica junto à Davati já haviam tentado “por mais de trinta dias” negociar diretamente em reuniões com o Ministério da Saúde em Brasília, mas não teria obtido sucesso. “Eram 400 milhões de doses, que eu me lembre, ainda seria fechado em quatro pacotes de 100 milhões”, diz Bohrer. A carta da entidade chegou à vereadora de Ijaí no dia 23 de março de 2021 e foi encaminhada ao prefeito Andrei Cossetin, do Progressistas (PP). Segundo Bohrer, a negociação não foi para frente. Procurada pela reportagem, a assessoria do prefeito afirmou que ele estava em viagem e não respondeu até a publicação da reportagem.

O reverendo Amilton Gomes, fundador e presidente da Senah, esteve no Ministério da Saúde, conforme fotos publicadas em suas redes sociais no dia 4 de março de 2021. Na postagem ele afirma que se reuniu com representantes da pasta “para articulação mundial em busca de vacinas”. Na visita, estava ao seu lado o policial militar de Minas Gerais Luiz Paulo Dominguetti, que afirmou à Folha de S. Paulo que o diretor do Departamento de Logística (DLOG) do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, teria cobrado propina para compra de vacinas . Também esteve na visita o major da Força Aérea Brasileira (FAB) Hardaleson Araújo de Oliveira, antigo conhecido do pastor.

Na foto, o pastor Amilton Gomes, da Senah, em visita ao Ministério da Saúde junto a Dominguetti (o primeiro da foto à esquerda), o diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis, Lauricio Monteiro Cruz (ao meio) e major da Força Aérea Hardaleson Araújo de Oliveira (segundo à direita)

Pastor Amilton Gomes foi à vigilância sanitária do Ministério da Saúde tentar articular vacinas, junto a major da Força Aérea Brasileira

A carta da Senah encaminhada aos gestores é assinada por Amilton Gomes e indica um e-mail da organização religiosa, da Davati e do empresário Renato Gabbi como contatos para “maiores esclarecimentos”. Gabbi é dono de um bar em Chapecó, em Santa Catarina. A reportagem procurou o empresário, que não respondeu até a publicação.

Roberto Dias, que foi indicado ao cargo pelo líder de governo na Câmara, Ricardo Barros (PP/PR), foi exonerado nesta quarta-feira (30/06), após denúncia do jornal. 

Também teriam participado desse encontro, segundo Dominguetti, o tenente-coronel Marcelo Blanco, que era assessor do DLOG na gestão de Roberto Dias, e um empresário de Brasília. 

A reportagem procurou o Ministério da Saúde e questionou a pasta sobre a visita da Senah, tratativas de negociação de vacina e relações com Luiz Paulo Dominguetti. A assessoria não respondeu até a publicação.

Na foto, pastor Amilton Gomes ao lado do senador Flávio Bolsonaro

Líder da Senah criou frente parlamentar religiosa 


O reverendo Amilton Gomes parece ter bom trânsito no meio político de Brasília. Em suas redes sociais ele tem fotos com o filho do presidente Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota/RJ), como mostra a imagem acima,  publicada em junho de 2019. Em uma outra postagem de maio daquele ano, o religioso comemorou receber uma moção de louvor na Câmara dos Deputados. Recentemente, o pastor apareceu na divulgação da “Conferência Nacional de Liderazgo” ao lado da deputada federal bolsonarista Carla Zambelli (PSL/SP).

Amilton Gomes participou ainda da criação da  Frente Parlamentar Mista Internacional Humanitária pela Paz Mundial (FremhPaz) junto ao pastor Laurindo Shalom, da Associação Internacional Cristã Amigos Brasil-Israel, e do deputado federal Fausto Pinato (PP/SP), em 17 de setembro de 2019

No estatuto da frente, a Senah aparece com a missão de dar apoio jurídico “para pessoas e comunidades em situações de guerras, calamidades, e aos refugiados, em ajudas humanitárias nacionais e internacionais”. No mesmo artigo do estatuto, que trata da cooperação interdisciplinar, diz que a frente irá “fomentar e financiar cursos de formação na temática da proteção à liberdade religiosa e aos refugiados, especialmente por meio da Senar [atual Senah], promovendo o intercâmbio de experiências nacionais e internacionais”. A entidade também integra o conselho consultivo da frente. 

A Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários, que até o ano passado se chamava Secretaria Nacional de Assuntos Religiosos, foi fundada por Amilton Gomes em 1999. “Hoje nosso DNA está na cultura pela paz mundial, na fomentação de apoio ao meio ambiente, sempre buscando meios sustentáveis para o desenvolvimento da sociedade harmonizando Homem e Meio Ambiente”, informa em sua página na internet a entidade que tem sede em Brasília.

Líder da Igreja Batista Ministério da Nova Vista, Amilton Gomes também foi cabo do Exército, na década de 1990. Ele publicou imagens do Movimento Cristão Conservador Brasileiro com sua assinatura e sua foto e se apresenta como reitor da Faculdade Batista do Brasil, além de participar da direção de entidades de psicologia, como, por exemplo, a Sociedade de Psicologia do Centro-Oeste. 

Procurado, Amilton Gomes confirmou as negociações e a visita ao Ministério da Saúde.

Líder religioso, Amilton Gomes foi homenageado no Congresso e participou de criação de Frente Parlamentar


Davati procurou Pazuello para vender vacinas

Também em março, um representante oficial da Davati Medical Supply procurou o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello enquanto ele chefiava o ministério para negociar a venda de vacinas, revelam documentos que Pública acessou via consulta de Acesso à Informação do governo federal.

De acordo com a troca de emails, o advogado Julio Adriano de Oliveira Caron e Silva procurou Pazuello no seu email oficial da pasta no dia 9 de março deste ano. Na mensagem ele oferecia 300 milhões de doses da vacina AZD1222, da Astrazeneca, para compra imediata pelo Ministério da Saúde. O advogado informou que representava a empresa Davati Medical Supply LLC.

Em entrevista à reportagem, Adriano Caron confirmou representar a Davati. Documento da empresa também o confirma como representante no Brasil. Não há menção a outros representantes, como Luiz Paulo Dominguetti Pereira. 

O advogado disse não conhecer Dominguetti. “Como a empresa me deu uma autorização de apenas representá-la aqui e oferecer as vacinas, eu não sei se ela fez isso com outras pessoas. Talvez tenha feito, mas eu não conheço essa pessoa, não sei das relações dele com o governo”, disse. 

Caron também disse desconhecer qualquer operação da empresa e de que a Davatti estaria ofertando a vacina da Johson.  

O email enviado por Caron ao Ministério da Saúde foi respondido no dia seguinte, 10 de março, pelo chefe de Gabinete do Ministro de Estado da Saúde, o capitão Paulo César Ferreira Junior. O militar está à frente do gabinete desde maio de 2020, quando Pazuello se tornou ministro. Homem de confiança de Pazuello, ambos estiveram na intervenção federal em Roraima, em 2018, e receberam a Ordem do Mérito Forte São Joaquim.

Em resposta ao advogado, o capitão pediu uma carta de autorização da Astrazeneca que concordasse com a intermediação da Davati. Caron disse à Pública que as negociações não avançaram porque a empresa não o retornou com os documentos solicitados pelo Ministério da Saúde. 

“Dando seguimento com a Davati, pedindo maiores informações sobre as vacinas, eles não conseguiram me confirmar a disponibilidade do estoque e nem de que eles estavam autorizados pela empresa de vender vacinas aqui no Brasil, então o negócio não seguiu em frente”, justificou Caron. “Não marquei reunião nenhuma e a conversa não seguiu em frente”, acrescentou.  

Ainda segundo o advogado, “a Davati deixou bem claro que iria buscar junto à fabricante das vacinas toda a documentação necessária para vender”. “Se ela estava tentando negociar com a Astrazeneca a possibilidade de oferecer essas vacinas para o Brasil, ou qualquer outro país, e ela não conseguiu por algum motivo, talvez seja esse o motivo de que ela não me mandou a informação porque o negócio seria fechado com a Astrazeneca, a Astrazeneca que iria fornecer a vacina. Se ela não conseguiu autorização da Astrazeneca para vender, parou de me mandar informação e eu não poderia vender um produto que ela não tinha”.


Linha do tempo

  • 25 de fevereiro — segundo Dominguetti, diretor de logística do MS pediu propina para oferta de vacinas feita em nome da Davati
  • 4 de março —  pastor Amilton Gomes da Senah posta foto no MS e anuncia articulação para vacinas
  • 23 de março — carta da Senah assinada por Amilton Gomes chega a Ijaí oferecendo vacinas da Davati

Fonte: Agência Pública


 

sábado, 16 de janeiro de 2021

O PT apresentou junto com outros partidos mais um pedido de impeachment contra Bolsonaro



 Art. 85 da Constituição e Art. 9º da Lei de Impeachment


Rui Falcão, atualmente deputado federal (PT), foi presidente nacional do PT entre 2011 e 2017. Por ter sido perseguido pelo Regime Militar, preso e torturado, entendeu como “dever moral” apresentar a denúncia contra Jair Bolsonaro. O presidente, em 28 de dezembro de 2020, ironizou a tortura sofrida por Dilma Rousseff.

 “Ao fazer apologia da tortura, da ditadura, o Presidente da República manifesta um total desrespeito pela função que ele exerce, o que ele jamais poderia no cargo em que está”, afirmou em entrevista à Agência Pública. 

O deputado espera que o próximo líder da Câmara, a ser eleito em fevereiro, paute os pedidos de impeachment: “Já que o Rodrigo disse que não vai pautar, o próximo pode pautar”.



O PT apresentou, junto com outros partidos, um pedido no ano passado. Por que apresentar outro pedido agora?

Primeiro, porque está apoiado em outros fatos. No ano passado era mais sobre as manifestações antidemocráticas e o Supremo [Tribunal Federal]. Agora é a questão de apologia à tortura e da ditadura. A OAB provavelmente vai fazer outro agora também, voltado à negligência no trato da pandemia. Eu também já fiz uma denúncia na Comissão Nacional dos Direitos Humanos no ano passado, por conta desse comportamento do Bolsonaro também de apologia à tortura, e o comportamento dele misógino e racista.

Por que o crime de apologia à tortura justifica um impeachment? 

Porque é um crime de responsabilidade. Ao fazer apologia da tortura, da ditadura, o Presidente da República manifesta um total desrespeito pela função que ele exerce, o que ele jamais poderia [fazer] no cargo em que está. A tortura e a apologia da tortura são crimes para qualquer cidadão, está configurado na Constituição, mas isso por si só não daria para configurar crime de responsabilidade. Mas o tratamento desrespeitoso, sim, está previsto como crime de responsabilidade. A perda da própria função presidencial, a perda de decoro, justificam um pedido de impeachment.

Em um momento de pandemia, com mais de 200 mil mortes, o debate em torno das vacinas e as consequências desse contexto, por que vocês consideram que a fala do Bolsonaro ironizando a tortura sofrida por Dilma é o crime de responsabilidade que deveria levar ao impeachment?

É um problema de divisão de trabalho, porque a OAB já está preparando esse das vacinas, da negligência no trato da pandemia. Mas nesse caso especial tem uma simbologia também, por isso que é um projeto dos deputados. Eu fui preso político e torturado, a Eleonora Menicucci também foi presa e torturada, ficou na mesma cela que a Dilma. O Rogério Correia também. Então a gente tinha quase que um dever moral de propor esse pedido de impeachment para alguém que fica defendendo a tortura. 

Ele jogou isso na Dilma dizendo que queria ver uma radiografia do maxilar dela para ver se realmente ela tinha sido torturada. É um negócio desumano, e no caso ainda misógino, porque a Dilma foi uma das que mais sofreu atentado de misoginia inclusive. Mas eu concordo que ambos [a apologia à tortura e o trato da pandemia] são importantes, e no caso até de repercussão teria mais apelo popular esse da vacina do que o da tortura.

Se o Bolsonaro sai, quem assume é o Mourão, que é um militar. Considerando também isso, por que o impeachment é a melhor saída?

Nós também estamos trabalhando com os quatro processos que estão tramitando. Tem dois no TSE e dois no STF, eles abordam a eleição da chapa Bolsonaro e Mourão. Um desses processos poderia levar ao afastamento dos dois, que seria o ideal. Mas o impeachment você só pode propor do Bolsonaro, não tem como propor impeachment do Mourão, então vamos por partes. Se você conseguir tirar o Bolsonaro, pode criar a situação também de que se tire o outro. Tem gente que acredita que se colocar o Mourão as coisas são mais no eixo, mais moderadas, mas o problema é que a política é a mesma. Nós não estamos tirando o Bolsonaro porque achamos que o Mourão é melhor, é porque o impeachment possível é de Bolsonaro, e ao mesmo tempo a gente está o tempo todo dizendo que é importante que o STF e o TSE prossigam com as investigações sobre fake news que ajudaram na campanha e o uso de caixa 2 na campanha, que é irregular. 

A que você atribui a demora de Rodrigo Maia em analisar os pedidos e pautar o impeachment?

Porque ele não está cumprindo o papel funcional e administrativo dele, que é pautar pelo menos um dos pedidos que esteja legalmente fundamentado. Não significa que ele tem que apoiar o pedido, ou que os deputados vão dar curso ao pedido, mas ele tem o dever de apresentar, de pautar. 

Se tem algum dos processos que está fundamentado, se tem um crime de responsabilidade claramente configurado na peça, ele tem que pautar. E aí os deputados podem dizer ‘não é cabível, não tem clima político, vai gerar instabilidade, não tem apoio da população’, aí são avaliações políticas. Mas o curso legal funcional é dele, se está bem fundamentado deve propor, como fizeram no caso do Collor com o pedido de impeachment da OAB.

E que comportamento vocês esperam de um novo presidente da Câmara quanto a isso? Existe uma intenção de que os pedidos sejam pautados?

Embora isso não esteja escrito com todas as letras no compromisso de apoio ao Baleia Rossi, nós estamos entendendo, até pela evolução da situação, de como está o país hoje, empregos saindo do país, o desemprego aumentando, a fome voltando, até hoje não tem vacina, a Ford saindo, outras empresas ameaçando sair, a economia mal das pernas, seria natural que o próximo presidente pelo menos, já que o Rodrigo já disse que não vai pautar, o próximo pode pautar. Nós achamos que o fato do Rodrigo Maia, apesar de não ter pautado, não ter arquivado os pedidos, e disse que não vai arquivar, é um sinal de que a gente pode continuar na tentativa.

Existe uma expectativa de que o Baleia Rossi, que você citou, coloque isso em pauta?

Eu acho que sim, e nós vamos diligenciar nessa direção. Vamos pressionar, vamos cobrar. Não só nós, os pedidos de impeachment envolvem outros partidos também, entidades, então esse movimento pode aparecer no governo esse ano. Não é por outra razão que o Bolsonaro está arregimentando uma série de deputados, prometendo mudanças de ministérios, prometendo cargos, temendo sofrer um processo de impeachment. 




Resumo do pedido

O pedido de impeachment protocolado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) denuncia o atual presidente Jair Bolsonaro por “crime de apologia à tortura”, por “debochar e ironizar” em 28 de dezembro de 2020 da tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Rouseff durante a Ditadura Civil-Militar.

“[Bolsonaro] tem sido pródigo em demonstrar que a democracia é um valor menor”, consideram os proponentes, que argumentam que a apologia à tortura se configuraria como “violação dos princípios da administração”, como a horna e decoro do cargo, punível com impeachment pela Lei 1.079/1950. Para eles, Bolsonaro expressa “desrespeito às vítimas da Ditadura Civil-Militar”. 

De acordo com o pedido, a fala de Bolsonaro é “criminosa” e “não pode se confundir com o exercício da liberdade de expressão”. “Não se trata de liberdade quando se põe em risco as garantias constitucionais”, conclui a peça. 

O pedido também cita as manifestações de março e maio de 2020, como exemplos de momentos em que o presidente “irresponsavelmente atentou contra o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário”. 

Além disso, os autores consideram que o atual presidente teria atacado o “processo eleitoral brasileiro de 2018” e feito “ameaças em relação às futuras eleições de 2022” ao se posicionar depois da invasão do Capitólio por eleitores trumpistas. Tal situação desestabilizaria as instituições e colocaria “em xeque a credibilidade, a presunção de legalidade e de moralidade” da justiça eleitoral brasileira.


Pedido 0042 na íntegra



Proposta por: 

Deputados do Partido dos Trabalhadores (PT)

Em análise há 4 dias

Os pedidos de impeachment de Bolsonaro



Plantão Brasil

MAIA FALA EM IMPEACHMENT!! GLOBO PRESSIONA!! NOVA CPI VEM AÍ!!

Assista ao VÍDEO




No Twitter 

 #ImpeachmentBolsonaroUrgente - #ForaBolsonaro - #impeachment


 

 

 

 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Mais um pedido de impeachment para a conta do presidente Jair Bolsonaro. No total, incluindo aditamentos e pedidos rejeitados e retirados pelos autores, foram 59 solicitações de afastamento.




 Art. 5º, 7º e 9º da Lei de Impeachment

O advogado e pesquisador Lauro Chamma Correia se encontra preso em penitenciária paulista desde 2018 acusado de ter roubado e estuprado mulheres em São Paulo. Ele é autor do 41º pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro.

Devido às acusações enfrentadas pelo denunciante, a Agência Pública não entrou em contato para entrevista. Sua denúncia foi lida e resumida pela reportagem. 

Correia é o segundo detento a pedir o impedimento do presidente e lembra que, segundo o artigo 14 da lei 1079/50, “é permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados”. 


Resumo do pedido

O pedido de impeachment protocolado por Lauro Chamma Correia possui treze páginas escritas à mão. Assinado em 23 de novembro de 2020, o documento só foi protocolado pela Câmara dos deputados no dia 9 de dezembro, e aguarda a análise do presidente da casa ao lado de outros 40 pedidos.

O autor, que está preso desde 2018 por acusação de estupro, denuncia Jair Bolsonaro por crime de responsabilidade por desrespeitar os direitos humanos. Entre as supostas infrações do denunciado, estariam o que o pedido classifica como “desfiguração” do antigo Ministério dos Direitos Humanos, hoje chamado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), sob comando de Damares Alves, além da “pulverização” do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Além disso, Bolsonaro teria se afastado da responsabilidade de assegurar tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, o que implicaria crime de responsabilidade pelo artigo 5º da lei de Impeachment.

Como provas das acusações, o autor indica que a Câmara dos Deputados acesse seis documentos em diferentes órgãos públicos, entre eles a cópia de um processo que tramita no MMFDH, e as cópias de processos e petições envolvendo Bolsonaro na Comissão Internacional de Direitos Humanos da ONU. O autor também sugere outros 14 documentos suplementares para o processo, incluindo todas as petições, manifestações e representações que ele já impetrou no Ministério Público no período em que se encontra preso.

Anexada ao pedido a pedido do denunciante está também uma carta enviada pelo autor à Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet.

Segundo o Correia, desde fevereiro de 2019 ele envia correspondências ao órgão internacional denunciando violações de direitos humanos cometidas pelo governo Bolsonaro. Nessa última carta, ele diz que centenas de pessoas estão sendo presas, torturadas e mortas por agentes estatais no Brasil, incluindo ele próprio, e pede ajuda da comissária para tomar providências, uma vez que “não há interesse do Estado brasileiro em ouvir minha história”.


Pedido 0041 na íntegra



Os pedidos de impeachment de Bolsonaro

Ao todo, 1459 pessoas e organizações assinaram pedidos deimpeachment do presidente Jair Bolsonaro até meados de agosto. Dos 55 pedidos enviados ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e recebidos pela casa, apenas um foi arquivado até hoje. No total, incluindo aditamentos e pedidos rejeitados e retirados pelos autores, foram 59.


terça-feira, 27 de outubro de 2020

“Tudo no Chile é mercadoria, até a água”, explica historiador


Para pesquisador da ditadura chilena, críticas ao modelo neoliberal motivaram os protestos, que explodiram depois de reação autoritária de Piñera


Apesar de origem semelhante às jornadas de junho, contexto político difere do brasileiro

Sem traumas, nova geração desafia toque de recolher e militares nas ruas

Família Piñera é herdeira de pinochetismo e enriqueceu na ditadura


No Chile, foram os estudantes, uma vez mais, que deram a partida para as manifestações de rua. Após o aumento das passagens de metrô e ônibus no início de outubro, foram eles que começaram a pular as catracas para não pagar as tarifas, as chamadas evasiones masivas. A resposta do presidente Sebastián Piñera foi uma: repressão. Com cada vez mais policiais nas estações de metrô reprimindo os jovens, o “pulão de catraca” cresceu até explodir para manifestações que pararam Santiago e se espalharam o o resto do país.

Na avaliação do historiador Luan Vasconcelos Fernandes, da Universidade de São Paulo (USP), que pesquisa em seu doutorado a relação entre a ditadura militar e as universidades chilenas, a repressão comandada por Piñera, sobretudo na imposição de um toque de recolher, fez soar nos ouvidos chilenos o autoritarismo da ditadura de Pinochet, mas encontrou a resistência de uma geração de jovens “que não possui o trauma de seus pais e avós em relação ao autoritário toque de recolher da ditadura”.

Apesar de semelhante às manifestações do Brasil de 2013 — inclusive pelo estopim ser o aumento das passagens de transporte público — o pesquisador acredita que os protestos chilenos são mais direcionados e críticos ao modelo neoliberal. Por outro lado, ele reforça que assim como no Brasil, no Chile há também um discurso de negação da política, “bastante perigoso e pode dar margem para que figuras ainda mais autoritárias cheguem ao poder”.

É essa a grande incógnita dos protestos chilenos: será que, após os protestos, o país irá efetivamente adotar políticas que mudem uma das sociedades mais desiguais da América Latina? Ou, assim como no Brasil, o descontentamento irá abrir uma brecha para populistas que repitam as violações cometidas pelos governos autoritários, sobretudo frente aos mais marginalizados, como os indígenas Mapuche? “O que os manifestantes das grandes cidades estão sofrendo com a violência estatal é o que os indígenas Mapuches sempre sofreram”, ressalta Luan.

O historiador Luan Vasconcelos 

Fernandes pesquisa a relação 

entre a ditadura militar e as 

universidades chilenas

As manifestações no Chile tiveram como estopim o aumento nas passagens de transporte público, o que tem levado a comparações com as Jornadas de Junho no Brasil, em 2013. O que os protestos no Chile têm de semelhante com os brasileiros?

De fato, os protestos no Chile começaram devido a uma alta de 30 pesos no valor da passagem do metrô de Santiago, que já era considerado caro (por volta de R$ 4,60 antes do aumento), justificado pelo governo como uma consequência do aumento do valor do petróleo e do dólar. E, assim como no Brasil, os protestos em torno do preço do transporte público se expandiram para outras reivindicações, que há bastante tempo já estavam gerando insatisfações e manifestações de menor porte. Outra semelhança que eu vejo, com preocupação, é em relação ao surgimento, ainda que em menor escala, de um discurso apolítico, de negação da política, colocando todos os partidos e espectros políticos no mesmo balaio. Algumas pichações e manifestações nas redes sociais apontam para este caminho.


E quanto às diferenças?


Acredito que as semelhanças acabam por aí. O governo de direita neoliberal de Sebastian Piñera e o próprio sistema econômico chileno são distintos do governo de Dilma Rousseff e do sistema brasileiro. O Chile é um país marcadamente neoliberal desde as reformas implantadas de forma autoritária pela ditadura de Pinochet. Tudo no país é uma mercadoria, incluindo a própria água, e nem os governos de centro-esquerda que se seguiram após a redemocratização conseguiram mudar isso, apesar de vários remendos feitos na Constituição de 1980. Dessa forma, as manifestações aqui revelam um profundo descontentamento com as políticas neoliberais como um todo. As manifestações vão todas nesse sentido, sem pautas conservadoras ou liberais na economia e sem pedidos de retorno dos militares, como também se viu, ainda que em 2013 mais timidamente, no Brasil. As manifestações aqui no Chile me parecem muito mais bem direcionadas e críticas ao modelo neoliberal. No Brasil, as jornadas de junho se encaminharam para uma miscelânea difusa de reivindicações. O contexto internacional mundial e latino-americano também é outro e parece haver uma contra-ofensiva de forças progressistas em vários países do mundo, com resultados favoráveis para partidos de esquerda nas eleições da Espanha e Portugal, o enfraquecimento do primeiro ministro conservador de Israel, a abertura do processo de impeachment de Trump, a evidente derrota de Macri na Argentina, os protestos contra as políticas neoliberais no Equador, dentre tantos outros exemplos. Esses movimentos também impactam as manifestações no Chile. Obviamente que a extrema-direita ainda permanece forte, mas parece ter começado a perder fôlego mais cedo do que se imaginava. De todo modo, ainda é cedo para tirar conclusões, mas a mudança de tom no discurso de Piñera nesta terça parece apontar para um recuo do governo em suas políticas neoliberais.

Logo após o início dos protestos em Santiago, o presidente Piñera decretou o toque de recolher. Civis foram impedidos de andar nas ruas após as 20h, inicialmente em Santiago, depois em várias cidades do país. Os carabineros tomaram as ruas e utilizaram armas letais, gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar manifestantes. E o governo anunciou utilizar a Lei de Segurança Nacional da ditadura de Pinochet contra manifestantes. Como a população recebeu essas medidas? Isso dispersou ou mais acendeu as manifestações?

Na verdade, no primeiro dia, sábado, o toque de recolher foi marcado para às 22h em Santiago. Nos outros dias, houve uma variação dos horários na capital e nas diferentes regiões. A população recebeu estas medidas com indignação. Não se via uma medida dessas desde 1987, na ditadura pinochetista. Além disso, a nova geração de chilenos, que são os principais manifestantes, não possui o trauma de seus pais e avós em relação ao autoritário toque de recolher da ditadura. Dessa forma, há um clima de desafio ao chamado “toque de queda” no Chile, com pessoas ficando muitas horas após o horário estabelecido pelo toque nas ruas. Com certeza foi uma medida que acendeu ainda mais as manifestações.


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A resposta do governo Piñera aos protestos resgatou de alguma forma a memória dos chilenos da ditadura de Pinochet?

Sem dúvidas. A resposta do governo foi autoritária, colocando militares nas ruas, algo que não ocorria desde a ditadura. Pesa ainda o fato da família de Piñera ser uma das famílias de políticos herdeira do período pinochetista. Seu irmão, José Piñera, foi ministro do ditador. Sua família também enriqueceu muito durante a ditadura de Pinochet. As comparações estão sendo frequentes. O Chile é um país que ainda não resolveu diversas questões relacionadas ao período e as disputas de memória aqui sobre o período estão sempre colocadas no debate nacional. A resposta do governo chileno só fez colocar mais fogo no debate e fortaleceu as críticas ao seu governo e aos críticos da ditadura.

Por falar em ditadura, como é a relação da população chilena com a ditadura hoje? Ela é influenciada por recortes como a classe social, raça ou religião?

Sim. A sociedade chilena é muito dividida. Não só socialmente, como geograficamente. A província de Santiago é uma prova viva disso. Quanto mais perto da Cordilheira e das comunas ricas, maior a chance de encontrar apoiadores contundentes da ditadura de Pinochet e de seus herdeiros. Há também grupos de católicos e evangélicos conservadores fortes e atuantes no Chile, que pendem para um apoio ao período ditatorial. No que se refere às questões raciais, o conflito mais evidente no Chile é em relação aos Mapuches. Eles foram duramente reprimidos e perseguidos durante a ditadura de Pinochet e ainda lutam por seus direitos. A morte de Camilo Catrillanca, neto de um líder mapuche, no ano passado, por policiais reacendeu bruscamente os debates em torno dos Mapuches. O ministro do Interior e Segurança Pública, Andrés Chadwick, primo do presidente, é constantemente responsabilizado pela morte do jovem e o pedido de sua renúncia também ecoa pelas ruas.

A sociedade chilena é dividida em relação à ditadura: grupos de católicos e evangélicos conservadores estão entre os apoiadores do período ditatorial

Há uma tentativa de revisionismo da ditadura chilena assim como ocorre no Brasil, pela ação de grupos de extrema-direita?

Sempre houve um impasse nas disputas memorialísticas em torno do tema. Apesar do Informe Rettig [documento que expôs sobre violações de direitos humanos durante a Ditadura, comparável ao que a Comissão da Verdade produziu no Brasil] ter sido publicado logo após o fim da ditadura, só em 1998, com a prisão do general Pinochet em Londres a mando do juiz espanhol Baltasar Garzón, é que houve um substancial aumento de condenações de diversos agentes estatais violadores dos direitos humanos. A prisão do ditador foi considerada um ponto de inflexão na jurisdição universal sobre o tema. Pinochet, no entanto, nunca chegou a ser condenado no Chile pelos crimes cometidos, mas chegou perto de ser condenado por fraude tributária e mau uso de dinheiro público, o que não ocorreu por conta de sua morte. Todas as investigações e condenações que se seguiram após a prisão de Pinochet em Londres fizeram com que vários aliados se afastassem do ditador e defendessem uma memória de conciliação sobre o período ditatorial. Se, por um lado, houve o que a direita chama de “excessos” por parte dos militares, por outro, a ditadura modernizou o país. Nesta linha de pensamento, o melhor a se fazer seria esquecer os crimes cometidos no período e conciliar o país. É uma das memórias emblemáticas do Chile, que Steve Stern, historiador estadunidense, chama de “memória da caixa fechada”, uma memória construída desde o início da década de 1980 e que permanece forte até hoje. Diferentemente do Brasil, a direita chilena que defende o período parece que sempre esteve fora do armário, mesmo que com distintas interpretações sobre o período. Então, seria mais um revisionismo continuado, o que é diferente do Brasil onde houve um “boom”, nos últimos anos, de publicações e de figuras públicas defendendo o período ditatorial.

O próprio presidente Piñera havia criticado Bolsonaro por elogios à ditadura brasileira. Qual é a postura do presidente chileno em relação à ditadura chilena?

Acredito que seja como eu disse anteriormente. Uma espécie de memória da caixa fechada, na qual as recordações devem ser mantidas guardadas. Ainda que ele condene publicamente as violações aos direitos humanos cometidas naquela época, ele defende as reformas efetuadas. Sem falar que toda sua família e seus aliados políticos são herdeiros diretos da ditadura de Pinochet. É impossível não associá-lo ao período. A solução autoritária que o seu governo encontrou para a crise no Chile acentua ainda mais esta relação.

A imagem dos carabineros no Chile pode ser comparada à imagem do exército no Brasil? O que é parecido e o que é diferente?

Não. Os carabineros podem ser comparados aos policiais militares no Brasil. O que talvez gere confusão é que durante a ditadura, o comandante dos carabineros, que no Chile tem o posto de general, fazia parte da Junta Militar. O posto continua sendo o mesmo e ele participa do Conselho de Segurança Nacional do Chile.

Após os protestos de 2013 no Brasil, se tornaram recorrentes manifestações pedindo a volta da ditadura militar, ainda que bem menores. De alguma forma, as falas seguem até hoje, com protestos pedindo fechamento do STF pelos militares, por exemplo. Você consegue ver uma possibilidade disso também ocorrer no Chile?

Tenho a sensação que, após 2013, esses pedidos, no Brasil, só foram aumentando. Culminou com a eleição de um defensor de um dos mais notórios torturadores brasileiros. Mas como eu disse, acredito que no Chile as manifestações têm uma pauta mais definida e contra as políticas neoliberais. Por outro lado, há também um discurso de negação da política, o que é bastante perigoso e pode dar margem para que figuras ainda mais autoritárias, como José Kast, cheguem ao poder. Ele é um político alinhado com pautas econômicas neoliberais e conservadorismo nos costumes, algo semelhante a Bolsonaro, anti-LGBT, contra aborto e com declarações misóginas. No entanto, como as manifestações são contra os principais herdeiros da ditadura e estamos em outro contexto, acredito que isso não vá acontecer. Tudo vai depender também de quais figuras os principais partidos chilenos vão indicar para as próximas eleições nacionais. Ano que vem são as eleições municipais no Chile. Elas também servirão como termômetro para a disputa de poder no âmbito nacional.

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, herdeiro de uma família de políticos ligada à ditadura de Pinochet, é acusado de evasão fiscal

As manifestações de hoje no Chile têm invocado pautas de manifestações anteriores, como a dos estudantes. Qual o papel dos estudantes nos protestos de agora?

Como disse uma funcionária da limpeza aqui de Santiago: “os estudantes valem ouro”. São um dos principais atores dos protestos, se não o principal. O mais interessante é que as pautas não são estritamente do âmbito educacional e sim ligadas às questões que afetam os trabalhadores, seus pais e avós. A tarifa do metrô não aumentou para os estudantes, porém foram eles os primeiros a efetuarem as evasiones, os popularmente chamados “pulões de catraca”. Outra importante reivindicação se refere às AFP (as administradoras de fundos de pensões) que, atualmente, são sete, sendo que cinco são de multinacionais estrangeiras (MetLife, Prudential Financial, BTG Pactual, Grupo Sura y Principal Financial Group). Grande parte dos aposentados recebe menos de um salário mínimo aqui no Chile, sendo que as AFP registram lucros recordes com o rendimento do dinheiro dos trabalhadores.

Como ficou o sistema de educação chileno após os protestos dos estudantes? Algo mudou?

Sim. A Lei Orgânica Constitucional de Ensino (LOCE) da época da ditadura foi substituída pela Lei Geral de Educação, de 2009, do governo de Michelle Bachelet. É uma lei com uma abordagem mais plural e inclusiva e que visa fiscalizar os estabelecimentos educacionais do ensino básico e médio, que antes lucravam com o dinheiro público nas escolas subvencionadas.

Se a utilização da Lei de Segurança Nacional é “novidade” no contexto dos protestos de rua, ela já foi invocada para lidar com os protestos de indígenas Mapuche, inclusive no início deste ano, após protestos pela morte de mais um indígena pela ação da polícia. Como está essa questão hoje?

É como me contou uma amiga sobre o discurso dos Mapuche neste momento: o que os manifestantes das grandes cidades estão sofrendo com a violência estatal é o que os Mapuche sempre sofreram. A questão Mapuche sempre foi um tema nacional em voga, mas que varia em sua abrangência no seio da opinião pública. Não vejo nas manifestações que tenho acompanhado como uma das principais pautas da população. O que tem acontecido é que os Mapuche e as pessoas ligadas aos movimentos sociais Mapuche têm aproveitado o momento para também se manifestar e pressionar o governo.

Para o historiador, a resposta repressiva do governo fez com que os protestos tomassem uma proporção maior

Quais são as principais reivindicações dos Mapuche?

A principal reivindicação dos Mapuche é a terra — eles buscam acabar com o uso da sua terra por grandes empresas e pelo Estado. A relação dos Mapuche com os governos chilenos nunca foi pacífica, até porque eles consideram o seu território como território invadido. Eles não se consideram chilenos, mas Mapuche. Isso vem desde a formação do Estado Nacional Chileno, no século XIX, não foi tranquila mesmo durante o governo popular de Salvador Allende, mas se tornou especialmente tensa na ditadura. Na época, foi criada uma lei que acabou com a função social da propriedade da terra, que passou a ser apenas propriedade privada, sob a lógica do neoliberalismo. A ditadura acabou operando uma “reforma agrária”, por assim dizer, que separou as terras indígenas em pequenas propriedades individuais. Isso resultou praticamente na destruição da cultura Mapuche, que é totalmente conectada à questão da terra, muito diferente da nossa ou de uma visão capitalista neoliberal. E a relação dos indígenas com o Estado também segue tensa com Piñera, principalmente com o assassinato do jovem Camilo Catrillanca, neto de uma liderança indígena [ele foi assassinado com um tiro na cabeça em uma operação dos Carabineros no final de 2018]. O ministro do Interior e Segurança Pública, Andrés Chadwick, primo de Piñera e principal ministro do governo, é responsabilizado pelos indígenas, que o chamam de assassino.

Qual a percepção da população sobre a questão Mapuche? Há apoio massivo ou apenas de determinados grupos?

São grupos mais específicos que apoiam com mais ênfase a causa mapuche. Isto não significa que não haja uma simpatia à causa por parte dos manifestantes. Há muitos temas candentes e alguns aparecem com mais destaque, como o custo de vida e as administradoras de pensão.

Curiosamente, as manifestações começaram com as evasiones no metrô, a mesma palavra usada para descrever não pagamento de impostos, uma acusação que pesa sobre o próprio presidente Piñera, correto?

Evadir é deixar de pagar algo, por exemplo, burlando leis ou obtendo vantagens. A palavra evasiones serve para tudo que se enquadre nisso. No caso do metrô, pular a catraca ficou conhecido como evasiones masivas porque eram vários jovens começaram a fazê-lo deixando de pagar a passagem. O presidente Piñera é acusado de ter realizado várias sonegações de impostos a partir de suas empresas e propriedades privadas ao longo da década de 1990 e dos anos 2000, comprando empresas que estavam em falência e, depois, fechando acordos para não pagar impostos que essas empresas deviam, inclusive vendendo algumas delas em seguida. Isso também foi chamado de evasiones. Com as manifestações, os jovens começaram a ironizar o fato de o presidente criminalizar as evasiones do metrô, sendo que ele é acusado de ter roubado dinheiro do Estado — uma soma muito maior que o prejuízo causado pelos pulos de catraca. Em vários pontos de Santiago há pichações onde se lê “evade como Piñera”, ou seja, siga o exemplo de Piñera. Na crítica dos manifestantes, ele teria sido primeiro a dar o exemplo.


Nacional Records

1977 - Ana Tijoux


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