Novas mensagens apreendidas na operação spoofing indicam que
procuradores da "lava jato" tinham consciência de que os
americanos poderiam quebrar a Odebrecht, mas, mesmo assim, deram
continuidade às tratativas com as autoridades dos Estados Unidos para a aplicação
de penalidades, fornecendo até mesmo dados informais, a título de
"informações de inteligência".
"Lava jato" discutiu percentuais da partilha do
dinheiro extraído da Odebrecht
Os diálogos mostram que os membros da autoproclamada
força-tarefa não tinham limites em sua missão de transformar o idealismo de um
suposto combate à corrupção em dinheiro que seria depois administrado por eles
próprios.
Em uma troca de mensagens, em 17 de maio de 2016, o
procurador Deltan Dallagnol, então chefe da autointitulada força-tarefa da
"lava jato", discutiu com o colega Orlando Martello o envio de
informações à Suíça e aos Estados Unidos sobre a Odebrecht. Martello chega a
dizer que tem plena consciência de que "os americanos quebram a
empresa" e Deltan responde com uma risada. As mensagens constam em
petição da defesa do ex-presidente Lula enviada ao Supremo Tribunal Federal.
"O procurador da República Deltan Dallagnol tinha plena
ciência de que a atuação de autoridades estadunidenses contra empresas
brasileiras — notadamente por meio da aplicação do FCPA (que busca expandir sobremaneira a jurisdição norte-americana) —
poderia quebra-las. A despeito disso, cooperou para que tais penalidades fossem
aplicadas, inclusive por meio de envio informal de dados", diz o
documento.
O FCPA permite que autoridades norte-americanas
investiguem e punam fatos ocorridos em outros países. Para especialistas, ela
é instrumento de exercício de poder econômico e político dos
norte-americanos no mundo — os novos diálogos mostram a concordância dos
procuradores com esse tipo de entreguismo.
O novo material também reforça que sempre permearam as
conversas com autoridades estrangeiras os percentuais que ficariam à
disposição da "lava jato" sobre o valor das
penalidades aplicadas no exterior contra empresas brasileiras, como a
própria Odebrecht. O acordo de leniência da empreiteira, inclusive, foi
amplamente debatido entre os procuradores da "lava jato" e
autoridades suíças e norte-americanas.
As mensagens indicam que houve diversas reuniões e
trocas de documentos, inclusive por e-mail, entre os membros da força tarefa e
autoridades da Suíça e dos Estados Unidos, conforme a petição dos advogados de
Lula: "Um ponto sempre relevante é do 'asset sharing', ou seja, o
percentual da penalidade que ficaria com cada um dos envolvidos".
Em conversa em 8 de dezembro de 2016, um procurador
pede aos demais colegas o e-mail de um membro do MP suíço que estava
em uma reunião em Curitiba que discutiu justamente os percentuais de 'asset
sharing' que iriam para os EUA e para a Suíça no caso Odebrecht.
"Como pode a 'lava jato' ocultar esse material da defesa técnica do
reclamante ou dizer a esse Supremo Tribunal Federal que nada disso
ocorreu?", questiona a defesa de Lula.
Em um determinado momento, os próprios procuradores tratam a
negociação como um "acordo trilateral", envolvendo Brasil, EUA e
Suíça. As mensagens mostram "atuação dos procuradores da República da
'lava jato' nessa frente, o que foi indevidamente negado a esse Supremo
Tribunal Federal", sustenta a petição.
Todas essas informações foram apresentadas pela defesa do
ex-presidente Lula, patrocinada por Cristiano Zanin, Valeska
Martins, Maria de Lourdes Lopes e Eliakin Tatsuo,
ao ministro Ricardo Lewandowski, relator de uma reclamação sobre a investigação
de hackers que invadiram celulares de autoridades.
Acordo
O acordo de leniência que a Odebrecht assinou com o Ministério
Público Federal em dezembro de 2016 previa a criação de uma conta judicial, sob responsabilidade da 13ª
Vara Federal de Curitiba. O dinheiro ficaria à disposição do MPF, que
daria aos recursos a destinação que quisesse.
A construtora se comprometeu a pagar R$ 8,5 bilhões
como multa por seus malfeitos. O dinheiro seria dividido pelo MPF entre ele
mesmo, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DoJ) e a
Procuradoria-Geral da Suíça.
Assim como o ex-juiz, procuradores americanos que se
dedicavam a investigar corrupção passaram a trabalhar para escritórios de
advocacia que vendem serviços para empresas se “blindarem” exatamente desse
tipo de investigação
Será na Vila Olímpia o próximo estágio da carreira do
ex-juiz, ex-ministro e ex-bolsonarista de carteirinha Sergio Moro, agora na
iniciativa privada. A consultoria americana Alvarez e Marsal anunciou que
Moro será o chefe de investigações, disputas e compliance no seu escritório
envidraçado à beira da Marginal Tietê, pertinho do luxuoso Shopping JK.
Especializada em reestruturação corporativa, a Alvarez &
Marsal é a administradora judicial da Odebrecht, após a construtora ter pedido
recuperação judicial por causa das investigações da Lava-Jato no Brasil, nos
EUA e em dezenas de países da América Latina. A consultora já faturou 17,6milhões com o serviço, segundo reportagem do Uol. O Valor Econômico noticiou
que o contrato de Moro o exime de advogar em causas em que haja conflito de
interesses.
Entre os sócios sêniores, a empresa orgulha-se de contar com
um ex-agente do FBI, um ex-procurador do Departamento de Justiça dos EUA (DOJ)
e outro do governo britânico, além de um ex-funcionário da NSA.
Há alguns anos críticos vêm apontando para a escandalosa
“porta giratória” entre os procuradores americanos que se dedicam a investigar
corrupção e os riquíssimos escritórios de advocacia que têm vendido serviços
para empresas se “blindarem” exatamente desse tipo de investigação.
São jovens com ar de auto-satisfação e luxuosos escritórios
com vista para os pontos mais cobiçados de Nova York ou Washington. O caso mais
notório é Patrick Stokes, que liderou entre entre 2014 e 2016 o departamento de
FCPA (corrupção transnacional) do DOJ e depois virou sócio no escritório
Gibson, Dunn & Crutcher’s, em uma posição cujo salário chegou a R$ 3,2
milhões em 2017. Detalhe: a empresa foi a contratada pela Petrobras para
negociar o acordo com o DOJ, assinado no final de 2018, dois anos depois de
Patrick sair do cargo. O contrato traz a assinatura do advogado Joseph Warin,
hoje sócio de Patrick.
Em um breve levantamento feito com a jornalista Raphaela
Ribeiro, identificamos que de 19 procuradores americanos envolvidos nas
investigações da Lava Jato, do DOJ e do Securities and Exchange Commission
(Sec), pelo menos seis foram para a iniciativa privada.
Kevin Gingras, que veio ao Brasil em nome do DOJ entrevistar
Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa e Alexandre Yousseff em julho de 2016, hoje
é vice-presidente de litígios na empresa fabricante de armas e tecnologia de
defesa Lockheed Martin Corporation.
Charles Duross não chegou a trabalhar nos casos da
Lava-Jato, mas liderou a unidade de corrupção internacional do DOJ até 2014.
Estava nessa posição quando o governo americano começou a investigar a Embraer
por corrupção na República Dominicana, o que levou a uma multa de mais de US$
100 milhões para o governo dos EUA.
Duross hoje é advogado associado no escritório Morrison
& Foerster LLP. Ele foi indicado pelo DOJ para acompanhar as práticas
anticorrupção que vêm sendo adotadas pela Odebrecht e o desenvolvimento do
setor de “compliance”, depois da empreiteira concordar em pagar uma multa
bilionária aos americanos.
Do lado do FBI, George “Ren” McEachern liderou até 2017 a
Unidade de Corrupção Internacional em Washington, com mais de 40 agentes,
supervisionando todas as investigações de corrupção ligadas à Lava Jato. Pouco
depois, deixou o FBI para passar para a consultoria Exiger, onde ensina métodosde “compliance” e dá palestras para empresas como as médico-farmacêuticas
Pfizer e Johnson&Johnson e a fabricante de armas militares Raytheon.
Aqui no Brasil, o pioneiro ao “mudar de lado” foi o
procurador Marcelo Miller, que aparece como um dos principais articuladores com
os americanos nas conversas da Vaza-Jato, propondo acordos diretamente a eles
durante reuniões do grupo anticorrupção da OCDE.
Em abril de 2017 ele deixou o MPF e em seguida virou sócio
do escritório de advogados especializado em compliance Trench Rossi Watanabe.
Miller se deu mal. O anúncio do afastamento foi feito às vésperas da delação de
Joesley Batista, da JBS, que teve intermediação do mesmo escritório. Por ter
atuado nas duas pontas do negócio, passou a ser investigado e foi denunciado pelo próprio MPF. Em setembro daquele ano a PGR rescindiu o acordo de
colaboração de Joesley Batista mediado pelo procurador. E Miller saiu da
empresa poucos meses depois de ser contratado, recebendo a bagatela de R$ 1,6
milhão, segundo reportagem do O Globo.
Outro que pulou para a iniciativa privada foi o procurador
Carlos Fernando dos Santos Lima. Hoje no seu linkedin ele se descreve como
“advogado na área de compliance, investigações internas, monitoria, e acordos
de leniência e colaboração premiada”. Virou consultor, segundo coluna de FaustoMacedo, sem dar o nome aos clientes que o têm contratado, autor de livro sobre
compliance para bancos e palestrante. Sem cargo no governo, sem
magistratura, a nova empreitada de Moro pode ser lida apenas como uma demonstração
do apreço ao dinheiro – lembremos que ele chegou a receber mais de R$ 100 mil
no Tribunal Federal da 4ª Região por causa dos “penduricalhos” – e de falta de
imaginação, engordando ainda mais fila da “porta giratória” da Lava-Jato
Moro é anunciado como sócio-diretor de consultoria; empresa
é administradora judicial da Odebrecht
O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro foi
anunciado como sócio-diretor da consultoria norte-americana de gestão de
empresas Alvarez & Marsal. Moro, que deixou o governo Bolsonaro em abril
após acusar o presidente de interferência política, atuará na sede da empresa
em São Paulo, na área de de "Disputas e Investigações".
Reuniões do alto escalão, apoio a uma unidade de vigilância na Tríplice Fronteira e compartilhamento de dados biométricos de cidadãos dos dois países demonstram aproximação
Chefe do FBI no Brasil esteve em reuniões oficiais no ministério e também encontrou Filipe Martins
Acordo assinado por Maurício Valeixo permite ao FBI obter digitais e outros dados de brasileiros “suspeitos”
FBI atuou na Lava Jato e questionou delatores no Brasil
Ex-juiz da Lava Jato, Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça clamando pela independência da Polícia Federal (PF). Mas uma análise dos seus 16 meses à frente do ministério mostra uma inclinação bem diferente – pelo menos no que diz respeito à influência do FBI sobre a polícia brasileira.
Meses de investigação da Agência Pública em documentos oficiais revelam que, ao assumir o Ministério da Justiça, o ex-juiz e o ex-diretor da PF Maurício Valeixo assinaram acordos com o FBI, ampliando a influência americana em diferentes áreas de combate ao crime, incluindo a presença dos agentes estrangeiros em um centro de inteligência na fronteira, investigações sobre corrupção e acesso a dados biométricos brasileiros.
No final de 2019, o escritório do FBI no Brasil pediu um volume maior de recursos ao governo americano para ampliar sua equipe e atender a mais pedidos de cooperação internacional de investigações no país.
A aproximação de Moro com o FBI vai além. Quando tirou uma licença não remunerada de cinco dias em julho do ano passado, pouco depois da publicação dos documentos da Vaza Jato pelo site The Intercept, é provável que o ex-ministro tenha se reunido com o FBI em Washington, segundo documentos obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) (veja box abaixo).
Cinco dias depois, o hacker Walter Delgatti foi preso pela PF e admitiu ter hackeado os telefones de promotores da Vaza Jato.
Procurado pela Pública, o ex-ministro Sergio Moro não respondeu aos questionamentos enviados por email.
É proibido ao FBI realizar investigações em territórios estrangeiros – inclusive no Brasil – porque a polícia americana não tem jurisdição no país.
A presença dos agentes do FBI no Brasil foi revelada em 2004, quando o ex-diretor do FBI no Brasil, Carlos Costa deu uma extensa entrevista ao jornalista Bob Fernandes na revista Carta Capital. Em depoimento ao MPF na época, ele afirmou que o FBI direcionava e financiava operações da PF, o que estabelecia uma relação de “subordinação às autoridades norte-americanas”.
Investigando no Brasil
Embora as duas maiores investigações da Lava Jato pelo Departamento de Justiça (DOJ) americano já tenham terminado, com os acordos da Odebrecht e Petrobras, o FBI ainda tem muito a fazer para investigar corrupção no Brasil, nas palavras do chefe do FBI no país, David Brassanini, em palestra no 7º Congresso Internacional de Compliance, em maio de 2019, em São Paulo.
Anúncio da partcipação de David Brassanini no Congresso de Compliance
A parceria com a PF nas investigações da Lava Jato foi destacada por ele como uma aliança que merece ser louvada. Foi a partir daí que a relação entre os agentes se intensificou. Reportagem conjunta do site The Intercept Brasil e Pública mostrou que desde 2015 os agentes do FBI estiveram em Curitiba para interrogar os delatores que estavam fechando acordo com os procuradores brasileiros.
A cooperação foi descrita por Brassanini como “fluida, sem problemas e transparente”, pois seus agentes já tinham familiaridade com a cultura e a sociedade brasileiras. “A habilidade de desenvolver e entender as peculiaridades locais é grande. Não só a questão da língua, mas em entender realmente como o Brasil funciona, entender as nuances”, afirmou.
O FBI atua para investigar corrupção transnacional graças à legislação FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), uma lei que permite ao governo americano investigar e punir, nos Estados Unidos, atos de corrupção que envolvam autoridades estrangeiras praticados por empresas e pessoas estrangeiras. Os crimes não precisam ter ocorrido em solo americano – basta, por exemplo, que tenha havido transferência de dinheiro através de algum banco americano ou que as empresas envolvidas vendam ações nas bolsas nos EUA. Foi com base nessa lei que o governo americano puniu com multas bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, entre elas a Petrobras e a Odebrecht.
Brassanini relatou também, no mesmo evento, que agentes do FBI vêm a São Paulo “toda semana para tratar de diferentes casos que envolvem FCPA e lavagem de dinheiro”. Segundo ele, a colaboração com a PF já rendeu muitas informações para os próximos anos. “Agentes da Polícia Federal do Brasil me disseram recentemente que, mesmo que eles não coletem nenhuma informação adicional, nem façam nenhum trabalho investigativo, ainda assim eles teriam material para continuar inquéritos sobre corrupção e lavagem de dinheiro pelos próximos cinco anos.”
Brassanini pediu fundos adicionais ao DOJ para a operação no Brasil, o que permitirá ao escritório ter uma equipe especializada em lidar com pedidos de colaboração judicial. “O Brasil é o maior requerente de informações para evidência, inteligência e casos tanto no Brasil quanto nos EUA”, afirmou à revista Latin Lawyer.
David Brassanini é o chefão do FBI no Brasil desde agosto de 2017, mas desde 2006 atua no órgão por aqui. É casado com uma brasileira, com quem tem quatro filhos, e é fluente em português. Atualmente gerencia o trabalho do FBI na embaixada em Brasília e nos consulados em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre – incluindo a cooperação com a Lava Jato – uma equipe de 20 pessoas, segundo a publicação especializada Global Investigative Review.
Foi ele o principal articulador de uma postura mais “altiva” da polícia americana junto ao ministério capitaneado por Moro. Além de se reunir com o próprio ministro no começo do mandato, Brassanini encontrou-se com secretários e chegou a ter uma reunião com o polêmico assessor especial do presidente Jair Bolsonaro, Filipe Martins. O jovem olavista é um dos nomes que influenciam a política externa do governo, ao lado de Eduardo Bolsonaro.
O encontro ocorreu no dia 18 de julho de 2019, às 17h30, no Palácio do Planalto. Acusado pelo deputado Alexandre Frota durante depoimento à CPI das Fake News de ter apresentado Bolsonaro ao marqueteiro Steve Bannon e de “promover linchamentos virtuais”, Martins foi convocado para comparecer à CPI para prestar esclarecimentos sobre sua suposta participação no “gabinete do ódio”, gestor de milícias digitais favoráveis ao presidente e centro de criação de fake news.
Dois meses antes, o chefe do FBI no Brasil havia comparecido a um compromisso no campo oposto ao de Martins: um debate no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para discutir, justamente, como as fake news podem ser usadas para manipular eleições. Brassanini já havia participado, no dia 17 de maio, de um evento com o diretor do departamento de cooperação e observação eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Gerardo de Icaza, quando falou sobre o combate a crimes cibernéticos e mencionou a criação de uma força-tarefa internacional sobre interferência estrangeira em eleições. O Brasil foi convidado para participar, ao lado da Índia.
No encontro com Filipe Martins, Brassanini estava acompanhado de William Popp, encarregado de negócios da embaixada dos Estados Unidos.
Meses depois, estava de volta ao centro do palco em um grande evento de treinamento de policiais federais e procuradores no Itamaraty, que ocorreu nos dias 5 e 6 de setembro de 2019. O DOJ, o FBI e a Securities and Exchange Commission (SEC) realizaram um Treinamento em Combate à Corrupção e Suborno Transnacional em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), a Controladoria-Geral da União (CGU) e o governo federal.
Valeixo assinou acordo que dá ao FBI acesso a dados biométricos de “suspeitos”
Enquanto em 2018, durante o governo de Michel Temer, Brassanini fez apenas uma “visita de cortesia” a Rogério Galloro, então secretário nacional de Justiça Nacional, foram pelo menos quatro agendas oficiais em 2019.
Além delas, a reportagem localizou mais cinco reuniões de membros do Ministério da Justiça com adidos da embaixada americana, incluindo um “coquetel” oferecido pelo FBI durante a reunião de policiais de 12 países para discutir criptografia, evento chamado “Going Dark” e promovido por Moro em fevereiro.
A primeira visita ocorreu logo no começo do governo. Em 17 de janeiro de 2019, o ministro Sergio Moro recebeu uma delegação de autoridades norte-americanas para discutir maneiras de aprofundar a cooperação jurídica do Brasil com os Estados Unidos, segundo o site do Ministério da Justiça. Moro falou sobre seu pacote anticrime, que ainda não havia sido apresentado ao Congresso (uma versão mais branda acabou sendo aprovada em dezembro). Além de Brassanini, estavam na reunião assessores de políticas do Tesouro dos EUA, o encarregado de negócios Doug Koneff, o diretor econômico Frank DeParis e a conselheira política Kristin Kane, todos funcionários da embaixada.
Na semana seguinte, no dia 24, Brassanini reuniu-se durante toda a manhã com Jorge Barbosa Pontes, da Diretoria de Ensino e Estatística do Ministério da Justiça, assim como o General Theophilo, então secretário da Secretaria Nacional de Segurança Pública. Segundo a agenda oficial do diretor, a pauta da reunião foi uma parceria para capacitação na Academia Nacional de Segurança Pública do ministério.
Em 12 de agosto, Brassanini voltou a se reunir com Jorge Pontes e com outros secretários, entre eles o de operações integradas do Ministério da Justiça, Rosalvo Ferreira; o coordenador-geral de combate ao crime organizado, Rodrigo de Sousa Alves, o secretário adjunto José Washington Luiz Santos, o diretor de inteligência da Secretaria de Operações Integradas, Marcos Aurélio Pereira de Moura, e o diretor de inteligência, Fábio Galvão da Silva Rêgo.
Estavam presentes nessas reuniões o adido de segurança regional da embaixada dos Estados Unidos em Brasília, Jason Smith, e uma delegação de agentes especiais do Serviço de Segurança Diplomática do Departamento de Estado. As reuniões giraram em torno de dois projetos de parceria: “Discussões sobre o projeto de biometria e criação do fusion center”, segundo registro oficial.
As informações biométricas estão no centro de um acordo assinado em 18 de março de 2019, durante visita oficial de Moro e do ex-diretor-geral da PF Maurício Valeixo a Washington, na qual acompanharam a primeira visita oficial do presidente Jair Bolsonaro. Moro teve reunião com a então secretária de Segurança Interna Kirstjen Nielsen e com o diretor do FBI, Christopher A. Wray. Ele almoçou com membros do FBI e da PF na churrascaria The Capital Grille, segundo a Folha de S.Paulo, de acordo com a agenda oficial, o almoço foi oferecido pelo diretor adjunto do FBI, Charles Spencer.
O acordo assinado entre Valeixo e Christopher A. Wray, obtido pela Pública via LAI, visa à troca de informações sobre grupos criminosos e terroristas a partir do compartilhamento de impressões digitais de cidadãos dos dois países para fins de investigações criminais.
Qualquer uma das polícias pode pedir impressões digitais e outros dados identificadores, como nome, número de seguro social, número de CPF e de identidade, local e data de nascimento em casos que envolvem “indivíduo sobre o qual exista suspeita razoável de que seja terrorista” ou “indivíduos sobre os quais existe a suspeita de terem cometido crimes graves ou atividades criminosas transnacionais”. Crimes graves, segundo o acordo, são todos aqueles cuja pena seja superior a um ano de prisão.
As impressões digitais serão inseridas pelo FBI em bases de dados nacionais americanas, às quais outras agências do governo federal dos EUA e governos estaduais têm acesso, segundo o documento.
Em outubro do ano passado, Bolsonaro assinou um decreto estabelecendo uma base de dados única, o Cadastro Base do Cidadão, que vai interligar diferentes bases de dados sobre os cidadãos brasileiros, incluindo números de registros e documentos, dados biográficos e biométricos, como “palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar”. O decreto surge ao mesmo tempo em que avança a coleta de dados biométricos da população, como a biometria para as eleições, por exemplo, que alcançou 120 milhões de eleitores este ano.
“Dados biométricos, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados, são dados sensíveis. O compartilhamento desses para formar esse Cadastro Base do Cidadão permite que mais dados, sensíveis ou não, sejam utilizados, de maneira a extrapolar os fins para que foram coletados”, diz Joana Varon, diretora da organização Coding Rights, que defende a privacidade de dados.
Joana afirma que o acordo assinado por Valeixo pode levar a abusos, já que a definição do que seria um “suspeito” é bastante ampla. “Acordos de cooperação policial, que envolvem troca de dados sensíveis, como os dados biométricos, precisam ser mais específicos e delimitados para garantir que essa troca de informação seja realmente necessária e proporcional aos fins que se destinam, ainda mais no momento político em que vivemos.”
Segundo ela, o tratado pode ter mais peso num contexto de ameaça institucional à PF. “Esses limites são ainda mais importantes se considerarmos que o governo Bolsonaro conduz uma política de total subserviência ao governo norte-americano, bem como se levarmos em conta que vivemos momentos de crise democrática e de ameaças de interferências políticas na Polícia Federal”, conclui.
Na mesma ocasião, Maurício Valeixo também assinou um acordo com o Chefe de Alfândega e proteção de Fronteira dos EUA, Kevin K. McAleenan, para permitir que um delegado da PF brasileira fique lotado no Centro Nacional de Identificação de Ameaças, e, ao mesmo tempo, que um agente do Departamento de Segurança Interna dos EUA fique lotado junto à PF no Brasil, para coordenar ações de segurança de fronteiras.
“Fusion Center” na Tríplice Fronteira
O “Fusion Center” – ou Centro Integrado de Operações na Fronteira (Ciof) – é um escritório de inteligência na Tríplice Fronteira de Foz do Iguaçu que pretende reunir agentes de 16 instituições e unificar bancos de dados. O modelo é inspirado no centro comandado pela DEA, a agência antidrogas americana, na fronteira com o México, que Moro visitou em junho do ano passado – no auge da polêmica da Vaza Jato. Na época, especulou-se que a visita de Moro teria a ver com a publicação dos vazamentos no dia 9 de junho pelo The Intercept, uma vez que a agenda não foi divulgada à imprensa.
A agenda oficial de Moro começou no dia 24 de junho de 2019. Ele estava acompanhado por Maurício Valeixo, pelo diretor executivo da Polícia Rodoviária Federal, José Lopes Hott Júnior, e pelo assessor especial do ex-ministro, o agente da PF Marcos Koren.
O roteiro incluiu, no primeiro dia, uma visita ao Centro de Inteligência de El Paso, liderado pela DEA, que conta com uma dúzia de agentes do FBI para monitorar a fronteira americana com o México. Depois da visita, Moro anunciou que destacaria permanentemente um delegado da PF para operar no centro de inteligência norte-americano, ampliando a troca de informações.
A seguir, no dia 25 de junho, fez uma visita às Forças-Tarefa Conjuntas de Combate ao Terrorismo do FBI. Mas teve de reduzir o tempo de viagem para retornar ao Brasil. A visita estava sendo negociada desde maio com Brassanini, segundo documentos entregues em resposta a um pedido de informações do deputado federal Márcio Jerry, do PCdoB do Maranhão, ao qual a Pública teve acesso.
Desde o dia 2 de maio – antes portanto do vazamento dos diálogos pelo The Intercept –, Brassanini discutia reservas de hotéis para os brasileiros. Inicialmente, a visita ocorreria no começo do mês. O pedido oficial para a viagem foi feito por Moro três dias antes da publicação do vazamento, no dia 6 de junho.
Segundo o documento do ministério, a agenda foi conduzida pelo adido policial Jason Smith, o mesmo que estaria em agosto em reuniões na esplanada.
Jason Smith no I Encontro dos Profissionais da Segurança da CSB em 29 de março de 2017
Em Setembro, Moro voltou a falar do Fusion Center com uma delegação americana no Palácio da justiça em Brasília, dessa vez com o Diretor-Geral Adjunto do Departamento de Segurança Interna dos EUA, David Peter Pekoske.
Brassanini recebe tour VIP em Foz do Iguaçu
O Centro Integrado de Operações na Fronteira é o projeto dos sonhos da embaixada americana, que, há pelo menos dez anos, pressiona o governo brasileiro para investigar suspeitas de atividades terroristas na região – atitude que enfrentava resistência dos governos petistas, conforme revelaram documentos diplomáticos publicados pelo WikiLeaks. Em janeiro de 2008, por exemplo, o embaixador reclamava que o governo de Lula “se recusa a classificar, de forma oficial ou até retórica, grupos considerados terroristas pelos Estados Unidos, como o [palestino] Hamas, [o libanês] Hezbollah e [a guerrilha colombiana] Farc”, que estariam na região da Tríplice Fronteira.
Sergio Moro na inauguração do centro em Foz do Iguaçu
O centro foi finalmente inaugurado em 16 de dezembro no Parque Tecnológico da Usina de Itaipu, em Foz do Iguaçu. Um mês antes, Brassanini fez um tour especial às instalações, guiado por ninguém menos que Sergio Moro.
Em 6 de novembro de 2019, o ex-ministro levou uma pequena comitiva americana para apresentar o projeto. Estavam o cônsul americano, Adam Shub, e membros do FBI – entre eles David Brassanini, conforme mostra foto publicada pelo site G1. “Os Estados Unidos têm sido um grande parceiro do Brasil nessa atividade, ou em outras também, e nós estamos aproveitando o modelo que já foi construído. Nós pedimos ajuda em treinamento e equipamentos”, disse Moro.
O centro vai manejar bancos de dados unificados a partir da atuação conjunta de membros da PF, Polícia Rodoviária Federal, Agência Nacional de Inteligência (Abin), Ministério da Defesa, Unidade de Inteligência Financeira (UIF, antigo Coaf), Receita Federal, Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Científica para combater o crime organizado na Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu. Estarão também presentes “adidos [policiais] de outros países”, segundo Moro afirmou ao jornal local Tarobá News.
De acordo com o ministério, o centro vai atuar principalmente no combate ao tráfico de armas e drogas. As equipes vão monitorar também movimentações financeiras ilegais.
No dia seguinte à visita, Moro anunciou a assinatura de um acordo com o Paraguai, o Uruguai e a Argentina que permite que policiais possam cruzar a fronteira para atuar nos países vizinhos durante uma perseguição. Sem o acordo, a atuação de forças policiais estrangeiras em outro país é ilegal, uma vez que não têm jurisdição em solo estrangeiro.
“É como se houvesse uma força-tarefa permanente, com o objetivo de prevenir e reprimir crime de fronteira (contrabando, tráfico de drogas e armas, financiamento ao terrorismo e proteção de estruturas críticas para o país). Por isso, a localização estratégica em Itaipu”, afirmou Moro, no dia da inauguração, um mês depois.
Na mesma semana, o FBI criou uma equipe especializada em temas como terrorismo e tráfico de drogas para atuar no Paraguai, segundo a agência Associated Press.
A terceira viagem aos Estados Unidos
Um mês depois das primeiras publicações dos diálogos da Vaza Jato, Sergio Moro viajou pela terceira vez no ano aos Estados Unidos, quando tirou uma “licença não remunerada” para uma semana de “férias” com a esposa. O casal passou de 15 a 19 de julho na capital americana, tirando fotos diante da Casa Branca e demais pontos turísticos. Mas a reportagem apurou que ele provavelmente se reuniu, também, com o FBI, fora da agenda oficial e longe do escrutínio público.
O colaborador da Pública Jeremy Bigwood questionou via LAI o FBI sobre se há registros de reuniões com o ministro na época. A polícia americana respondeu que “não pode confirmar nem negar” a existência de tais registros, uma maneira usada por órgãos americanos que equivale a reconhecimento tácito, quando não se pode negar veementemente uma afirmação.
A reportagem da Pública recorreu e pediu mais informações.
Cinco dias depois do retorno de Moro ao Brasil, o Walter Delgatti Neto foi preso em uma operação da PF e confessou ter hackeado as mensagens de Telegram de integrantes da força-tarefa da Lava Jato.
O FBI pisa em ovos
Impedidos de fazer investigações em territórios estrangeiros – inclusive no Brasil –, agentes como Brassanini pisam em ovos quando têm de explicar o seu trabalho. Um vídeo no YouTube oficial da agência americana, gravado por ele quando era chefe do hemisfério das Américas do FBI, mostra claramente esse constrangimento.
“Embora nós possamos não ter jurisdição no país onde estamos localizados […], temos a habilidade de procurar e falar com nossos parceiros, que têm jurisdição, trabalhar com eles, e dizer: ‘Hey, estamos procurando esse fugitivo, você sabe onde ele está? Podemos te ajudar? Há algo que você possa precisar para ajudar a encontrá-lo, seja treinamento, seja outras técnicas sofisticadas que podemos usar para identificar, encontrar esse fugitivo?’.”
O FBI e a embaixada se negam a detalhar publicamente o que fazem seus agentes no Brasil. Mas um documento da própria embaixada revela como funciona esse trabalho. Trata-se de um anúncio em 19 de outubro de 2019 em busca de um “investigador de segurança” para trabalhar na equipe do adido legal e passar 70% do tempo fazendo investigações. “Essas investigações são frequentemente altamente controversas, podem ter implicações sociais e políticas significativas”, diz o texto do anúncio, escrito em inglês.
Entre as tarefas listadas estão “assistência investigativa relacionada com violações da lei dos EUA” a agentes de segurança pública, incluindo o Ministério da Justiça, polícias Federal, Civil e Militar e a Procuradoria Geral da República (PGR). Assim, “a posição requer uma habilidade de interagir em um nível profissional com membros da comunidade de segurança em alto escalão e nível operacional em temas operacionais e de relacionamento”.
O profissional deve “comparecer com (ou algumas vezes sem) a equipe do adido legal a reuniões com membros do alto escalão do governo brasileiro”, acompanhar a imprensa brasileira e manter “bases de dados investigativas e de treinamento relacionadas aos contatos de ligação, conferências, tópicos, palestrantes, fotos, e materiais que podem ser facilmente acessados para avaliação (compiling evaluations), conforme necessário”.
O anúncio avisa que o policial terá de viajar de carro, barco, trem ou avião por até 30 dias. “Viagens para áreas remotas de fronteira e para todas as regiões do Brasil serão requeridas.” Não é divulgado o valor do salário.
Procurada pela Pública, a embaixada dos EUA em Brasília não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem até a publicação.
Entre policiais que têm até página no LinkedIn e outros com
nomes genéricos e desconhecidos, o que se sabe sobre os 13 agentes que
participaram das investigações para o governo americano em solo brasileiro
São de dois tipos os agentes do FBI que atuaram na Lava Jato
em solo brasileiro. Alguns são figuras públicas, dão entrevistas e aparecem
cada vez mais frequentemente em eventos elogiando o trabalho da força-tarefa e
dando conselhos a corporações sobre como seguir a lei americana.
Outros tiveram atuação temporária e são conhecidos por
apelidos ou nomes tão comuns que é muito difícil encontrar algo sobre eles em
fontes abertas na internet. Essa é uma prática comum nos escritórios do FBI no
exterior, para evitar a exposição de agentes que realizam operações secretas ou
controversas em território estrangeiro. Hoje, a agência mantém escritórios em
embaixadas de 63 países e sub-escritórios em 27. Em 2011, o FBI empregava 289
agentes e pessoal de apoio nesses escritórios no exterior.
Embora as duas maiores investigações de casos de corrupção
originados na Lava Jato pelo Departamento de Justiça (DOJ) americano já tenham
terminado, com os acordos bilionários da Odebrecht e Petrobras, o FBI ainda tem
muito a fazer para investigar corrupção no Brasil, nas palavras do atual chefe
do FBI no país, David Brassanini, em palestra no 7º Congresso Internacional de
Compliance, em maio de 2019, em São Paulo. A cooperação foi descrita como
“fluida, sem problemas e transparente”, pois seus agentes já tinham
familiaridade com a cultura e a sociedade brasileiras. “A habilidade de
desenvolver e entender as peculiaridades locais é grande. Não só a questão da
língua, mas em entender realmente como o Brasil funciona, entender as nuances”,
afirmou. Brassanini relatou também, no mesmo evento, que agentes do FBI vêm a
São Paulo “toda semana para tratar de diferentes casos que envolvem FCPA e
lavagem de dinheiro”.
Com base em documentos da Vaza Jato entregues ao The
Intercept Brasil e apuração em fontes abertas, a Agência Pública localizou 12
nomes de agentes do FBI que investigaram os casos da Lava Jato lado a lado com
a PF e a Força-Tarefa, além da agente Leslie Backschies, que hoje comanda oesquadrão de corrupção internacional do FBI. E descobriu que essas
investigações viraram símbolo de parceria bem sucedida e levaram à promoção
diversos agentes americanos. Segundo um ex-promotor do Departamento de Justiça
americano contou à Pública, a presença de agentes do FBI no Brasil foi
fundamental para o governo americano concluir suas investigações sobre
corrupção de empresas brasileiras.
Com base na lei americana Foreign Corrupt Practices Act
(FCPA), o Departamento de Justiça investigou e puniu com multas bilionárias
empresas brasileiras alvos da Lava Jato, entre elas a Petrobras e a Odebrecht.
Embora haja policiais lotados legalmente na embaixada em
Brasília e no consulado em São Paulo, é proibido a qualquer polícia estrangeira
realizar investigações em solo brasileiro sem autorização expressa do governo
brasileiro, já que polícias estrangeiras não têm jurisdição no território de
outros países.
A colaboração do FBI com a Lava Jato teve início em 2014 e
foi fortalecida em 2015 e 2016, quando o foco da operação eram Odebrecht e
Petrobras. Em 2016, a Odebrecht aceitou pagar a maior multa global de corrupção
até então: US$ 2,6 bilhões a Brasil, Suíça e EUA. A parcela devida às
autoridades americanas, no valor total de US$ 93 milhões, foi paga à vista.
Hoje, a empresa está em processo de recuperação judicial.
Em 2018, a Petrobras aceitou pagar a maior multa cobrada de
uma empresa pelo Departamento de Justiça americano: US$ 1,78 bilhão.
“O que ocorre no Brasil está mudando o modo como olhamos os
negócios e a corrupção no mundo inteiro”, afirmou um dos maiores defensores da
cooperação com os Estados Unidos, George “Ren” McEachern, em entrevista à Folhade S. Paulo em fevereiro de 2018, sob o título “Curitiba mandou a mensagem de
que o Brasil está ficando limpo”.
George “Ren” McEachern, ex-agente do FBI, supervisionou as
investigações da Lava Jato em nome do Departamento de Justiça americano
“Ren” McEachern chefiou a Unidade de Corrupção Internacional
do FBI até dezembro de 2017 e supervisionou o grosso das investigações da Lava
Jato em nome do Departamento de Justiça americano. Segundo os documentos
vazados ao The Intercept Brasil e analisados em parceria com a Agência Pública,
ele esteve na primeira delegação de investigadores americanos que esteve em
Curitiba em outubro de 2015, sem autorização do Ministério da Justiça, conforme revelamos nesta reportagem.
Ren nunca escondeu sua participação nos casos ligados à Lava
Jato. “Você precisa compartilhar informações [com outros países]. Porque agora
todos os negócios são globais. Uma empresa que paga propina no Brasil paga
também em outros países”, disse à Folha em fevereiro de 2018. Pouco antes, Ren
deixara o FBI para passar ao setor privado. Na empresa de consultoria Exiger,
ele viaja o mundo para ensinar métodos de “compliance” a leis anticorrupção
para empresas evitarem investigações como as que ele liderava no FBI.
Em 2015, “Ren” foi o grande responsável pela ampliação do
foco do FBI em corrupção internacional, com a abertura de três esquadrões dedicados a isso, em Nova York, Washington e Los Angeles. No seu perfil no siteda Exiger, é descrito como aquele que “desenvolveu e implementou uma nova
estratégia global proativa no FBI para investigar crimes financeiros complexos
e temas de corrupção. Essa nova estratégia foi coordenada proximamente com o
DOJ e a SEC [a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA]. Além disso,
representou um aumento de quase 300% em novos recursos anticorrupção para o
FBI”. O plano misturava investigações proativas por parte de polícias dedicadas
a decifrar a corrupção internacional com tecnologia e análises de ponta sobre
temas financeiros.
“Por volta de 2014, 2015, o FBI estava buscando maneiras de
ser mais proativo nas investigações sobre corrupção internacional”, disse ele
em uma conferência em Nova York sobre “o mundo após a Lava Jato”, em novembro
de 2019. “Então começamos a olhar para países que poderiam convidar agentes do
FBI até o país para analisar investigações de corrupção que tivessem um nexo
com os Estados Unidos, em jurisdições como FCPA e lavagem de dinheiro”.
Foi assim que o FBI se engajou na Lava Jato.
“O timing foi simplesmente perfeito”, disse ele. “Nós
estávamos ajudando em casos que tinham uma conexão com os EUA, mas eles [os
procuradores da Lava Jato] eram realmente muito avançados e estavam usando
técnicas muito sofisticadas e inteligentes”.
Uma das maiores lições que Ren diz ter adotado após a
parceria com a Lava Jato foi a criação de equipes com agentes especializados
que trabalham “proativamente” em casos de corrupção internacional. O caso da
Petrobras, segundo ele, marcou um nível sem precedentes de “compartilhamento de
inteligência, compartilhamento de evidência certificada”. “Aquilo foi uma
grande mudança”, diz.
Fora do FBI, a agenda de “Ren” está cheia de eventos sobre
“compliance” contra corrupção – muitos deles financiados por empresas que
vendem ou compram tais serviços. Desde 2015, ele esteve em simpósios em Hong
Kong, Polônia, China, Noruega, Holanda, Espanha, Inglaterra e Brasil. Entre os
patrocinadores destes eventos estão a consultoria PriceWaterhouse Coopers, a
associação de importadores e exportadores de armas Fair Trade Group, o
conglomerado de mídia Warner Brothers, as médico-farmacêuticas Pfizer e
Johnson&Johnson e a fabricante de armas militares Raytheon.
No Brasil, o ex-agente especial foi palestrante no 4o Annual
International Compliance Congress and Regulator Summit, financiado pela agência
de notícias Thomson Reuters em São Paulo em maio de 2016. Aproveitou a vinda ao
país para dar uma palestra a 90 membros do Ministério Público Federal de São
Paulo. Na ocasião, enalteceu a cooperação internacional e explicou que, no
Brasil, o FBI “oferece suporte técnico a investigações, em relação a
criptografia, telefonia móvel e dados em nuvem, com um analista cibernético
sediado em Brasília”.
O escritório do FBI fica na embaixada americana, na capital
brasileira.
Procurado pela Pública, Ren afirmou que decidiu não falar
mais publicamente sobre sua carreira no FBI e seu trabalho no Brasil.
Convite de palestra com agentes do FBI sobre o mundo depois
da Operação Lava Jato
Agentes quase anônimos
Quando veio na primeira delegação para negociar com os
delatores das Lava Jato, em outubro de 2015, Ren estava acompanhado pela
tradutora Tania Cannon e por outros agentes do FBI. Um deles, Jeff Pfeiffer,
veio de Washington, onde é lotado desde 2002 e trabalha em casos de corrupção,
segundo seu perfil no LinkedIn.
Formado em contabilidade e administração, o agente foi
designado dois anos depois, em 2017, como assistente do procurador Robert
Mueller na investigação sobre interferência russa nas eleições americanas.
Pfeiffer investigou o chefe da campanha de Donald Trump, Paul Manafort, acusado
de esconder contas bancárias no exterior, fraude bancária e conspiração para
lavar mais de 30 milhões de dólares, além de tentar obstruir a Justiça, segundo
o policial afirmou perante um tribunal em 2019.
Outro agente que esteve na comitiva de 2015 foi apresentado
oficialmente à Lava Jato como Carlos Fernandes, um nome tão comum que é
impossível encontrar referências a ele.
O FBI ainda enviou para Curitiba dois membros do escritório
em Brasília, o adido legal Steve Moore e o adido-adjunto David F. Williams.
Williams aparece algumas vezes em comunicação direta com
procuradores da Lava Lato nos diálogos vazados ao The Intercept Brasil. Foi ele
quem atendeu ao pedido feito, em setembro de 2016, pelos procuradores Paulo
Roberto Galvão de Carvalho e Carlos Bruno Ferreira da Silva, para verificar se
o FBI conseguiria quebrar o sistema MyWebDay através do qual os funcionários da
Odebrecht administravam as propinas pagas em diversos países, conformerevelamos na reportagem “o FBI e a Lava Jato”.
Olimpíadas de 2016 e Copa do Mundo em 2014
Já Steve Moore foi o chefe do escritório do FBI no Brasil
entre agosto de 2014 e agosto de 2017, comandando a equipe de agentes lotados
em São Paulo e Brasília. De acordo com sua página do LinkedIn, aposentou-se em
2018, após 22 anos trabalhando no FBI, onde obteve “extensa experiência
internacional em fraudes internacionais complexas, corrupção, FCPA, antitruste,
AML, investigações internas sensíveis, e investigações cibernéticas”. No seu
perfil profissional ele declara ter “experiência significativa” em planejamento
de segurança para megaeventos.
Essa experiência foi adquirida no Brasil. Steve chegou ao
país no final da Copa do Mundo e coordenou o FBI durante as Olimpíadas do Rio
de Janeiro em 2016, desenvolvendo uma relação próxima com alguns agentes da polícia
federal. Certa feita, questionado pelo jornal USA Today sobre como o FBI
treinava uma polícia que “há muito tempo é maculada com corrupção e laços com
organizações criminosas em todo o país”, ele respondeu que trabalhava com
brasileiros “cuidadosamente selecionados e treinados pelos EUA há muitos anos”,
reduzindo o risco de informações sensíveis caírem em mãos erradas. “A chave
para isso é que nós trabalhamos proximamente com a Polícia Federal brasileira e
compartilhamos informações com as suas unidades especializadas”, afirmou ao jornal.
Tudo indica que foi Moore quem escreveu o memorando que
iniciou a Operação Hashtag, deflagrada pela PF apenas 15 dias antes da
Olimpíada. A Operação Hashtag acabou com a prisão de oito suspeitos de planejar
um atentado que jamais chegou a ser planejado, conforme mostrou uma reportagem da Agência Pública. As prisões demonstraram força do governo de Michel Temer (MDB) logo após o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Um dos suspeitos morreu
linchado no presídio, acusado de terrorista.
Na época, o FBI deu a dica à PF, mas não detalhou como
obteve as informações – se foram investigações realizadas dentro ou fora do
território nacional.
O memorando de 6 de maio de 2016 vazado ao Blog dojornalista Fausto Macedo não traz o nome de Steve Moore, mas descreve a
autoria: “adido legal do FBI”. O documento traz nomes e detalhes sobre os
suspeitos que seriam depois investigados pela PF e gerariam a única condenação
até hoje pelo crime de terrorismo no Brasil.
Memorando que levou à Operação Hashtag. Blog do Fausto
Macedo/Estadão
Também presente na comitiva sigilosa do FBI a Curitiba, em
Outubro de 2015, “Chris” Martinez voltava ao Brasil depois de um período de
ausência, já que ela também atuou na Copa do Mundo. Christina Martinez – seu
nome completo – ocupou o cargo temporário de Especialista em Treinamento e
Relações Cívicas, em Brasília, no período anterior à Copa do Mundo de 2014.
Christina foi a responsável pelo programa de treinamento do
FBI, ministrado com outras agências americanas, a 837 policiais das 12
cidades-sede. Os cursos iam de investigação digital a relacionamento com a
mídia e como lidar com protestos, segundo revelou a Agência Públicaem 2014.
Antes disso, entre outubro de 2010 e março de 2013, ela foi assistente de operações
do Adido Legal na embaixada em Brasília, função que ocupava quando visitou, em
março de 2012, centros de treinamento da Polícia Militar de São Paulo, ao lado
de Leslie Rodrigues Backshies, hoje chefe da Unidade de Corrupção Internacional
do FBI.
Christina Martinez também tem uma página no LinkedIn, onde
lista sua experiência em realizar treinamentos em nome do FBI há mais de 17
anos – além do Brasil, teve cargos temporários na Cidade do México e em Buenos
Aires. Antes de vir ao Brasil pela primeira vez, Chris havia sido técnica do
FBI em vigilância eletrônica em local não especificado durante mais de 8 anos.
Christina Martinez (quarta pessoa da esquerda para à
direita) e agentes do FBI visitaram o Grupamento de Radiopatrulha Aérea (GRPAe)
da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP)
Outro integrante da comitiva que foi à sede da Força-Tarefa
da Lava Jato em Curitiba em outubro de 2015 foi Mark Schweers. Mark retornou noano seguinte, em julho de 2016, em uma nova comitiva do DOJ ao Brasil para conduzir
interrogatórios em Curitiba e no Rio de Janeiro. Na sede da Procuradoria da
República, no centro do Rio, essa comitiva interrogou os ex-diretores daPetrobras Nestor Cerveró e Paulo Roberto Costa durante nove horas cada. Em
Curitiba, inquiriram o doleiro Alberto Yousseff ao longo de seis horas.
Mark Schweers não tem página no LinkedIn. A única referência
a um agente do FBI com o mesmo nome encontrada pela reportagem refere-se a um
agente especializado em investigar gangues em Oklahoma nos anos 90.
Além dele, participaram dos interrogatórios no Rio de
Janeiro em julho de 2016 uma agente cujo nome está registrado como Becky
Nguyen. Trata-se de nome comum, de origem vietnamita. Há pelo menos três
pessoas com o mesmo nome nas redes sociais – nenhuma é a agente do FBI.
Duas intérpretes, Tania Cannon e Elaine Nayob, também
participaram das comitivas que vieram ao Brasil em 2015 e 2016. Tânia esteve
nas duas. Na sua página do LinkedIn, ela se descreve como tradutora e
intérprete do Departamento de Justiça americano.
Patrick Kramer, herói de inteligência na guerra do Golfo,
também atuou na Lava Jato
Os documentos entregues ao The Intercept Brasil mencionam
ainda dois agentes especiais do FBI que atuaram proximamente com investigadores
brasileiros a partir do consulado em São Paulo em 2016: June Drake e Patrick T.
Kramer.
Patrick T. Kramer, agente do FBI, durante uma palestra no
Brasil
Há pouca informação sobre a agente June. Segundo os diálogos
vazados, o adido-adjunto do FBI David Williams buscou mais informações com June
para discutir a possibilidade do FBI ajudar a quebrar a criptografia do sistema
MyWebDay, que reunia contabilidade de propinas da Odebrecht. “Através de
explicações adicionais fornecidos pelo Patrick e June (do FBI em São Paulo) eu
acho que entendemos bem a situação e já passei a pergunta para alguns peritos
de ciber no FBI. Carlos, se você gostaria de fazer uma reunião em Brasilia
comigo (ou nosso Adido Steve Moore, dependendo da data da reunião) nos podemos
encontrar rapidinho para conversar mais”, escreveu o adido legal, por email, ao
procurador Carlos Bruno Ferreira da Silva, em setembro daquele ano.
Já a trajetória de Patrick T. Kramer revela um super agente
que desde muito jovem atuou em missões de inteligência e investigações
complexas. A se considerar o seu perfil público no LinkedIn, sua vida daria um
filme.
Durante os anos universitários, Patrick se graduou em
espanhol e estudou português do Brasil na Universidade de San Diego, na
Califórnia. No final da década de 80, começou sua carreira como marinheiro da
II Força Expedicionária, tendo atuado na Operação Tempestade no Deserto, na
Arábia Saudita, durante a Guerra do Golfo nos anos de 1990 e 1991, como oficial
de comunicação. Nos anos seguintes, fez parte da 300ª brigada de Inteligência
Militar e do Special Forces Group (Airborne) em Camp Williams, Utah,
capitaneando uma equipe de análise linguística em espanhol para apoiar
investigações anti-narcóticos.
Em 2002, já no FBI, investigou cartéis de drogas mexicanos
próximos à fronteira do Texas. Depois, debruçou-se sobre membros de gangues em
Porto Rico. A partir de 2008, passou a investigar crimes financeiros como
fraudes e lavagem de dinheiro, e em 2010 assumiu durante dois meses uma posição
temporária na capital da Geórgia, ex-integrante da União Soviética. Pouco
antes, estudara russo na Universidade de San Diego.
Promovido, Patrick passou a ser supervisor do FBI em
Washington, onde coordenou investigações sobre fraudes em seguros de saúde,
tornando-se especialista no tema.
Em 2016, o agente foi enviado para uma posição temporária
durante 6 meses como adido-adjunto no consulado de São Paulo, “facilitando e
coordenando” temas para a Unidade de Corrupção Internacional do FBI chefiados
por Ren McEachern. Neste cargo, ele “conduziu extensiva coordenação e
relacionamento com a Polícia Federal brasileira, Minstério Público Federal, a
Unidade de Corrupção e o Departamento de Justiça americano temas de preocupação
mútua no aprofundamento dos interesses do Brasil/EUA”, segundo sua descrição no LinkedIn. Era responsável pelo “gerenciamento, coordenação, implementação e
execução de estratégias operacionais e investigativas sob responsabilidade do
adido legal de Brasília”.
Sua passagem foi tão bem sucedida que em junho do ano
passado ele retornou ao país, mas desta vez como adido legal-adjunto na
embaixada em Brasília, cargo que ocupa até o momento. Patrick passou os
primeiros meses fazendo contatos com agentes de segurança. Foi convidado a
falar, por exemplo, no dia 29 de agosto de 2018 na inauguração da nova sede da
Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), no Lago Sul, em Brasília.
No dia 19 de outubro do mesmo ano, participou do II
Seminário Nacional dos Agentes de Segurança do Poder Judiciário Federal, em
Maceió.
Patrick Kramer no II Seminário Nacional dos Agentes de
Segurança do Poder Judiciário Federal
E no dia 28 de outubro visitou, ao lado do assessor Jurídico
do Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América, Rodrigo Dias, o
Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional
(DRCI), do Ministério da Justiça, órgão responsável por assinar os acordos de
cooperação jurídica com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O objetivo
do encontro foi apresentar uma nova lei americana, recentemente promulgada,
Cloud Act, que prevê acordos bilaterais com países para a troca de informações
coletadas no ambiente virtual.
“Aos 74 anos, eu pensei que ia parar de brigar (…). Mas eu quero provar que o Moro é um canalha, eu quero provar que o Dallagnol é um cara que montou uma quadrilha na força-tarefa, eu quero provar“. (Lula, ex-presidente da República) pic.twitter.com/pjAbjoYb6k
Essa reportagem de hoje da Vaza Jato mostra que a “teoria da conspiração” que apresentamos desde 2016 sobre a cooperação “informal” dos EUA para construir casos no Brasil, usar o FCPA para “entrar” em empresas brasileiras, etc estava absolutamente correta. https://t.co/G2lgyXqCvs
— Cristiano Zanin Martins (@czmartins) July 1, 2020
Agente que atuou em investigações da Lava-Jato no Brasil
virou chefe da Unidade de Corrupção Internacional do FBI
Polícia americana tem foco crescente em combater corrupção
na América do Sul e abriu escritório para isso em Miami
Deltan e PF preferiram tratar de extradição diretamente com
americanos: “entendemos que não vale o risco de passar pelo executivo”,
escreveu o procurador
Nos seus pouco mais de 20 anos no FBI, a agente especial
Leslie R. Backschies esteve diversas vezes no Brasil. Backschies, cujo nome do
meio é Rodrigues, com a grafia portuguesa, é fluente na língua nacional e vem
ao país desde pelo menos 2012, ano em que há um primeiro registro de uma visita
sua à Polícia Militar de São Paulo. É, também, a única foto que se encontra na
internet dessa notável agente do FBI – embora esteja longe da câmera e de
óculos escuros. O objetivo daquela visita era firmar parcerias para capacitação
de policiais para responder a ameaças terroristas antes da Copa de 2014.
Leslie R. Backschies, a segunda à esquerda, e mais quatro
agentes do FBI visitaram o Grupamento de Radiopatrulha Aérea (GRPAe) da Polícia
Militar do Estado de São Paulo (PMESP)
Ao longo de sua carreira, Leslie trabalhou na divisão de
Segurança Nacional do FBI, atuando nas áreas de contraterrorismo e resposta a
armas de destruição em massa – ela foi co-autora de um guia sobre armasbiológicas para o site Jane’s Defense.
Trabalhando para a Divisão de Operações internacionais do
FBI, em 2012 Leslie mudou-se para a América do Sul, passando a viver em local
não revelado, de onde supervisionava os escritórios do FBI nas capitais do
México, Colômbia, Venezuela, El Salvador e Chile, além dos agentes do FBI
lotados na embaixada em Brasília. No mesmo posto, comandou operações da polícia
federal americana em Barbados, República Dominicana, Argentina, Panamá e no
Canadá.
Mas nos últimos anos, a carreira de Leslie deu uma guinada.
De especialista em armamentos e terrorismo, ela passou a se dedicar a
investigar casos de corrupção e lavagem de dinheiro na América Latina – com
destaque para o Brasil.
Em 2014, Leslie foi designada pelo FBI para ajudar nas
investigações da Lava Jato. A informação consta de reportagem do site Conjursobre evento promovido pelo escritório de advocacia CKR Law em São Paulo, em
fevereiro de 2018, que contou com presença dela. A atuação de Leslie foi
considerada “um trabalho tremendo” e “crítico para o FBI” pelos seus
supervisores, segundo seu ex-chefe afirmou em um evento sobre o combate à
corrupção em Nova York no ano passado acompanhado por uma colaboradora da
Pública.
Leslie se tornou especialista na legislação FCPA, Foreign
Corrupt Practices Act, uma lei americana que permite que o Departamento de
Justiça (DOJ) investigue e puna nos Estados Unidos atos de corrupção praticados
por empresas estrangeiras mesmo que não tenham acontecido em solo americano.
Foi com base nessa lei que o governo americano investigou e puniu com multas
bilionárias empresas brasileiras alvos da Lava Jato, dentre elas a Petrobras e
a Odebrecht, que se comprometeram a desembolsar mais de US$ 4 bilhões em multas
para os EUA, Brasil e Suíça.
Hoje morando de novo nos Estados Unidos, Leslie comanda a
Unidade de Corrupção Internacional do FBI, cuja grande novidade no ano passado
foi um escritório aberto em março em Miami apenas para investigar casos de
corrupção na América do Sul, o Miami International Corruption Squad.
A unidade conta com seis agentes especiais, um supervisor e
um contador forense que atuam na cidade conhecida por receber exilados cubanos,
venezuelanos e, mais recentemente, uma enxurrada de ricos brasileiros. “Você
não pode apenas ter um agente ou dois em um escritório em campo trabalhando com
isso…. Não dá para trabalhar com isso apenas duas ou três horas por semana.
Assim não vai funcionar. Você precisa de recursos dedicados em período
integral”, afirmou Leslie à Agência de Notícias Associated Press.
O esquadrão para América do Sul é o quarto esquadrão do FBI
especializado em corrupção internacional. Todos foram abertos nos últimos cinco
anos – ao mesmo tempo que a maior investigação de corrupção da história
brasileira varria o continente.
A reportagem pediu uma entrevista a Leslie Backschies, mas
não obteve resposta até a publicação.
Cinco anos depois, Leslie parece bastante satisfeita com os
resultados. “Nós vimos muita atividade na América do Sul — Odebrecht,
Petrobras. A América do Sul é um lugar onde… Nós vimos corrupção. Temos tido
muito trabalho ali”, disse ela à Agência de Notícias Associated Press no começo
de 2019.
“Não dá pra ser melhor do que isso”, ela afirmou no eventoda CKR Law em São Paulo. “Nossa relação com o Brasil é o modelo de colaboração
para países lutando contra crimes financeiros”.
“Isso é apenas o começo. Temos o enquadramento correto, a
vontade e os fundos para continuar trabalhando juntos”,
“Agentes do FBI já apoiaram” 10 medidas contra a corrupção
Em outubro de 2015, Leslie fez parte da comitiva de 18
agentes americanos que foram a Curitiba se reunir com procuradores e advogados
de delatores sem passar pelo Ministério da Justiça, órgão que deveria, segundo
a lei, intermediar todas as matérias de assistência jurídica com os EUA,
segundo revelaram Agência Pública e The Intercept Brasil.
A proximidade com a equipe da Lava Jato era tanta que Leslie
foi um dos agentes do FBI que posaram com um cartaz apoiando o projeto de lei
das 10 Medidas Contra a Corrupção, bandeira da Força-Tarefa e em especial do
seu chefe, Deltan Dallagnol, que foi derrotada no Congresso Nacional.
Em um chat com Deltan em 18 de maio de 2016 constante do
arquivo entregue ao site The Intercept Brasil, a procuradora Thaméa Danelon,
ex-coordenadora da Força-Tarefa em São Paulo, brincou antes uma viagem para os
EUA: “Vou tentar tirar uma foto c a Jennifer Lopes e o cartaz das 10 Medidas”,
brinca ela. “Os agentes do FBI já apoiaram. Mas não pode publicar a foto ok?
Eles não deixaram”, explica Thaméa, enviando a foto a seguir.
Thaméa Danelon, ex-coordenadora da Força-Tarefa em São
Paulo, e Deltan Dallagnol, chefe da Força-Tarefa da Lava Jato
A imagem foi posteriormente apagada e não consta do arquivo
entregue ao Intercept. Se divulgada, ela poderia causar uma saia justa ao MPF
por se tratar de autoridades estrangeiras atuando em uma campanha legislativa
nacional.
Thaméa diz que na foto todos são agentes, com exceção de uma
tradutora brasileira. Mostrando familiaridade com a agente americana, Deltan
Dallagnol se entusiasma e diz que a imagem lembra o filme Missão Impossível,
estrelado por Tom Cruise. “Legal a foto! A Leslie está em todas rs”.
A foto havia sido tirada em São Paulo um dia antes, em 17 de maio de 2016, quando Thaméa participou, junto com Leslie, de uma palestra para 90 membros do MPF paulista. Estavam lá também os agentes Jeff Pfeiffer e Patrick Kramer, além de George “Ren” McEchern, então diretor do Esquadrão de Corrupção Internacional do FBI em Washington – e chefe de Leslie.
Promovida pela Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Procuradoria da República em São Paulo, a palestra teve como objetivo ensinar o funcionamento da FCPA. “Foi uma excelente oportunidade para aprendermos sobre um eficiente sistema de combate à corrupção”, ressaltou Thaméa no evento.
A fala de Leslie Backschies não foi reproduzida online. A reportagem pediu as fotos do evento à procuradoria, mas a assessoria de imprensa respondeu que “infelizmente tivemos um problema no nosso backup e perdemos alguns registros de anos anteriores, inclusive esse evento”. Questionada via Lei de Acesso, o MPF fez uma dupla negativa: “E mesmo que tivéssemos estas imagens, elas precisariam de autorização de uso das pessoas fotografadas (palestrantes e espectadores), documento que não foi requisitado no evento”.
Meses depois, foi a vez de Thaméa ir a Washington para dar um curso ao FBI sobre a Lava Jato, conforme revela um diálogo com Deltan Dallagnol em 11 de Outubro de 2016 a partir das 16:47:23. “O FBI pediu pra eu falar sobre a Lavajato no curso em Washington, tudo bem? Vc me mandaria um material em Inglês? Eles tb. querem q eu fale sobre as 10 Measures!!!! show heim? até eles já sabem da campanha!!!”
Deltan responde: “Animal. Não é tudo bem. É tudo excelente!!!!!”
As mensagens foram reproduzidas com a grafia encontrada nos arquivos originais recebidos pelo The Intercept Brasil, incluindo erros de português e abreviaturas.
Segundo um documento constante dos arquivos da Vaza Jato, em 2015 havia nove policiais americanos lotados na embaixada de Brasília e no Consulado de São Paulo, incluindo do FBI, da Polícia de Imigração e Alfândega e do Departamento de Segurança Interna.
Com base nos diálogos e em apuração complementar, a Agência Pública conseguiu localizar, além de Leslie Backschies, 12 nomes de agentes do FBI que atuaram nos casos da Lava Jato em solo brasileiro.
Pela lei, nenhum agente americano pode fazer diligências ou investigações em solo brasileiro sem ter autorização expressa do Ministério da Justiça, pois as polícias não têm jurisdição fora dos seus países de origem. O FBI e a embaixada dos Estados Unidos se negam a detalhar publicamente o que fazem seus agentes no Brasil. Mas um documento da própria embaixada, obtido pela Pública, revela como funciona esse trabalho. Trata-se de um anúncio em 19 de outubro de 2019 em busca de um “investigador de segurança” para trabalhar na equipe do adido legal e passar 70% do tempo fazendo investigações. “Essas investigações são frequentemente altamente controversas, podem ter implicações sociais e políticas significativas”, diz o texto do anúncio, escrito em inglês. O anúncio avisa que o policial terá de viajar de carro, barco, trem ou avião por até 30 dias “para áreas remotas de fronteira e para todas as regiões do Brasil”.
Questionada pela Pública sobre a atuação de agentes do FBI em território brasileiro e sobre a parceria com os membros da Lava Jato, a embaixada americana respondeu através de uma nota: “O FBI colabora com as autoridades brasileiras, que conduzem todas as investigações no Brasil, inclusive todas as investigações que envolvem o Brasil e os EUA. As autoridades federais e estaduais brasileiras trabalham rotineiramente em parceria com as agências policiais dos EUA em uma ampla gama de questões. Os Estados Unidos e o Brasil mantêm uma excelente cooperação policial na FCPA, mas também no combate ao crime transnacional e em muitas outros ámbitos de interesse mútuo. Procuramos oportunidades de aprender com todas as nossas investigações. Um intercâmbio de boas práticas faz parte da boa cooperação que desfrutamos com nossos colegas brasileiros”.
Há dezenas de menções ao FBI e seus agentes nos diálogos constantes da Vaza-Jato analisados pela Agência Pública e Intercept Brasil. Fica claro que o relacionamento mais constante é entre membros da PF brasileira e agentes do FBI.
“A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta”
À frente da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da
Procuradoria-Geral da República, o procurador Vladimir Aras alertou diversas
vezes para problemas legais envolvendo a colaboração direta com agentes do FBI.
Uma conversa bastante tensa, em 11 de fevereiro de 2016,
revela até que ponto a PF mantinha proximidade com o FBI e desconfiava do
governo de Dilma Rousseff. A ponto de o próprio chefe da Lava Jato, Deltan
Dallagnol, admitir ao secretário de Cooperação Internacional da PGR que a PF
preferia tratar direto com os americanos a seguir as vias formais.
Às 11:27:04, Deltan pede que Aras olhe um email enviado para
os Estados Unidos. Aras se surpreende com o teor: tratava-se de um pedido de
extradição de um suspeito da Lava Jato. Não fica claro quem é a pessoa a quem
se referem. O pedido, informal, havia sido enviado ao Escritório de Assuntos
Internacionais (OIA, na sigla em inglês) diretamente por Dallagnol, sem passar
pela Secretaria Cooperação Internacional da PGR nem pelo Departamento de
Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do Ministério
da Justiça, autoridade central responsável, de acordo com um tratado bilateral.
O diálogo dá a entender que um mandado de prisão ainda estava por ser decretado
pelo então juiz Sergio Moro.
“Passa o nome e os dados que vamos atrás. Fizemos isso com o
advogado de Cerveró”, responde Aras. “Nosso parceiro preferencial para
monitorar pessoas tem sido o DHS, mas podemos trabalhar com o FBI também.
Quanto antes tivermos os dados, melhor”, explica Aras, referindo-se ao
Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS, na sigla em inglês). Aras
prossegue explicando que o pedido de extradição teria que passar pelo DEEST, o
Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, além do Ministério de
Relações Exteriores, “um parceiro importante”.
“Não é bom tentar evitar o caminho da autoridade central, já
que, como vc sabe, isso ainda é requisito de validade e pode pôr em risco
medidas de cooperação no futuro e a “política externa” da PGR neste campo”, explica
Vladimir.
“O que podemos fazer agora é ajustar com o FBI e com o DHS
para localizar o alvo e esperar a ordem de prisão, que passará pelo DEEST.
Podemos mandar simultaneamente aos americanos”, ele prossegue.
Em resposta, Deltan é direto. “Obrigado Vlad por todas as
ponderações. Conversamos aqui e entendemos que não vale o risco de passar pelo
executivo, nesse caso concreto. Registra pros seus anais caso um dia vá brigar
pela função de autoridade central rs”, escreveu, deixando no ar a sugestão para
que Aras se ocupasse do assunto se um dia comandasse o MPF ou o Ministério da
Justiça. “E registra que a própria PF foi a primeira a dizer que não confia e
preferia não fazer rs”.
Vladimir insiste: “Já tivemos casos difíceis, que foram
conduzidos com êxito”.
“Obrigado, Vlad, mas entendemos com a PF que neste caso não
é conveniente passar algo pelo executivo”.
Vladimir responde que “A questão não é de conveniência. É de
legalidade, Delta. O tratado tem força de lei federal ordinária e atribui ao MJ
a intermediação”.
Para a professora de direito penal e econômico na Fundação
Getulio Vargas, Heloísa Estellita, o episódio é “lamentável”. “Não temos
notícia de como o procurador procedeu e se procedeu a alguma medida. Mas não
deixa de ser lamentável que, mesmo corretamente orientado por colega
especialista em cooperação internacional e zeloso pela legalidade, o procurador
tenha manifestado que, em tese, preferiria outro caminho”, avalia. “Como o
procurador especialista alerta, a hipótese de circundar a autoridade competente
poderia não só causar problemas institucionais no Brasil, como gerar descrédito
para as instituições brasileiras perante autoridades estrangeiras”.
Procurada pela reportagem, a Força-Tarefa da Lava Jato
reiterou, através de nota, que “além dos pedidos formais por meio dos canais
oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos
diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação,
manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias,
com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem
pedidas e recebidas”. Leia a resposta completa no final desta reportagem.
Odebrecht: “O FBI já tem conhecimento total das
investigações”
Naquele mesmo ano, alguns meses depois, a relação com a
polícia americana voltaria a ser tema de debate entre os procuradores, desta
vez pelo Chat Acordo ODE, onde discutiam o contrato de leniência com a
construtora Odebrecht.
O tema da conversa, iniciada às 15:29:40 do dia 31 de agosto
de 2016, era o sistema de informática My Web Day, que, assim como o Drousys,
era usado pelo Setor de Operações Estruturadas, um departamento da Odebrecht
que geria os pagamentos de propinas a políticos de vários países. Os membros da
Lava Jato pediram informalmente ajuda ao FBI para quebrar as senhas de ambos os
sistemas. O pedido foi feito em agosto de 2016, quase um ano antes da Lava Jato
receber oficialmente os arquivos do Mywebday e Drousys a partir da assinatura
do acordo de leniência com a Odebrecht, o que ocorreu em agosto de 2017,
segundo reportagem de O Globo.
Naquele dia o procurador Paulo Roberto Galvão explicou que
pediu auxílio do FBI para “quebrar” ou “indicar um hacker” para acessar o
sistema My Web Day. Em resposta, o promotor Sérgio Bruno, que coordenava a Lava
Jato em Brasília, afirma que o então Procurador Geral da República Rodrigo
Janot chegou a ter uma reunião na embaixada americana para pedir ajuda com os
sistemas criptografados da Odebrecht.
“O canal com o FBI é com certeza muito mais direto do que o
canal da embaixada. O FBI tb já tem conhecimento total das investigações,
enquanto a embaixada não teria”, informa Paulo Roberto. “De minha parte acho
útil manter os dois canais”.
Depois, ele explica: “A nossa foi sim com o adido, porém o
que fica em SP. O mesmo que acompanha o caso LJ”.
As trocas entre FBI e a Lava Jato em relação ao sistema My
Web Day continuaram nos meses seguintes, mas parecem ter sido infrutíferas. Em
outubro de 2016, Paulo Roberto Galvão compartilhou no chat “Acordo Ode” uma
resposta em inglês de David Williams, adido do FBI na embaixada americana,
sobre as possibilidades indicadas pelos experts em criptologia do FBI.
A comunicação demonstra que o assunto já fora tratado,
pessoalmente, com o procurador Carlos Bruno Ferreira, da Secretaria de
Cooperação Internacional da PGR. “Se não me engano o assunto de baixo é o mesmo
que o Carlos Bruno explicou para mim recentemente na despedida do Adido Frank
Dick na embaixada do Reino Unido (certo Carlos?)”, escreve, em português
fluente, prometendo consultar os “cyber experts” do FBI. O problema é que o
MywebDay usava uma poderosa criptografia que só podia ser descriptografada
usando 3 componentes. E a Odebrecht dizia que tinha perdido dois deles, tendo
apenas a senha. A criptografia usava o programa Truecrypt.
“Eu acho que em resumo o que eles estão falando é que sem os
arquivos-chave, é impossível no cenário da Odebrecht destravar o volume do
TrueCrypt apenas com uma senha”, escreveu como resposta David Williams. “Eles
podem fazer uma análise forense nas imagens que têm os dados do TrueCrypt, e
fazer uma tentativa para localizar os outros arquivos-chave. Se essa análise é
algo que você gostaria de receber assistência, avise-nos e podemos ver se é
algo que o FBI pode tentar”.
“Caros, na Suíça aparentemente o pessoal da Odebrecht disse
q teria condições de abrir o sistema. Vamos entender melhor isso”, encerra
Paulo.
No final de 2016, a Odebrecht, junto com sua subsidiária
Braskem – à época uma joint-venture com a Petrobras – fez um acordo com o DOJ
pelo qual ambas concordaram em pagar uma indenização de no mínimo US$ 3,2
bilhões aos EUA, Suíça e Brasil – total depois reduzido para US$ 2,6 bilhões –
por práticas de corrupção ocorridas fora dos EUA.
Procurada pela reportagem, a Lava Jato afirmou, através de
nota, que “os dados do sistema Drousys, entregues ao MPF no bojo do acordo de
leniência firmado pelo Grupo Odebrecht, já foram objeto de perícia submetida à
avaliação do Poder Judiciário brasileiro e auxiliaram no fornecimento de provas
a diversas investigações e acusações criminais”. A resposta completa está no
final da reportagem.
Porém, apenas em agosto de 2017 cinco discos rígidos com
cópia de dados do software MyWebday foram entregues oficialmente aos procuradores
da Lava Jato como parte do acordo, segundo reportagem de O Globo. Os arquivos
para descriptografá-los continuavam desaparecidos – e mais uma vez a Lava Jato
precisou da ajuda dos americanos.
Discutindo a reportagem do Globo, o procurador Roberson
Pozzobon, colega de Dallagnol em Curitiba que chegou a negociar a abertura deuma empresa de palestras em sociedade com ele, reclamou: “Da forma como ele
colocou, parece que não nos empenhamos (e ainda estamos nos empenhando) para
buscar acessar essas informações (quando os dispositivos foram enviados até o
FBI para ver se seria possível acessar sem as senhas)”, escreveu ele no chat
“Filhos do Januario 2 – SAIR” em 6 de fevereiro de 2018.
A colaboração com o FBI nas investigações em relação à
Odebrecht levou a um dos maiores acordos assinados até então pelo DOJ com uma
empresa internacional, no valor de US$ 2,6 bilhões de multa.
Como a Odebrecht não é uma empresa de capital aberto e
portanto não tem suas ações vendidas na bolsa nos Estados Unidos – como era o caso
da Braskem – o acordo descreve algumas situações que estariam sob a jurisdição
americana.
Por exemplo, a Odebrecht teria usado contas em bancos de
Nova York para transferir dinheiro para contas Offshore em Belize e nas Ilhas
Virgens Britânicas que, afinal, seria “em parte” usada para o pagamento de
propina em países latino-americanos. O DOJ vai além. “A Odebrecht, os seus
empregados e agentes, tomaram diversos passos enquanto nos Estados Unidos para
aprofundar o esquema. Por exemplo, em 2014 e 2015, enquanto estavam em Miami,
na Flórida, dois funcionários da Odebrecht tiveram condutas relativas a certos
projetos dentro do esquema, incluindo reuniões com outros co-conspiradores para
planejar ações a serem tomadas em conexão com a Divisão de Operações Estruturadas,
a movimentação de produtos de crimes, e outras condutas criminosas”.
Após ser alvo da Lava-Jato e de ter assinado acordo nos EUA,
a Odebrecht passou a ser investigada em diversos países onde mantinha contratos
na América Latina. Em junho de 2019, a empresa pediu recuperação judicial.
Segundo o jornal Miami Herald, foi justamente a crença de
que o dinheiro lavado pelos membros do regime de Hugo Chávez na Venezuela –
incluindo a propina da Odebrecht – acabou no mercado imobiliário do sul da
Flórida que levou à criação no ano passado de um Esquadrão de Corrupção
Internacional em Miami. O esquadrão é subjugado à Unidade de Investigação
liderado por Leslie Backschies, a agente que fala português fluentemente e
apoiou as 10 medidas contra a corrupção de Deltan e companhia, segundo as
mensagens da Vaza Jato.
“Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os
resultados de casos como esses”
A expressão usada por Leslie Rodrigues Backschies para
descrever o impacto político das investigações do FBI sobre corrupção
estrangeira é que são “politicamente sensíveis”.
“Esses casos são muito sensíveis politicamente, não somente
nos Estados Unidos mas no exterior,” explicou a agente especial em entrevista à
Associated Press. “Quando você está olhando para oficiais estrangeiros em
outros governos — quer dizer, veja, na Malásia, o presidente não foi reeleito.
Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os resultados de casos
como esses. Se você está olhando para membros do alto escalão de governos, há
muitas sensibilidades.”
A agente especial Leslie R. Backschies participou do evento
ICC meet the enforcers em fevereiro de 2018
É por conta de tamanhas “sensibilidades” que, diferentemente
de outros casos criminais, todos os casos de FCPA são dirigidos pela unidade
especializada do Departamento de Justiça em Washington – mesmo que tenham se
iniciado em um distrito distante da capital. O DOJ é chefiado pelo
Procurador-Geral dos Estados Unidos, uma espécie de Ministro da Justiça,
nomeado diretamente pelo presidente.
Segundo a reportagem da Associated Press, os supervisores do
FBI se encontram com advogados do Departamento de Justiça a cada 15 dias para
avaliar potenciais investigações e possíveis consequências políticas.
Corrupção internacional vira prioridade
A mudança na carreira de Leslie acompanhou uma mudança de
foco do Departamento de Justiça e do FBI na última década. A partir de uma
percepção de que a lavagem de dinheiro ajudava o financiamento do terrorismo,
os agentes americanos passaram a se dedicar cada vez mais a casos de corrupção
transnacional e lavagem de dinheiro usando a legislação FCPA, que tem
jurisdição ampliada para o mundo todo. Hoje, a maioria dos casos de FCPA não
tem nada a ver com terrorismo.
A mudança trouxe dividendos para o DOJ e possibilitou uma
renovada parceria com polícias e Ministérios Públicos de todo o continente
americano. E se solidificou. Em 2017, pela primeira vez a Estratégia de
Segurança Nacional dos Estados Unidos – já sob o governo de Donald Trump –
incluiu o “combate à corrupção estrangeira” como prioridade para a segurança interna
dos cidadãos americanos.
Antes dele, a estratégia definida por Barack Obama em 2015
já mencionava a corrupção internacional como ponto de atenção – mas ela não
tinha uma lista de “ações prioritárias”.
Em março de 2015, o FBI abriu três esquadrões dedicados à
corrupção internacional em Nova York, Los Angeles e Washington, triplicando o
número de agentes dedicados a investigar violações da FCPA e “crimes de
cleptocracia” – foram de 10 agentes para 30. Até o final de 2017 os recursos
para o FBI investigar corrupção transnacional aumentaram em 300%, segundo o seuex-chefe “Ren” McEachern.
Diálogos mostram que sob o comando de Deltan Dallagnol, o
FBI teve total acesso às investigações sobre a Odebrecht
O anúncio oficial explicava o foco na investigação de “cleptocracias”,
“oficiais estrangeiros que roubam dos tesouros dos seus governos às custas dos
seus cidadãos” e afirmava ainda que os agentes do FBI iriam contar com
“operações secretas, informantes e fontes”, além de “parceria com nossas
contrapartes internacionais – facilitada pela nossa rede de adidos legais
situados estrategicamente ao redor do mundo”.
A explicação de Leslie para o foco do FBI na corrupção
internacional – e por que investigar empresas que cometeram corrupção fora dos
Estados Unidos ajuda a melhorar a segurança dos cidadãos americanos – é
rocambolesca. “Queremos que se cumpra a lei. Se a lei não é cumprida, você terá
certas sociedades nas quais eles [os cidadãos] sentem que os governos deles são
tão corruptos, que irão buscar outros elementos que são considerados
fundamentais, que eles vêem como limpos ou algo contra o regime corrupto, e
isso se torna uma ameaça para a segurança nacional [dos Estados Unidos]”.
“Uma coisa quando eu falo com empresas, eu digo ‘Quando você
paga um suborno, você sabe onde o dinheiro está indo? Sua propina está indo
para financiar terrorismo?’”, completa, sem explicar como isso ocorre.
Em julho de 2019, Leslie Backschies participou de mais um
evento para discutir corrupção internacional, dessa vez em Washington, DC, e
desvendou mais uma atuação “sensível” da polícia americana no exterior. Segundo
o site Market Insight a agente especial afirmou que o FBI tem a estratégia de
valer-se de membros de governos de outros países para buscar investigar casos
de FCPA.
Ela afirmou que, quando há uma mudança de regime, uma nova
administração às vezes pede ajuda para investigar a corrupção no governo
anterior. E quando um novo governo chega a um país, pode haver servidores
restantes do governo anterior que querem relatar a corrupção.
A atuação do FBI em casos fora do seu território tem gerado
diversas críticas entre juristas, que apontam que os Estados Unidos se comporta
como “polícia do mundo”.
“Eu tenho alguns clientes que quase nem tocaram nos Estados
Unidos, e eles perguntam: até onde isso vai se estender? E, você sabe, até
certo ponto, qual o interesse dos EUA?” questiona o advogado Adam Kauffman, um
ex-procurador do distrito de Nova York que trabalhou com Sergio Moro na
investigação sobre o caso Banestado, quando ele era juiz federal.
Ele deu uma entrevista à Agência Pública em Nova York em
junho de 2019, antes do vazamento dos diálogos da Força-Tarefa. “Em muitos
casos, quando o governo [americano] processa esses casos de corrupção, as
pessoas admitem a culpa porque estão com medo, e conseguem um acordo bom, então
o governo garante jurisdição sobre coisas que são muito tênues. Mas ninguém
questiona isso, então se torna mais e mais comum e a jurisdição vai para mais e
mais longe”.
“Porque jurisdição”, reflete Adam, “é como gravidez. Ou você
tem ou você não tem. Você não pode ter um pouquinho de jurisdição e você não
pode estar um pouquinho grávida. Onde está o limite?”.
Respostas da Lava Jato
Procurada pela Pública, a força-tarefa da Lava Jato
respondeu por email. Leia a íntegra das respostas a seguir:
Um dos diálogos vazados ao The Intercept Brasil atesta que
em 31 de agosto de 2016 o FBI tinha “total conhecimento” das investigações
feitas pela Lava Jato sobre a empresa Odebrecht. Como funcionava essa atuação
do FBI em parceria com os investigadores da Lava Jato? Como se dava essa
transmissão de informações?
Não se trata de atuação em parceria, mas de cooperação entre
autoridades responsáveis pela persecução criminal em seus países, conforme
determinam diversos tratados internacionais de que o Brasil é signatário. O
intercâmbio de informações entre países segue igualmente normas internacionais
e também leis brasileiras. Além dos pedidos formais por meio dos canais
oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham contatos
diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de cooperação,
manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir estratégias,
com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações a serem
pedidas e recebidas.
A parceria com o FBI, que incluiu a busca de quebrar a
criptografia do sistema Drousys, foi criticada por alguns advogados como um
possível risco à soberania nacional por poder ser usada contra uma empresa
brasileira por um governo estrangeiro. Qual é a posição da Lava Jato sobre
isso?
Não recebemos da jornalista dados sobre a “busca de quebrar
a criptografia do sistema Drousys”, nem sobre “foi criticada por alguns
advogados como um possível risco à soberania nacional por poder ser usada
contra uma empresa brasileira por um governo estrangeiro”. De todo modo, os
dados do sistema Drousys, entregues ao MPF no bojo do acordo de leniência
firmado pelo Grupo Odebrecht, já foram objeto de perícia submetida à avaliação
do Poder Judiciário brasileiro e auxiliaram no fornecimento de provas a
diversas investigações e acusações criminais.
Os diálogos demonstram ainda que em pelo menos uma ocasião o
chefe da Lava Jato manteve contatos diretor com o DOJ em temas de extradição e
cooperação internacional – uma atribuição do DRCI /MJ – e expressou a decisão
de evitar passar pelo Executivo, no caso o Ministério da Justiça, durante o
governo de Dilma Rousseff. Por que a Lava Jato preferia evitar a Autoridade
Central e se comunicar diretamente com o Departamento de Justiça Americano?
Esse tipo de postura não poderia prejudicar a imagem internacional das
instituições brasileiras perante autoridades estrangeiras?
Conforme respondido no item “1”, além dos pedidos formais por
meio dos canais oficiais, é altamente recomendável que as autoridades mantenham
contatos diretos. A cooperação inclui, antes da transmissão de um pedido de
cooperação, manter contatos, fazer reuniões, virtuais ou presenciais, discutir
estratégias, com o objetivo de intercâmbio de conhecimento sobre as informações
a serem pedidas e recebidas.
A Lava Jato continua trocando informações e colaborando com
o FBI em solo brasileiro? Existem ainda empresas brasileiras que são
investigadas pelo FBI com base na legislação FCPA?
A força-tarefa da Lava Jato no Paraná não comenta sobre
eventuais investigações em curso.
O jornalista Leonardo Attuch recebe os convidados Paulo
Moreira Leite, Alex Solnik, Dafne Ashton e André Constantine para debater as
principais notícias do dia e também Renata Mielli para falar sobre o projeto
contra fake news. Na sequência Paulo Emílio entrevista Tereza Cruvinel